luis alberto crespo (1941, carora, venezuela), poeta, crítico e ensaísta, além de diretor da revista imagen, é um dos poetas contemporâneos mais conhecidos da venezuela, o que, em termos de brasil, significa que é praticamente desconhecido. apesar de saber que ele já foi traduzido para diversas línguas, eu conheço apenas duas pequeninas traduções em português: 9 poemas por antonio miranda; e 3 (se bem me lembro o número) por thiago de mello na sua antologia de poetas latino-americanos, Poetas da América de canto castelhano. diante disso, eu, num ato de delírio – quase uma felix culpa – parei tudo que poderia fazer pra ficar traduzindo compulsivamente essa poesia de matiz celaniano-ungarettica e sabor campestre, arrebatado por essa obra que alcança, a meu ver, um reencantamento profundo e talvez trágico do mundo; nessa poesia onde encontrei uma formulação de beleza (palavra tão demodé da estética do último século) e de magia, de uma magia fragmentária, e não unívoca, da experiência, mesmo (ou sobretudo) nos momentos em que a linguagem parece fracassar.
LIVROS:
Cosas (1968)
Si el verano es dilatado (1968)
Novenario (1970)
Rayas de lagartijas (1974)
Costumbres de sequía (1976)
Resolana (1980)
Entreabierto (1984)
Señores de la distancia (1988)
Mediodía o nunca (1989)
Sentimentales (1990)
La mirada donde vivimos (1991)
Más afuera (1993)
Duro (1995)
Solamente (1996)
Lado (1998)
Ninguno como la espina (2000)
Llano de hombres (1995)
Al filo de la palabra (1997)
El país ausente (2006)
tentei fazer uma antologia, com estes 24 poemas, que pudesse expressar um pouco do movimento da sua poesia, que não foi em nada estanque ao longo dos últimos 40 anos. mas antes de chegarmos aos poemas, eu preciso acertar um ou outro pingo nos is. em primeiro lugar, não existe uma tal língua, o espanhol: existems espanhóis, castelhanos, plurais como quiserem. o meu conhecimento dessa(s) língua(s) não inclui as sutilezas do venezuelano, e a poesia de crespo muitas vezes faz um uso pesado desse vocabulário (sobretudo rural) muitas vezes muito específico. por isso, vez por outra tive de me contentar com uma tradução aproximada para algo de que eu não tinha lá grande certeza semanticamente. em segundo lugar, mesmo com a proximidade das línguas, aqui e ali eu preferi soluções que sugerissem mais aquilo que eu imaginava como “tom” e “poesia” do texto original pela única possibilidade de reinventá-los em “poesia” e “tom” do português; ao mesmo tempo, para garantir essa recriação em português, também optei pelo hiperliteral, mesmo com os ricos que isso poderia implicar. em resumo, eu errei, querendo ou não, por alguns lados, entre o equívoco e o desvio intencional; não tanto uma deriva, mas um passeio livre.
ps: diz o ditado, há males que vêm para o bem; vejam os cunhados, por exemplo. em geral tendem a ser aquela excrescência familiar que você adota por falta de opção (digo isso por ser filho único, portanto incapaz de presentear cunhados) e aprende por fim a amar, também por falta de opção.
esse não é o meu caso. a minha cunhada, rubia, é não só uma grande amiga, na última década, como também vez por outra me faz uma felicidade dessas: duma só vez me apresentou a poesia de crespo, numa antologia (el lugar del resplandor, 2007) donde tirei a minha metantologia que cá apresente, e a de laura antillano, que virá também traduzida, ainda que com um ímpeto menos delirante, no meu próximo post), daí este meu singelo agradecimento.
evoé rúbia! evoé nair!
24 POEMAS
O MAL
Quando se cansava da cozinha,
desse calorão,
viajava numa caminhonete velha,
e eu queria segui-la por esses lugares ermos
onde havia tido seu filho.
Pelejava com ela, fiz com que perdesse a cebola,
os maços de salsa e cominho,
sem conseguir que me notasse.
Viajava longe em sua poltrona
roendo as unhas.
Não entendeu quando lhe disse:
“Você fez de mim um gato mochileiro na rede, Carmen,
E até deixou que agisse como no cinema.”
Parava de pé. Fez um sopa
que cheirava que nem ela.
Não me deixou mais vê-la no banho.
Eu era seu querido,
e saiu por trás da casa com um homem.
