Saindo um pouco da Pérsia e chegando ao Brasil da primeira metade do século XX, gostaria de tratar aqui no Escamandro da poesia de Ismael Nery, Murilo Mendes e Jorge de Lima que foram inspirados, em muitos de seus poemas que parecem seguir fielmente os preceitos surrealistas, pela filosofia essencialista formulada pelo próprio Ismael nos anos 20. Começo minha série sobre o assunto com um ensaio que escrevi para a revista pequena morte.
bernardo brandão
Ismael Nery, poeta essencialista
Ismael Nery foi um dos pintores mais singulares do Brasil dos anos 1920 e 1930. Fortemente influenciado pela arte de vanguarda da época — Picasso, Chagall, o surrealismo etc. —, teve uma carreira curta, morrendo aos 33 anos em 1934. Em vida, teve o talento reconhecido apenas no seu círculo de amizades, do qual faziam parte Murilo Mendes e Aníbal Machado. Foi apenas nos anos 1960 que a crítica descobriu seu trabalho, que teve a consagração definitiva em 1972, quando seu Auto-retrato, com o Pão de Açúcar e a Torre Eiffel ao fundo, alcançou em um leilão o maior preço até então pago por um quadro no Brasil.
Em Ismael Nery, poeta essencialista, artigo dedicado à “teoria da poesia segundo Ismael Nery”, Murilo Mendes resumia a fórmula poética do amigo: “sensibilidade micrométrica mais visão intemporal dos acontecimentos.” Para Nery, era necessário organizar a matéria poética obtida através dos sentidos pelo método essencialista, seu sistema filosófico, baseado na abstração do espaço e do tempo, o que possibilitaria a contemplação da totalidade e a realização de uma vida essencial, na qual o repulsivo à moral e o supérfluo seriam eliminados. Dessa forma, acreditava que, melhor que escrever poesia, era praticá-la. “A vida de Ismael Nery é o maior monumento de sua poesia.” [4]
Talvez seja por isso que Nery só tenha passado a escrever poemas nos últimos anos de vida, a partir de 1931. Antes disso, quando interpelado por Murilo Mendes sobre tal possibilidade, dizia que “não desejava ser poeta oficial”. [5] De fato, ele parece ter dado ainda menos importância à sua obra escrita que às suas pinturas. Eis o que diz José Fernando Carneiro, seu amigo e médico no Sanatório Correias, em carta dirigida a Antônio Bento:
Os poemas de Ismael, ele os escrevia em pedaços de papel, que depois a arrumadeira do sanatório recolhia e jogava no lixo. Ele jamais se preocupou em guardar qualquer poema que houvesse composto.
Essa indiferença de Ismael pela publicação de suas obras vinha da noção profunda de que não havia pressa em divulgá-las. Elas viriam a ser conhecidas, senão já, amanhã, ou seja, no dia do Juízo Final. O espaço entre o hoje e o amanhã do Juízo Final se lhe afigurava curto demais. Havia no Sanatório uma menina de 12 a 13 anos, que se chamava Adelaide. Era uma menina boa, simples e, por acaso, ficou hospitalizada num quarto próximo ao de Ismael. Ele então fazia poemas de brincadeira e dava-os a Adelaide, que depois os jogava fora. Interceptei alguns desses poemas, escritos – ora em português, ora em francês. Não tenho comigo o número de A ordem de 1935. Mas, se a memória não me falha; se a memória (que é um sentido conexo à imaginação) não distorceu os fatos, eu creio que os poemas publicados nessa revista foram exatamente esses que eu recolhi. [6]
Ismael Nery esteve internado no Sanatório Correias de 1931 a 1933. Foram justamente os três anos de sua produção poética. É provável que parte desta produção tenha sido perdida:
Os poemas de Ismael, ele os escrevia em pedaços de papel, que depois a arrumadeira do sanatório recolhia e jogava no lixo (o mesmo acontecia – acrescento eu – com os seus desenhos, que as empregadas domésticas também recolhiam, a pedido de Murilo Mendes). Ele jamais se preocupou em guardar qualquer poema que houvesse composto. [7]
Edições
Em parte pela despreocupação de Nery, seus poemas nunca chamaram a atenção. Apesar disso, sua poesia possui qualidade, tendo sido admirada por aqueles que a leram: Fernando Carneiro considerava “belíssimo” o poema Para ela, e Antônio Bento afirmou que “é realmente fantástica a atmosfera do Poema post-essencialista”. [8] Murilo Mendes, o amigo mais exaltado, considerava o Poema post-essencialista e O ente dos entes, “depois de os ter relido inúmeras vezes, extraordinários, com uma atmosfera única na poesia brasileira” [9], que os poemas Os filhos de Deus, A virgem inútil e Eu comoveriam a todos por sua “complexa substância poética e pelas suas raízes biológicas” [10]. Ainda, já no fim de sua vida, no prefácio ao livro de Antônio Bento, Murilo escreveu: “além de quadros e desenhos, Ismael deixou também alguns textos escritos nos últimos anos: poesias, poemas em prosa. (Dois ao menos destes, Poema post-essencialista e O ente dos entes, devem ser inseridos entre os mais altos da espécie escritos no Brasil)”. [11]
