Faz quase um ano já que André Vallias fez o lançamento oficial de seu livro Heine, hein? – poeta dos contrários, uma antologia de 120 poemas (mais colagens de trechos de cartas e prosa, com uma introduçãozinha e notas bem razoáveis) do poeta judeu de língua alemã Heinrich Heine (1797 – 1856), também conhecido como Harry ou Henri Heine. O lançamento de Curitiba foi mais recente (em outubro, quando o escamandro ainda estava engatinhando) e certamente foi uma apresentação e tanto, com leitura dos poemas, recursos multimídia, música de fundo… enfim, a primeira vez que vi um projetor não ser utilizado para mera exibição de slides de Powerpoint. Além disso, foi uma apresentação das mais informativas, abordando tudo que precisávamos saber sobre o poeta, sua complicada história de vida e suas várias identidades – tudo convergindo para um único ponto que é, idealmente, o trabalho crítico de todo tradutor, a formação ou solidificação de uma identidade poética do autor que está sendo traduzido.
Há alguns outros textos já na internet sobre a tradução de André Vallias… este aqui, por exemplo, publicado na Cronópios pelo próprio, serve para referência sobre quem é o poeta, sua influência e um pouco de sua biografia, o que, para o leitor que não conhece o poeta, já vale a visita, pois me poupa de ter de repeti-lo. Há ainda um outro artigo, também da Cronópios, escrito pelo poeta e pesquisador André Dick, comentando a questão da modernidade em Heine, e mais outro texto, publicado – pasmem – no Terra Magazine, escrito por “Paquito”, um pouco mais acessível, sem a parafernália das referências acadêmicas, comentando a linguagem inspirada na canção popular empregada por Vallias na tradução, o que é muito interessante, considerando que, como me lembrou o Guilherme aqui do escamandro, o alemão do Heine era um alemão mais leve e popular, que é muito bem recuperado por Vallias nessa linguagem de canção. Comparativamente, este meu comentário está muito mais atrasado, mas foi necessário algum tempo para a leitura e a absorção da obra, e acredito que o que direi agora ainda não foi comentado.
É já algo recorrente, entre o pessoal da pesquisa em estudos da tradução (e poderíamos citar alguns autores que afirmam isso… dentre, famosamente, eles os irmãos Campos), a questão de que o tradutor faz também o papel de crítico. Na prática, isso significa que, quando se traduz algo de poesia, o próprio ato de traduzir é semelhante ao de se escrever um texto comentando o que e o porque de um autor e tais e tais de seus poemas serem bons ou não. Essa é a questão no cerne da canonização: por que escolher um autor e não outro – ninguém tem tempo em vida para se traduzir todos – , este poema e não aquele? Nisso, o tradutor pode ser ainda mais eficaz que o crítico, pois o crítico precisa, necessariamente, expor, argumentar, explicar, enquanto o ato crítico da tradução repousa já na elaboração e capacidade de execução do projeto do tradutor. Com o tempo, então, o resultado é que uma identidade vai sendo formada.
Pensemos num exemplo rápido, que é o da poesia de Lord Byron. Os nossos românticos, em geral, não eram leitores do inglês (e um dos poemas de Castro Alves, em Espumas Flutuantes, inclusive, tem uma epígrafe tirada de Shakespeare… em francês), e, assim, nossa língua o recebeu por intermédio do francês – o francês do romantismo de Musset e Lamartine, mais sentimental e trevoso do que o Byron ácido e satírico que podemos ler, por exemplo, em Don Juan. Por causa disso, durante muito tempo tivemos uma imagem de Byron como não sendo mais do que um poeta melancólico, afetado e emotivo – o modelo gringo para a poesia mais adolescente de Álvares de Azevedo. E o próprio Augusto de Campos, na introdução ao seu volume Byron e Keats – Entreversos, onde traduz uma pequena parte da obra dos dois poetas, confessa que tinha esse preconceito em relação ao poeta. Ao optar por traduzir dele o que há de mais moderno, Augusto estava realizando um ato crítico, operando uma mudança sobre a identidade de Byron que revisa essa imagem estereotipada.
Infelizmente, nem todos os tradutores parecem ter essa consciência. Ainda em se tratando de romantismo (o romantismo parece ser um problema ainda para nós, como um trauma), eu acabo tendo de retornar a Shelley, que, como mencionei no meu primeiro post aqui sobre o poeta, foi traduzido por José Lins Grünewald (em Grandes Poetas de Língua Inglesa do Século XIX, pela editora Nova Fronteira) sem qualquer critério, com uma escolha de poemas questionável (poemas curtíssimos, não totalizando mais do que 50 versos, e fragmentos de menor relevância) e uma execução mais questionável ainda. Perpetua-se, com isso, o estereótipo de Shelley como um romântico afetado e como poeta menor, conforme até os seus aspectos mais brilhantes em inglês, como a forte melopeia (evidentes mesmo numa seleção mais fraca de poemas), são destruídos pela má tradução.
