orides fontela (1940-1998), nesses 58 anos de vida, loucura, poesia foi uma pessoa de poucas palavras, ou ao menos de poucas palavras no papel. sua obra se resume a 5 livros lançados ao longo de quase 30 anos (de transposição, de 1969, a teia, de 1996), felizmente reunidos editados em 2006 sob o título de poesia reunida, pela coleção “ás de colete” da cosac naify/7letras, que tem feito um ótimo serviço para dar chances de circulação à sua obra, que passou por um período de quase esquecimento.
existe um duplo fetiche, ao se comentar orides fontela – narrar suas anedotas, sua vida difícil, pobre, à beira da insanidade, com sua fotos junto a gatos, periquitos, etc.; apenas para depois afirmar que nada disso diz respeito à sua poesia, infinitamente “sóbria”, “singela”, “despojada”, “filosófica” e “cristalina”, para ficarmos aqui com alguns adjetivos. da minha parte, desinteresso-me quase que por completo por biografias em geral, logo descarto o plano das anedotas; mas também não acredito plenamente nessa orides “sóbria” dos poemas.
a meu ver, sua poesia é logo à primeira vista formalíssima, enxuta apenas na medida mesma em que precisa registrar algo fulgurante da realidade (desse real que sempre teima em escapar à linguagem, mas que molda e se molda da linguagem) sem transformar o relance em mero efeito de língua, ou demonstração de virtuose. nesse sentido, é o próprio irracional que se mostra, mas não numa fúria da linguagem, e sim numa espécie de pepita, ou de diamante. talvez a imagem do diamante fosse boa, da bruta realidade de pedra dentro da terra, ele é retirado, polido, cortado, num longo trabalho, e ao fim seu encanto sobre nós é todo irracional, nada do diamante se torna compreensível, dominável, humano – ele é fulgor.
dito isso, insisto: há muito mais violência em alguns versos de orides fontela do que em livros inteiros de poesia marginal, ou de vários poetas engajados. e essa violência está na própria linguagem cerrada do real, nessa ameaça constante de silêncio; “a palavra é densa e nos fere”.
só nesse sentido eu aceito dizer que sua poesia é “cristalina”, é pedra de luz que encanta e ao mesmo tempo se mantém inalcançavelmente pedra. o olhar atravessa, transvê a página por trás do poema, volta ao poema e à página, enigmatizado pela simbologia inexplicada dos poemas, pela sua suposta singeleza. nesse clarão, eis a violência, e não à toa a epígrafe de teia diz: “a lucidez / alucina”. aí talvez, se eu fosse biógrafo, eu poderia amarrar vida e obra: na poesia de orides, a violência toma forma de cristal (ou diamante), enquanto em sua (em toda) vida é inacabada e amorfa por excelência – coisa a caminho do nada.
é com isso em mente que escolhi cá uns poucos poemas.
PRECE
Senhora
das feras
e esferas
Senhora
do sangue
e do abismo
Senhora
do grito
e da angústia
Senhora
noturna
e eterna
– escuta-nos!
(de teia, 1996)
ENCANTO
e
espanto;
o adorável
adorante
helianto.
(de rosácea, 1986)
ESFINGE
Não há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.
(de rosácea, 1986)
ESCONJURO
Vai-te, Selene, vai-te daqui
vampira
Diana estéril selvagem
assassina
vai-te, vai-te daqui, noiva do Hades
Perséfone
vai-te caveira pedra morta
Medusa
vai-te, Medéia feiticeira, Circe,
dona do abismo amargo do mar
doido
dona do mênstruo, vai!
Vai-te daqui, cadela
Helena infame
vai-te, luz falsa, vai-te
puta virgem
infernal Hécate! Vai-te daqui
VAI!
(de rosácea, 1986)
A ESTRELA PRÓXIMA
A poesia é
impossível
o amor é mais
que impossível
a vida, a morte loucamente
impossíveis.
Só a estrela, só a
estrela
existe
– só existe o impossível.
(de rosácea, 1986)
ROSA
Eu assassinei o nome
da flor
e a mesma flor forma complexa
simplifiquei-a no símbolo
(mas sem elidir o sangue).
Porém se unicamente
a palavra FLOR – a palavra
em si é humanidade
como expressar mais o que
é densidade inverbal, viva?
(A ex-rosa, o crepúsculo
o horizonte.)
Eu assassinei a palavra
e tenho as mãos vivas em sangue.
(de transposição, 1969)
FALA
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
(de rosácea, 1986)
guilherme gontijo flores
Um comentário sobre “orides fontela”