EL MAL
Cuando se cansaba de la cocina,
de ese calorón,
viajaba en una camioneta vieja
y yo quería seguirla a esos lugares solos
donde había tenido su muchacho.
Peleaba con ella, le eché a perder la cebolla,
los tarturos de onoto y comino,
sin conseguir que me subiera;
Viajaba lejos en su butacón,
comiéndose las uñas.
No entendió cuando le dije:
“Ud. me hizo gato mochilero en el chinchorro, Carmen,
y hasta dejó que le hiciera como en el cine.”
Se paraba. Hizo una sopa
que olía igual a ella.
No dejó que la viera más en el baño.
Yo era su querido
y se fue por detrás de la casa con un hombre.
(De Si el verano es dilatado, 1968)
AS CINCO
Nunca se acabará em nós
a terra seca.
Quando as rezas começarem
será para morrer.
Tudo termina nos apartamentos,
aquelas terras largas, largas,
e isso que sopra,
que vem assobiando pelos postos,
e nós suspensos sobre os declives
feito bexigas.
Os portões,
tesouros de família, não nos salvarão
dos areais,
a terra em que pisas.
Por mais que haja o verde das fazendas,
resistindo,
a rua da água,
nós seremos bandidos
levados pelo menor fluxo do ar.
LAS CINCO
Nunca se acabará en nosotros
la tierra seca.
Cuando comiencen los rezos
será para morirse.
Todo termina en aquellos playones,
aquellas tierras largas, largas,
y eso que sopla,
que viene silbando por los postes,
y nosotros suspendidos en los declives
como vejigas.
Los portones,
tesoros de familia, no nos salvarán
de los arenales,
la tierra que pisas.
Por más que haya el verde de los fundos,
resistiendo,
la calle de agua,
seremos bandoleros
llevados por el menor paso del aire.
(De Si el verano es dilatado, 1968)
A casa que devo fazer
para poder tocar a porta,
para poder dizer que já cheguei,
que já vim
A casa que devo inventar
quanto retorno,
todos os dias,
tem as manchas do gavião de lá
e os voos de urubu que levam meu nome
pelo céu duro do teto
La casa que tengo que hacer
para ir a tocar la puerta,
para ir a decir que ya llegué,
que ya vine
La casa que tengo que inventar
cuando regrese,
todos los días,
tiene las manchas del gavilán de allá
y los vuelos de zamuro que llevan mi nombre
por el cielo duro del techo
(De Rayas de lagartija, 1974)
VOCÊ DIZIA
Diga-me que parti como te disse
para não me verem por dentro
Diga-me que foi assim,
agora que não posso ouvir de tão longe
que nada se soube por causa do mau tempo,
os trovões
o que dizia ao partir
diga-lhes isto, que já não vivo aqui
que me mudei pruma casa logo abaixo.
DECÍAS
Dime que me fui como te dije
para que no me vieran por dentro
Dime que fue así,
ahora que puedo oírte desde bien distante
que no supo nada por el mal tiempo,
los truenos
Lo que decía yéndome
Diles eso, que ya no vivo aquí
que me mudé unas casas más abajo.
(De Costumbre de sequía, 1976)
SAÍDA
Empurramos o corpo
numa despedida
Dizer adeus
como relva
Esse costume da seca
SALIDA
Empujamos el cuerpo
despidiéndonos
Decir adiós
como yerba
Esa costumbre de sequía
(De Costumbre de sequía, 1976)
Se falo
Não vejo terra
Não estou se olho
Fecho os olhos
O que se movia imóvel neles
é verão
Se me falo Se me olho
esse branco
Si hablo
no veo tierra
No estoy si miro
Cierro los ojos
Lo que se movía inmóvil en ellos
es verano
Si me hablo Si me miro
ese blanco
(De Resolana, 1980)
A janela que busco
devagar pra que apareça
Nomeio-a com os dedos
passo por seus ferros
recordando-a
sem casa já de noite
Te falo dela e a abro
como se ainda respirasse
La ventana que busco
despacio para que aparezca
La nombro con los dedos
paso por sus hierros
recordándola
sin casa ya de noche
Te hablo de ella la abro
como si respirara todavía
(De Resolana, 1980)
Lá fora
Nenhuma casa serve pra viver
Não há outra parede
Fora a fenda no corpo
O apagado
Arranca a voz da minha boca
Minha casa nunca se alça
Nunca é por dentro
Minha casa é a espinha contínua
Que me roça
Afuera
Ninguna casa es para vivir
No hay otra pared
Que la grieta en el cuerpo
Lo borrado
Me quita la voz de la boca
Mi casa nunca se alza
Nunca es por dentro
Mi casa es la espina continua
Que me roza
(De Entreabierto, 1984)
E contemplo uma terra que se foi
Entre os dentes
o pasto que torna em pedra a palavra
essa fibra que treme
como se a suspirassem
Te compreendo agora ruão pálido
Atravessar o úmido era errar a salvo
sem o ruído enorme do desprendido
o que de nós jaz na pegada
e ascende ascende
Agora sei que não estar é uma revelação.