A totalidade dos poemas de Ismael Nery que chegaram até nós foi publicada por Murilo Mendes nas revistas A ordem e Boletim de Ariel. Na edição de fevereiro de 1935 de A ordem, apareceram oPoema post-essencialista (escrito por Ismael em 1931), O ente dos entes (1933), a Oração (1933), Virgem inútil (1932), Poema(1933), Confissão (1933), A noiva do poeta (1932), Ismaela(1932), Primeira parte do meu poema (1933), Fragmentos do meu poema (1933). Na revista de março, Eu (1933), Confissão do poeta (1933), Poemas pré-essencialistas (1932), Manhã (1932),Poema (1932), A uma mulher (1932), Poema para ela (1933),Vontade de quem? (1933), Inércia (1932) e Poema (1931). NoBoletim de Ariel de junho de 1935 foram publicados Eu (1933), A uma mulher (1933), Poema (1933), A virgem imprudente (1932) eA virgem prudente (1932). Na edição de agosto de 1935, o poemaMusa decadente. Murilo Mendes ainda publicou seus dois poemas preferidos de Ismael, O Poema post-essencialista e O ente dos entes no suplemento Letras e artes do jornal A manhã de 20 de junho de 1948.
Manuel Bandeira também incluiu alguns poemas de Nery na suaColetânea de poetas bissextos contemporâneos: Oração, A virgem inútil, Confissão, A noiva do poeta, Primeira parte do meu poema,Poema, Poema para ela e Vontade de quem? , coletânea que também incluía poemas de Afonso Arinos, Di Cavalcanti, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Pedro Nava e outros.
Em 1973, Antônio Bento incluiu os poemas Oração, Fragmentos do meu poema, Para ela, Inércia, A uma mulher, Poemas pré-essencialistas, A noiva do poeta, Poema (1933) , Fragmentos do meu poema, Confissão, Primeira parte do meu poema e Eu no quinto capítulo de seu livro Ismael Nery. [12] Ali, também menciona as lembranças de Fernando Carneiro sobre o início e do fim do texto original em francês de Para ela (“Les temps sont finis” e “Pour l’eternel souvenir du plus grand amour”) e fragmentos de um poema que se perdeu, que também fora escrito em francês (apesar da citação feita em português):
Somos como dois líquidos jogados num mesmo vaso.
……………………………………………………………………
Eu era vermelho, tu eras branca.
Agora somos róseos, etc.
Os poemas foram ainda publicados em livros dedicados como Ismael Nery, 50 anos depois, editado por ocasião dos 50 anos da morte de Nery e Ismael Nery 100 anos: a poética de um mito (no centenário do nascimento).
A poesia
Formalmente, a poesia de Nery é totalmente livre: alguns poemas em prosa, versos brancos, sem metrificação e imagens inusitadas de influência surrealista. Mas, antes de tudo, é uma experiência essencialista que deve transcender o espaço e o tempo e buscar a totalidade. Isso é bem claro nestes versos de Confissão:
… Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo
Tenho fome e sede de tudo,
Implacável,
Crescente…
O essencialismo também aparece no Poema post-essencialista(1931), que consiste em uma aplicação sistemática do método. A abstração do espaço é empregada já nas primeiras frases:
O silêncio provocou-me uma necessidade irreprimível de correr. Abalei como uma flecha através dos mares e montanhas com incrível facilidade e sem cansaço.
Por sua vez, a abstração do tempo é usada a partir do segundo parágrafo. No início dos tempos, apenas existe o poeta, que contempla o desenvolvimento da vida:
…Não há leões nem elefantes nos desertos da África. Não existem pirâmides nem a Torre Eiffel. Existe apenas eu mesmo, que me percebo inversamente por uma idéia que chamo mulher e que paira rarefeita sobre a superfície do globo – idéia incompreensível porque nada existe na terra além de mim mesmo. Volto a percorrer novamente o espaço, porém, desta vez, com a lentidão do crescimento das plantas, multiplicando-se progressivamente na minha idéia para mostrar-me a mim mesmo…
Em seguida, contempla a sua própria história de vida e o futuro, misturando realidade (o seu nascimento em Belém do Pará) e ficção:
…Aparecem leões e elefantes nos desertos da África. Construíram pirâmides no Egito e levantaram a Torre Eiffel, em Paris, no ano em que um outro eu nascia em Belém do Pará. Tudo se povoou transbordantemente. Acho-me agora sentado na prisão, olhando sereno através das grades, aguardando o julgamento do crime nefando que cometi de usar a mim mesmo na minha mãe, mulher, filha, neta, bisneta, tataraneta, nora e cunhada…
O poema termina de um modo enigmático, que só pode ser corretamente compreendido tendo-se em mente uma premissa fundamental do método essencialista: “deve o essencialista procurar manter-se na vida sempre como se fosse o centro dela, para que possa ter sempre a perfeita relação entre as idéias e fatos” [13]:
Nada existe, além de mim mesmo, senão para mim.
