catulices (caio valério catulo)

caio valério catulo (ca. 84-54 a.c.) é um dos poetas mais interessantes que a antiguidade produziu. não sabemos quase nada da sua vida, fora o fato de que sua família era de verona, e que o poeta veio posteriormente morar em roma. da sua obra, temos uma coletânea intitulada liber catulli (livro de catulo), que nos chegou com uma série de problemas textuais e com um a disposição de 116 poemas que leva alguns críticos a julgar que se trate de uma compilação póstuma; de modo que não sabemos ao certo o que ele teria publicado em vida. sua poesia é marcada por uma intensa expressão passional que é simultaneamente construída e explicitada dentro das mais rígidas regras da poesia romana (sobretudo pelo gosto de uma poesia refinada, erudita, trabalhada, ao modo dos poetas gregos alexandrinos, como calímaco, teócrito e apolônio de rodes, que floresceram no século III a.c.).

essa poesia antiga é marcada por uma grande afetação técnica – está a uma distância imensa da poesia contemporânea, ainda de matriz romântica (em maior ou menor grau) e subjetivista – e podemos dizer que se trata de uma arte muito regrada, não só pelo metro, mas por uma série de tópoi poéticos esperados que fariam com que os textos entrassem dentro da ordem do discurso poético. por isso digo mais uma vez que catulo é um dos mais interessantes: ele é um dos poucos que nos convence de que haja efetivamente uma vida borbulhando por trás da poesia (e não à toa tantos estudiosos tentaram ver sua obra como um resultado biográfico; leitura possível, mas que tanto faz para nós que o lemos agora, interessados nos textos); nesses poemas breves quase vemos um poeta de vanguarda, com uma linguagem leve, quase cotidiana, tratando de temas amorosos, políticos e míticos, ora numa verve mais delicada, ora com uma capacidade de agressão também surpreendente.

ao tentar traduzir esta pequena seleção, deixei-me levar por um ritmo pessoal e descartei a possibilidade de tentar recriar um padrão métrico para as variedades que aparecem entre um e outro poema (esse trabalho já foi feito, e muito bem feito, por joão angelo oliva neto no seu livro de catulo, (in)felizmente esgotado, mas a caminho da segunda edição). procurei uma poética mais nossa, um make it new tupiniquim, que desse conta de explicitar aquilo que vejo no latim catuliano, daí que as chame de catulices. talvez eu tenha exagerado em fazer uma coletânea de 16 poemas, mas não consegui deixar nenhum de lado – na verdade, estou mesmo é pensando em traduzir mais…

nota: há duas coisas que podem ajudar o leitor. 1) o poema 94 é uma invectiva contra mamurra, partidário de júlio césar (que é criticado em 93); e está embasado num trocadilho com seu nome, que em latim aparece como mentula (“cacete”), optei pelo singelo “pinto” por termos esse tipo de piada com o infeliz sobrenome da família pinto. 2) o poema 95, sobre o epílio entitulado esmirna do contemporâneo caio hélvio cina, é uma defesa da poética alexandrina que citei anteriormente: ao defender a obra do seu amigo, catulo a contrasta com a de outros escritores que faziam obras imensas (em geral de gênero épico) mas sem o devido cuidado com a materialidade poética.

3
chorem todas as vênus e cupidos
chorem os homens sedutores

morreu o pássaro da minha garota

o pássaro
           prazer da minha garota
que ela amava mais que os próprios olhos

era um doce de mel             conhecia
a sua dona
            como a garota conhece a própria
                                                mãe
e não saía do seu colo

mas circunsaltitava
                        daqui prali
e só piava para sua dona

agora segue a estrada tenebrosa
que
            – dizem –
                        nunca concedeu retorno

passar mal
                       trevas malditas
do inferno!
                        que devoram toda beleza
vocês roubaram este belo pássaro
que triste história
                        tadinho do pássaro
por sua culpa                         a minha garota
está com seus olhinhos vermelhos
            e inchados
            de tanto chorar

8
pobre catulo
                       deixe de bobagem
o que perdeu
                        aceite
                                    está perdido

antes brilharam-te o fulgor dos sóis
quando sempre seguia a tua garota
por mim amada
                        como ninguém jamais será
                                    amada
então cada prazer que acontecia
você queria e ela
                        não desquis

pois é
           brilharam-te o fulgor dos sóis

agora ela não quer
                       – você?
                                    desqueira
                                    impotente
não cerque quem te foge
            não viva como um pobre
aguenta obstinadamente
                        feito pedra dura

tchau garota!
                        catulo é pedra dura
não te procura
                        já não força a barra
mas você vai sofrer
                        sem quem te queira

tchau desgraçada!
                        o que te resta desta vida?
quem virá te ver?
            quem te achará bela?
quem você amará?
            quem será teu dono?
quem você beijará?
            que lábios morderá?

você catulo
           aguenta feito pedra dura.