Y contemplo una tierra que se fue
Entre los dientes
el pasto que vuelve piedra la palavra
esa brizna que tirita
como si la suspiraran
Te comprendo ahora ruano pálido
Atravesar lo húmedo era errar a salvo
sin el ruido enorme de lo desprendido
lo que de nosotros yace en la huella
y asciende asciende
Ahora sé que no estar es una revelación.
(De Señores de la distancia, 1988)
Sou o cavalo
porque me piso
e sai terra
e soa o tijolo
pela frente
de parte alguma parte alguma
e embaixo alguém geme
Porque volteio pro meu lado mais fraco
e o caminho apagou até a batida
Sou o cavalo
porque depois
quanto tempero a rédea
a palavra tem sabor de mudez
de vermelho na boca
Soy el caballo
porque me piso
y sale tierra
y suena el ladrillo
en la frente
desde ninguna parte a ninguna parte
y abajo alguien gime
Porque volteo hacia mi lado más flaco
y el camino ha borrado hasta el latido
Soy el caballo
porque después
cuando tiemplo la rienda
la palabra sabe a mudez
a rojo en la boca.
(De Señores de la distancia, 1988)
Te digo que meu cavalo é preto
porque estamos sós
Porque se ouve o passo
o que dizem os passos para sempre
e nos aguarda o que transfigura
o areial
Te digo que meu cavalo é preto
porque já não me separo de mim quando o abandono
e o real não me devasta.
Te digo que mi caballo es negro
porque estamos solos
Porque se oye el paso
lo que dicen los pasos para siempre
y nos aguarda lo que transfigura
el arenal
Te digo que mi caballo es negro
porque ya no me separo de mí cuando lo abandono
y lo real no me devasta.
(De Señores de la distancia, 1988)
VINTE E UM
É meio-dia
ou nunca
Ou mais além
por trás das pálpebras
Também eu ofereço a outra face
para a terra
e divulgo contigo nossa chaga
VEINTUNO
Es mediodía
o nunca
O más allá
tras los párpados
También yo ofrezco la otra mejilla
a la tierra
y divulgo contigo nuestra herida
(De Mediodía o nunca, 1989)
Te chamo pequena fenda
para que nos usemos
juntos
na pungência
essa nudez extrema
Assim
o que dói
olha somente o sentimento
Por isso te chamo muro lastimado
Por isso
por destino
Te llamo pequeña grieta
para que nos usemos
juntos
en el desgarramiento
esa desnudez extrema
Así
lo que duele
mira solamente al sentimiento
Por eso te llamo muro lastimado
Por eso
por destino
(De Sentimentales, 1990)
Meu cachorro só latia para os anjos
Se foi
atrás de algo remoto
algo que voava
Em seu olhar nada era corpo
e a imensidão se achava próxima e quieta
Já não voltará
Agora anda ausente pela casa
e a nós mostra os dentes o sonho
e nos desconhece a ternura
a perigosa ternura
Mi perro sólo le ladraba a los ángeles
Se ha ido
detrás de algo remoto
algo que volaba
En su mirada nada era cuerpo
y la inmensidad se hallaba próxima y quieta
Ya no volverá
Ahora anda ausente por la casa
y a nosotros nos muestra los dientes el sueño
y nos desconoce la ternura
la peligrosa ternura
(De Sentimentales, 1990)
O que dizia
se me perde na subida
Estar é solidão pensada
Sem rastro é passar as curvas
Sem mais é esta pedra na mão
caída juntos
Compreende?
Sem palavras é o verdadeiro
Lo que decía
se me pierde en la subida
Estar es soledad pensada
Sin huella es pasar las curvas
Sin más es esta piedra en la mano
caída juntos
¿Comprendes?
Sin palabras es lo verdadero
(De Sentimentales, 1990)
Do meu próprio barro, da minha saliva
é tua lembrança.