Silêncio.
Essa mesma centralidade necessária constitui um dos motivos de Eu (1933). Aqui, a idéia de um poeta essencialista, que contempla a totalidade e concilia os opostos se encontra em um crescendode grande força e expressividade:
Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe e entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos,
Eu sou o marido e a mulher,
Eu sou um deus com princípio
Eu sou poeta!
Em Arte e artista, Ismael Nery diz que “a idéia justa das coisas só poderemos conseguir pelo método essencialista, que consiste em receber sem parti-pris todas as emoções que operem em nosso inconsciente e que se transformem em afinidades ou repulsas segundo a dose que temos de instinto de conservação, ponteiro da moral”. É necessário emoções variadas e opostas ao essencialista. Estas podem ser vividas concretamente ou apenas intelectualmente, retiradas do patrimônio “acumulado pelos homens de outras épocas”. [14]
A poesia, dessa forma, transforma-se em um campo privilegiado para a aplicação do método essencialista, pois é capaz de exprimir tais emoções de um modo preciso. É por isso que, entre tais poemas, encontramos representações de experiências interessantíssimas que não poderiam ter sido vividas por seu autor. Para Nery, como para Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor”.
Em Confissão do poeta (1933), Nery fala de “sua esposa falecida”. Ora, Adalgisa Nery, sua verdadeira esposa, morreria mais de 30 anos depois dele. Mais do que uma confissão autobiográfica ou “cultivo do temperamento”, repudiado em Arte e artista, este poema é uma exploração de desejos intensos – um ciúme terrível, uma saudade mortal, o desejo de ser o outro ou o nada:
Eu tenho um ciúme terrível da minha sogra e do meu genro
E uma saudade mortal da minha esposa falecida.
Eu queria ter sido meu pai ou ser agora a minha nora.
Ou ter morrido como meu irmão…
No instante em que nasci.
Da mesma forma, em Ismaela (1932), o poeta fala sobre a sua irmã, que nunca existiu na realidade, mas que torna possível a exploração dos paradoxos do homem em face à alteridade feminina:
A minha irmã é minha edição feminina e meu castigo,
Dá a todos o que eu nunca de mulher alguma recebi.
Se eu não soubesse que sou também o seu castigo
Há muito tempo que eu seria fratricida ou suicida.
O tema da relação entre o homem e a mulher, sua complementaridade, tendência à união e os problemas que surgem pela distância entre o ideal e a realidade também aparece em A uma mulher (1932):
Eu queria ser o ar que te envolve
Desde o teu nascimento.
Eu queria ser o teu vestido que te esconde dos outros… [15]
Por trás de todos os motivos que aparecem na poesia de Nery, o anseio que animou todos eles e lhes deu unidade foi o desejo pela totalidade, por “ser a sombra de tudo e de todos, a fim de nascer e morrer com tudo e com todos e em todos os tempos” [16]. Esse desejo, que mediado pelo essencialismo não se conformava “nem com o espaço nem com o tempo/ Nem com o limite de coisa alguma” [17] deu origem a “uma preocupação constante com o essencial, o absoluto e a unidade” [18], o que, para seus amigos, era a grande marca do artista.
NOTAS
[1] MENDES, M. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: Edusp, 1996, p. 29.
[2] Ibid.
[3] MENDES, M. “Ismael Nery, poeta essencialista”. Boletim de Ariel, ano III, n. 10, julho de 1934.
[4] Ibid.
[5] MENDES, 1996, p. 29.
[6] BENTO, A. Ismael Nery. São Paulo: Brunner, 1973, p. 35.
[7] Ibid.
[8] Ibid., p. 36.
[9] MENDES, 1996, p. 30.
[10] MENDES, 1935
[11] BENTO, 1973, p. 8.
[12] BENTO, 1973, p. 34-40
[13] MENDES, 1996, p. 52.
[14] Ibid., p. 51.
[15] Trecho inicial de A uma mulher.
[16] Poema (1933).
[17] Confissão (1933).
[18] BURLAMAQUI, J. “Abstração do espaço e do tempo”. A ordem, fev./março de 1934.
Legal, Bernardêra. Alguns poemas me lembraram muito o …ALMADA NEGREIROS, que também era pintor modernista.
Olha só, que interessante. Vou dar uma olhada…