11
fúrio e aurélio
                       amigos de catulo
se ele for parar no fim do mundo
ou onde quer que mande a vontade
dos deuses
                        – fiquem preparados –
eu quero que anunciem  pra minha garota
            estas poucas
            poucas nada boas

que viva e passe bem
           com os seus putos
que num abraço só bate trezentos
sem amar unzinho sequer
                        mas estourando todos
nos seus queridos membros

que nunca mais encare o meu amor
por sua culpa
            ele caiu no campo feito
a última flor depois de deflorada
            pelo passar do arado

16
eu vou comer seu cu e sua boca
aurélio bicha
                        e fúrio travecão
porque me imputaram
                                    pelos meus versinhos
– tão delicadinhos –
                        um senvergonha

o poeta só precisar ser decente
ele mesmo
            e fodam-se os versinhos
melhor que tenham o seu sal
            o seu tesão
porque delicadinhos            senvergonha
pra dar um comichão
– não digo nas crianças –
                        nos marmanjos
que já perderam todo requebrado

mas e vocês
           que leram meus milhões de
beijos – vão querer disputar?

eu vou comer seu cu e sua boca

32
eu vou amar
minha doce ipsitila
minha delícia meu prazer
– anda
peça para que eu venha ao meio-dia –
e se você pedir
só quero uma ajudinha

que ninguém tire a tabuleta da tua porta
e não me saia de casa logo agora
mas me espere e prepare-se
para nove contínuas fodelanças

pois se você quiser
                        só isso eu te peço
aqui deitado e almoçado de papo pro ar
já armo a barraca debaixo do pálio

43
olá
garota de nariz nada pequeno
de pés não belos
            de olhos pouco negros
sem dedos longos
             sem boca seca
sem nenhuma elegância na língua
amante do falido forminano

a província andou dizendo que você é bela?
ousam te comparar com minha lésbia?
mas que povo babaca e de mau gosto!

49
ó tu – o mais eloquente dos netos de rômulo
de tantos que já nasceram
                        ó marco túlio cícero
de tantos quando houverem de nascer
a ti agora faz mil graças
catulo – o pior de todos os poetas

e ele é tanto o pior de todos os poetas
quanto és o melhor de todos os patronos

58
célio
            a nossa lésbia
            aquela lésbia
a lésbia
            aquela
            a única que catulo
amava mais que a si mesmo
            mais que aos seus parentes
agora
            por entre esquinas
                                  e
                                  becos
esfola os netos do magânimo remo

70
minha mulher diz que só quer casar comigo
e que nem mesmo júpiter interessa
            é o que diz
mas o que diz uma mulher
                        ao seu amante apaixonado
é melhor escrever
            no vento
                        ou na água que passa

72
você dizia que só sabia de catulo
            lésbia
que não me trocaria nem por júpiter
então te quis
            não como o povo quer uma amante
mas como um pai
            olhando filhos e genros

agora eu te conheço
                       e queimo muito mais
por mais que você seja baixa e leviana
mas como pode?
            você pergunta
é que uma injúria dessas faz o amante
amar ainda mais
            mas bem querer bem menos

85
odeio
    e
amo
            por quê?
                        você pergunta
não sei – só sinto acontecer
                        e crucifico-me

92
lésbia sempre me agride e não consegue se
            calar
que eu morra se ela não me ama!
como sei?
            eu dou a mesma deixa
difamo sem parar
que eu morra se ela eu não amo!

93
eu não me esforço em nada
            césar
                        pra te agradar
pouco me importa se você
            é branco ou preto

94
o pinto putanha
                        putanha o pinto?
é claro!            é o que dizem
cada panela abriga o seus legumes

95
a esmirna do meu cina
esperou nove safras
esperou nove invernos
até ser publicada
enquanto hortênsio vomitou
num só ano
cinquenta mil versos!

esmirna vai chegar às ondas distantes do sátraco
esmirna será folheada por séculos gagás de velhos

mas os anais de volúsio vão morrer em pádua
            onde nasceram
e servirão de embrulho para os peixes do mercado

eu quero os breves monumentos do meu amigo
e para o povo deixo a empolação de antímaco

guilherme gontijo flores

6 comentários sobre “catulices (caio valério catulo)

  1. uma bela tradução para o 16, de fato.
    mas isso porque foi o meu preferido. gostei de todos.

  2. Adorei as soluções usadas no 32, GGF. Com certeza, umas das melhores versões que já li

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