Das minhas mãos teu corpo,
da minha carícia com que te invento.
E digo com algo de vento e brancura
como é meu desejo,
como é você.
De mi proprio barro, de mi saliva
es tu recuerdo.
De mis manos es tu cuerpo,
de mi caricia con la que te invento.
Y digo con algo de viento y blancura
cómo es mi deseo,
cómo eres.
(De La mirada donde vivimos, 1991)
Você não me deixa ser
nem um voo
nem nada distante.
Sou o que não sou.
Poque me negar?
Há tanta face tua em mim,
tanta crispação a ponto de gritar.
No me dejas ser
ni un vuelo
ni nada lejano.
Soy lo que no soy.
¿Por qué me niegas?
Hay tanto rostro tuyo en mí,
tanta crispación a punto de gritar.
(De La mirada donde vivimos, 1991)
Na lembrança se vê um sinal
uma listra que te cruza
Se nota seu rastro
quando você respira
quando batem na porta
Tem a forma de uma unha
de súplica.
En el recuerdo se ve una seña
una raya que te cruza
Se nota su rastro
cuando respiras
cuando tocan a la puerta
Tiene forma de uña
de súplica.
(De Más afuera, 1993)
Começo a dizer
porém me pesa
me usa
Trato de escrever
e vem e me dói
ou é como se me empurrasse
ou é aquilo que se estende comigo
Então
estou perdido.
Comienzo a decir
pero me pesa
me usa
Trato de escribir
y viene y me duele
o es como si me empujara
o es aquello que se tensa conmigo
Entonces
estoy perdido.
(De Más afuera, 1993)
7
A Lucien Blaga
A terra me chegou à boca
Eu toquei o seu nome
com as mão
sobre os lábios
Aprendi de cor o seu abismo
Tinha um gosto de ninguém
e soube por que o espírito é o pó.
7
A Lucien Blaga
La tierra me llegó a la boca
Yo toqué su nombre
con mis manos
sobre los labios
Me aprendó de memoria su abismo
Tenía sabor a nadie
y supe por qué el espíritu es el polvo.
(De Duro, 1995)
46
O esquecimento
não deixa amanhecer
A culpa
é sua comparsa
Ambos te empurram
se começa a dormir
Ainda há muito por fazer
Mas
por que agora?
E por que
tem que ser tão tarde?
46
El olvido
no deja que amanezca
La culpa
es su compinche
Ambos te empujan
si te quedas dormido
Aún hay mucho por hacer
Pero
¿por qué a esta hora?
¿Y por qué
tiene que ser tan tarde?
(De Duro, 1995)
Um princípio
de azulejo
um efêmero
irreal
é este voo que canta
e eu me debruço
enterrado vivo
sobre a janela
Tal mulher você
vereda
Un principio
de azulejo
un efímero
irreal
es este vuelo que canta
y yo me asomo
enterrado vivo
a la ventana
Tal mujer eres
sendero
(De Solamente, 1996)
EM PONTO
Há água para os dois
e sede só pra mim.
Há uma cama onde ninguém somos no sonho
e outra onde somos muitos no desejo,
uma terra boca acima que nos desnuda
e outra boca abaixo que nos esquece.
Há finalmente uma sombra que nos ilumina
e uma luz que nos desaparece.
EN PUNTO
Hay agua para los dos
y sed para mí solo.
Hay una cama donde somos nadie en el sueño
y otra donde somos muchos en el deseo,
una tierra boca arriba que nos desnuda
y otra boca abajo que nos olvida.
Hay finalmente una sombra que nos ilumina
y una luz que nos desaparece.
(De Lado, 1998)
A VISITA
O tempo teu e meu
Nós
O que dizíamos: um fio
A agulha nas palavras.
LA VISITA
El tiempo tuyo y mío
Nudos
Lo que decíamos: un hilo
La aguja en las palabras.
trad. guilherme gontijo flores
Guilherme, quem seria esse “manuel de barros” e qual seria essa “antologia de poetas latinoamericanos”, se me permite perguntar?
falha terrível minha, que citei de memória. é na verdade uma antologia feita por thiago de mello. aqui vai a referência certinha. obrigado pelo toque, aproveitei pra corrigir o texto.
“POETAS DA AMÉRICA DE CANTO CASTELHANO”. Seleção, tradução e notas THIAGO DE MELLO. São Paulo: Global Editora, 2011.