Por isso (e agora justifico essa minha digressão), é louvável o trabalho que André Vallias desenvolveu com Heine. Heine, como tantos os românticos, sofre também desse estigma do poeta romântico que só sabe falar de amor de um modo meloso e piegas – o que se tornou o lugar-comum da palavra “romântico”. Quando se fala, por exemplo, em “música romântica”, poucas pessoas pensariam em Beethoven, Schubert ou Liszt em vez de música pop brega dos séculos XX-XXI. E a questão não é que Heine jamais tenha escrito poemas mais melosos – sim, tanto Heine, quanto Byron, Shelley e outros escreveram alguns poemas de amor nesse sentido mais lugar-comum da palavra “romântico”, mas eles tiveram seus motivos (que não irei desenvolver aqui, mas que envolvem romper, através da emoção, com o domínio da razão sobre a poética anterior neoclássica) e essa parte de suas produções não somente não é a única, como também não é a mais interessante. E é muito triste que eles tenham sido, com o tempo, reduzidos a esses estereótipos grosseiros.
Vallias, ao selecionar sua antologia, não omitiu esse aspecto da poesia de Heine, mas soube incluí-lo lado a lado com uma vertente mais irônica, cínica e autoconsciente, de um gosto mais moderno. Em “Novo Hospital Israelita de Hamburgo”, por exemplo, que transcrevi abaixo, o poeta comenta a inauguração do hospital homônimo pelo seu tio rico, Salomon Heine, e a ironia é evidente: primeiro consigo mesmo, ao dizer que ser judeu é uma praga (o que, de certa forma, faz parte do clássico senso de humor judaico); depois com seu tio, ao chamá-lo de “homem valoroso” enquanto afirma que o hospital foi conquistado, algo mesquinhamente, com a “féria de um dia”; e, por fim, com o próprio gênero poético de que faz uso aqui, ao perverter essa linguagem elevada e grandiloquente numa piada de humor negro. O “Hospital Israelita” talvez seja o exemplo mais extremo, mas essa ironia pode ser facilmente encontrada em tantos outros poemas. Dentre os que transcrevi abaixo, “Desastrado” (uma tradução muito boa para o alemão “Unstern“, brincando com o sufixo de negação “un” e a palavra estrela (“Stern“), que aparece no poema numa situação das mais infelizes, portanto des-astr(o)-ado) e “As garrafas pelo chão” demonstram bem essa ironia em relação ao amor, enquanto “Com roupinhas de domingo” mistura uma posição satírica (tendo a burguesia mesquinha e “filistina” como alvo) com uma guinada, no final, para o melancólico.
A execução das traduções é também louvável. Eu estou longe de ser um bom leitor do alemão, mas seus poemas me pareceram bons poemas em português. Como comentado num dos artigos que mencionei acima, Vallias se inspirou na música popular brasileira, sobretudo no samba, para a linguagem utilizada na tradução. Daí as palavras, fortemente coloquiais, como pode-se ver aqui, na pequena seleção que transcrevi, “descarado”, “chamego” (para traduzir “Kind“), “azucrina”, “programa”. Heine é um dos poetas mais musicados da história, e Vallias não deixou com que esse aspecto musical de sua obra se perdesse em tradução, como poderia fazer, por exemplo, ao atravancar o ritmo para manter uma rima, o que é comum em tradução de poesia, ou deixar que um contrato métrico predominasse sobre o ritmo geral. Talvez pusesse ser feita a crítica de que Vallias force um pouco as rimas, observando como ele faz uso frequente de rimas toantes e imperfeitas, mesmo em momentos quando o original faz uso de rimas mais certinhas – vide o primeiro poema transcrito abaixo, “O mundo é tolo, o mundo é cego”, onde Heine rima “abgeschmackter” com “Charakter“, que na tradução ficaram como “descarado” e “caráter”. Mas essa reclamação não passaria de uma mínima pecuinha, ainda mais diante de uma antologia de 120 poemas – e quem já traduziu poesia rimada sabe bem qual é a dificuldade da empreitada. Não sei se Heine (como fazia Shelley) empregava com frequência a rima imperfeita, o que daria carta branca para o recurso na tradução, mas de qualquer modo seu uso já fica muito bem justificado pela apelo da proposta à música popular e não a, digamos, uma poética (neo)parnasiana – bate na madeira – e pelo fato de que, ao evitar a rima perfeita na quadra popular, muito empregada pelo Heine, Vallias evita o banalizador efeito “batatinha quando nasce” que atormenta tantos autores da forma.
Assim, com perdão da rasgação de seda, fica o elogio pelo peso da obra de Vallias: um número grande de poemas, bem traduzidos e representativos, não somente de um lado do poeta, mas daquilo que Vallias nos mostrou, em suas palestras de lançamento, ser a capacidade de Heine de assumir mais de uma identidade – como ilustrado pela sua própria história de vida: nascido em Düsseldorf como o judeu Harry Heine em 1797, rebatizado Christian Johann Heinrich Heine por um pastor evangélico em 1825 e morto em Paris em 1856 como Henri Heine. Com esse único volume, que poderíamos muito bem chamar de definitivo (em oposição à prática de se publicar poemas esparsos por aí ou de pequenos volumes com poemas escolhidos como se fosse à esmo; como diz o Guilherme, só não digo nomes para evitar o vitupério), Vallias está firmando uma identidade plural e devidamente modernizada para Heine que provavelmente acabará de vez com sua imagem lugar-comum de poeta piegas.
