anderson lucarezi (sampa, 1987), formado em letras pela usp, tradutor fecundo de poesia norte-americana em seu blog tudo está dito (e estreante já no escamandro como convidado em nosso post anterior com traduções de elizabeth bishop), é também um poeta novo; diga-se de passagem, novo & ousado: o seu primeiro livro réquiem (editora patuá), saiu há pouco tempo, é versátil (uma palavra que tem reaparecido neste blog, talvez vire palavra-chave pra geração), transita entre poemas mais discursivos, visuais, experimentais escritos ao longo dos últimos anos; porém os amarra feito fosse uma série contínua, por meio de um conceito poético funcional.
aí está a sua ousadia: partindo de uma estrutura pré-estabelecida (& o poeta parece ter um interesse profundo por estruturas & suas diversas possíveis perversões) que imita a missa do réquiem, com as suas partes nomeando as seções do livro (a saber, introitus, kyrie eleison, die irae, recordare, confutatis, lacrimosa, lux aeterna), ao mesmo tempo em que encena o funeral mais poderoso e dolorido que possamos conceber: o fim não do homem, & muito menos o fim de um homem, mas o fim do planeta, de toda a cultura, da humanidade, ou do próprio universo, sem um recurso à metafísica (a cabeça já começa a recitar “sem cavalo preto / que fuja a galope / você marcha josé / josé, para onde?” do batido, dolorido drummond). esse dialogismo entre religião e fim da metafísica ainda se entrelaça com a biografia, já que na orelha lemos como “passou 14 anos sob educação religiosa que descambou em descrença”; mas ao mesmpo tempo não nos parece que o pensamento, ou ao menos a escrita, de lucarezi se resuma simplesmente a ateísmo.
ou seja, trata-se de um livro muito pesado. mas ele se torna ainda mais interessante porque, em sua composição, faz um percurso mais complexo, e não se contenta com a mera constatação da possibilidade, ou inexorabilidade, do fim: ele parte da natureza pré-humana (vejam o poema “grau zero”, abaixo da linguagem, irracional, inexplicável), passa pelo problema da linguagem (logo, do humano com sua nomeação e atribuição de sentido ao mundo, como em “louva-a-deus”, e seu inevitável fracasso diante da realidade), para depois passar por uma série de temas, como epifanias pessoais, críticas à violência na história das religiões, uma retomada da ética do carpe diem (“antes que o dia acabe”), ou mesmo tratar da política histórica das américas (toda a seção confutatis, que não citaremos aqui por falta de espaço, onde destacam-se os poemas sobre cuba e o brasil) até que deságua no nada da aniquilação & a um inesperado retorno cíclico à falta de sentido, ou à incapacidade humana de encontrar sentido num universo imensurável (“anã branca”, o penúltimo poema, que trabalha simbolicamente com o espaço escuro, e não branco, de fundo, e o epílogo do “prefixais”, onde a linguagem se encontra destruída em seu monossilabismo, marcando esse retorno ao não-sentido).
não diremos que seja um livro impecável. há momentos menos felizes, sim; mas o trabalho geral impressiona, ainda mais por se tratar do primeiro livro, de um rapaz de 25 anos – e por isso não gastaremos o tempo de ninguém (já que papel não está em jogo) em catar probleminhas para hiperbolizar. melhor que vocês leiam os 4 poemas que selecionamos e pensem como nós: resta esperar pelo mais que ele venha a produzir & evitar um pouco a melancolia do fim.
ps: em tempo, a edição é uma graça, pelas mão de leonardo MAthias. a editora patuá é nova, mas tem feito serviço de gente grande.
adriano scandolara & guilherme gontijo flores
grau zero.
o bem-te-vi abre a garganta
e, se auto-intitulando, canta.
o ouvido modula tal frase
e supõe no canto um texto.
o olvido, para outro eixo.
para novo começo, o zero.
muda o ouvido: tom por tom
o bem – te – vi emite sons.
o canto se desfaz, só som.
o nome se esvai – ave, só.
o pássaro, com só a voz,
volta a entoar o som do om.
louva-a-deus.
ceifas a própria lógica do teu nome
no ceifar a cabeça de teu companheiro.
visas, sem o saber, seguir o instinto,
ou antes: o instinto segue-se a si mesmo.
onde cabe o impulso no nome que tem?
louva a deus? como pode, sendo assassino?
assim, no galho, antes da era do homem,
acaso tivera nome que se chamasse?
antes que o dia acabe.
antes que (se houver depois)
tornemo-nos fogos-fátuos
a girar no ar, perdidos,
e esbarremos um no outro,
sem matéria, sem memória,
pura energia da terra,
sem mais ser mesmo,
mero pó do pó do cosmos,
te digo: venha, e já.
anã branca