A única coisa com que não concordo é com o comentário de André Dick, no link postado acima, na Cronópios, de que Heine “nada tem de romântico”. O romantismo não foi apenas uma moda que veio e passou, mas algo que mudou profundamente toda a nossa noção de literatura – esta própria palavra, aliás, sendo uma noção romântica. Não há vergonha nenhuma em se ter sido um poeta romântico, e ser moderno não necessariamente exclui ser um romântico, o que vale igualmente para os outros profetas da modernidade do século XIX, como Baudelaire e Whitman. Na minha opinião, Heine foi um romântico – e ele não teria o estigma que teve se não o tivesse sido – com um pé firmemente plantado no moderno. Mas isso é assunto para outra hora.
Adriano Scandolara
(Sem mais delongas, então, apresentamos 5 dos poemas de Heinrich Heine traduzidos por André Vallias. Entre parênteses abaixo do título em português está o título em alemão, com um link externo para o poema no original)
O mundo é tolo, o mundo é cego…
(Die Welt ist dumm, die Welt ist blind)
O mundo é tolo, o mundo é cego,
E cada vez mais descarado;
Que disparate, meu chamego,
Dizerem que não tens caráter!
O mundo é tolo, o mundo é cego,
Não saberá te dar valor
Nem ver os beijos que recebo
No caldeirão do teu amor.
Com roupinhas de domingo…
(Philister in Sonntagsröcklein)
Com roupinhas de domingo,
Filistinos fazem festa;
Tal cabritos dão pulinhos,
Passeando na floresta.
Os seus olhos vibram tanto
Na romântica paisagem;
Todo-ouvidos para o canto
Dos pardais entre a ramagem.
Eu, porém, cubro as janelas
Com a mais negra cortina;
Sob a luz do dia ou velas,
Grei de espectros me azucrina.
Surge então o velho amor,
Senta junto a mim e chora,
Vem da morte; e num tremor –
O meu coração descora.
As garrafas pelo chão
(Die Flaschen sind leer)
As garrafas pelo chão; que agradável
O café; as raparigas – quanta empáfia! –
Coradinhas, afrouxando os corpetes,
Desconfio que ficaram de pileque.
Ombros claros, que peitinhos tão bonitos!
Estremeço, o coração me põe aflito.
De repente, correm todas para o quarto
De dormir, dando risada a três por quatro,
E se enfiam embaixo do edredom.
Em instantes – que fiasco! – escuto o som
Dos seus roncos pondo a pique o bom programa:
Solitário, este imbecil contempla a cama.
Desastrado
(Unstern)
Brilhava a estrela com vigor:
Caiu do céu, perdeu o lume.
Perguntas o que é o amor?
Estrela no montão de estrume.
Um cão faminto e judiado,
Agonizando no cercado.
A porca grunhe, o galo clama,
Enquanto o amor engole a lama.
Ah, se eu caísse no jardim
De flores lá da minha amada,
Onde sonhava para mim
A cova limpa e perfumada!
Novo Hospital Israelita de Hamburgo
(Das neue Israelitische Hospital zu Hamburg)
Um prédio pro judeu doente e pobre,
Aos homens triplamente miseráveis,
Pr´aqueles que padecem de três pragas:
Pobreza, enfermidade e judaísmo.
Das três, a mais terrível – a terceira:
Doença hereditária e milenar
Trazida para cá, em contrabando,
Do Egito antigo, a crença-epidemia.
A peste tão cruel quanto incurável!
Não tem compressa, banho ou cirurgia,
Nem há qualquer remédio na farmácia
Que trate e nem vacina que previna.
Será que o Tempo, deus eterno, um dia
Há de livrar-nos da moléstia escura
Que os pais vão transmitindo para os filhos?
E os netos – hão de ter saúde e tino?
Não sei! Mas no ínterim vamos louvar
Aquele coração compadecido
E sábio que procura o que é possível
Pôr bálsamo ligeiro nas feridas.
Um homem valoroso! Construiu
Um teto pra desgraça que a perícia
Do médico (ou da morte!) se dedica
A dirimir com trato e terapia.
Um feito de quem fez o que é factível;
A féria, que o suor de só um dia
Conquista, e no crepúsculo da vida,
Doou pra refazer-se da fadiga.
Com copiosa mão fez doação;
A dádiva dos olhos, todavia,
Foi bem maior: as lágrimas rolaram
Em face à dor sem cura dos irmãos.
Traduções de André Vallias.
Heine, hein? – poeta dos contrários. Introdução e traduções de André Vallias. Editora Perspectiva, Coleção Signos, 2011. 543 páginas. R$50-60,00.
Que maravilha! Tradução primorosa.