uma das obras musicais que mais me surtiram efeito durante minha fase de formação musical foi danse macabre, de camille saint-saëns (1835-1921, retratado ao lado). por um longo tempo eu acreditei que ela havia sido composta por franz liszt, mas a confusão se explica pelo fato de liszt tê-la arranjado para o piano pouco tempo depois de sua estréia, além de os dois serem amigos e seus estilos se assemelharem em alguns aspectos. pois bem. danse macabre consiste em um poema sinfônico (basicamente, uma obra musical baseada ou inspirada em texto) cujo debut se deu em 1874, alto período das composições programáticas, encontrando paralelos, além do próprio liszt e de beethoven, em hector berlioz e richard strauss. na gravação abaixo você poderá conferir a obra, caso ainda não conheça. há alguns elementos que merecem ser destacados para a audição, como o início com os doze toques na harpa que representam as badaladas da meia-noite; o uso do violino solo para apresentar o tema e que predomina sobre o resto da orquestra, representando (muito bem, creio) a morte que propõe a dança; o uso dos xilofones recriando de maneira fantástica o bater dos ossos dos esqueletos dançando (procedimento usado até hoje em abundância quando se trata de sonoplastia do além-mundo). note-se, aliás, que é uma peça que atingiu alto prestígio no meio pop durante o século xx, estando presente em filmes, games, seriados, desenhos da disney, etc.
mas apenas recentemente descobri qual era, afinal, o poema sobre o qual saint-saëns havia composto seu trabalho. sobre esse poema, assim como sobre seu autor, não há abundância de informações pela internet. henri cazalis (1840-1909, retratado ao lado) era médico e poeta simbolista, e sabe-se que mantinha uma relação de amizade (ou ao menos de contato estável) com mallarmé. publicava seus poemas sob os pseudônimos de jean caselli e, mais frequentemente, jean lahor. vários de seus poemas foram musicados, sendo obviamente danse macabre o mais conhecido.
ainda como último dado desta breve apresentação, danse macabre trata de uma velha superstição francesa que conta que a morte, durante o halloween, aparece à meia-noite tocando sua rabeca e invocando os mortos para dançar a ‘dança macabra’ até o amanhecer. com o aproximar da aurora, todos voltam às suas tumbas e lá permanecem até o próximo ano. é provável que tenha sido levada em conta também, para a composição do poema, a alegoria medieval da dança macabra, cujo mote é de que a morte une a todos, independente da classe ocupada em vida.
sobre a tradução: ao que me consta, depois de alguma pesquisa, não existe ainda tradução para o português desse poema. se alguém souber de algum volume empoeirado, fale aí. as rimas do original me obrigaram a usar um pouco de inventividade para achar soluções, além das onomatopéias que tiveram que ser substituídas para algo muito mais familiar ao leitor brasileiro. aliás, com relação ao ritmo, minha opção em geral e sempre que possível foi a de aproximar a leitura do poema ao ritmo ternário próprio da dança, da valsa. assim, com um tempo forte seguido por dois fracos, utilizei decassílabos que também sustentam, diversas vezes, uma anacruse no início do verso, com um tempo fraco antes do tempo forte que inicia a contagem. assim, há de ser um poema ritmado, com sorte e competência do tradutor, em tum-tá-tá tum-tá-tá. devo também dar os devidos créditos ao rodrigo gonçalves, nosso correspondente em paris, pela valiosa revisão.
enfim, obras de imaginação invejável, creio que danse macabre seja, tanto em texto quanto em música, uma peça bastante divertida, com seus tons de macabrismo, que opõe líder e séquito, solista e orquestra, la mort et l’egalité. abundantemente visual, creio que seja uma das combinações texto-música mais felizes da história.
vinicius ferreira barth
Danse Macabre
Zig et zig et zig, la mort en cadence
Frappant une tombe avec son talon,
La mort à minuit joue un air de danse,
Zig et zig et zag, sur son violon.
Le vent d’hiver souffle, et la nuit est sombre,
Des gémissements sortent des tilleuls;
Les squelettes blancs vont à travers l’ombre
Courant et sautant sous leurs grands linceuls,
Zig et zig et zig, chacun se trémousse,
On entend claquer les os des danseurs,
Un couple lascif s’asseoit sur la mousse
Comme pour goûter d’anciennes douceurs.
Zig et zig et zag, la mort continue
De racler sans fin son aigre instrument.
Un voile est tombé! La danseuse est nue!
Son danseur la serre amoureusement.
La dame est, dit-on, marquise ou baronne.
Et le vert galant un pauvre charron –
Horreur! Et voilà qu’elle s’abandonne
Comme si le rustre était un baron!
Zig et zig et zig, quelle sarabande!
Quels cercles de morts se donnant la main!
Zig et zig et zag, on voit dans la bande
Le roi gambader auprès du vilain!
Mais psit! tout à coup on quitte la ronde,
On se pousse, on fuit, le coq a chanté
Oh! La belle nuit pour le pauvre monde!
Et vive la mort et l’égalité!
dança macabra
tum tá tá tum é a morte em cadência
bate co’ a perna um batuque na tumba
morte na noite jogando uma dança,
tum tá tá tum o violino retumba
o vento frio sopra e a noite é só sombra,
choros gemidos correndo dos galhos;
vão-se esqueletos brilhando na sombra
correm e pulam seus restos tão pálios,
tum tá tá tum, cada um se estremece
um osso tilinta no outro em cantigas
lascivo um casal sobre o musgo se assenta
como a provar das doçuras antigas
tum e a morte tá tá continua
raspa sem pausa o seu acre instrumento
foi-se um véu! e a dançarina está nua!
abraça seu moço danceiro co’ alento
a dama é, comentam, marquesa ou barona.
viu-se atraída a um pobre cabrão
Horror!
e voilà como a ele se abandona
como se o bronco versasse um barão!
tum tá tá tum tá, mas que sarabanda!
as rodas de mortos, comum direção,
tum tá tá tum tá, se vai com a banda
o rei saltitando colado ao vilão!
mas psiu! toda a ronda se vai em um segundo
se empurram, se fogem, é o galo que nasce
oh! quão bela noite para um pobre mundo!
três vivas à morte e também à igualdade!
trad. de vinicius ferreira barth
ficou lindo, vina! parabéns! 🙂
Eu consegui encontrar a versão cantada dessa música, creio que é uma raridade ( http://ge.tt/1AYvMCI ).
Saens é o compositor com o qual mais me identifico, sua história trágica produziu músicas belíssimas, e bem modernas.
caaaaara, que legal essa versão!
se eu soubesse antes tinha colocado no post, mas fica aí o link.
valeu mesmo pela raridade, um abraço.
Acho que estou um tanto atrasada, mas soh agora vi o post. Tudo começou quando Saenz topou com um Poema do Henri Cazalis [1840-1909]. Tenho o original e fiz uma tradução razoável. Se vc quiser, posso postar em Comentários. Um abraço – ana
claro Ana, posta aí! vamos ver!
DANÇA MACABRA
Zig e zig e zag, chama a Morte em compasso
Raspando o calcanhar nos túmulos vizinhos.
À meia-noite a Morte ensaia os seus passos,
Zig e zig e zag, ao som de seu violino.
Sopra o vento de inverno e a noite está sombria,
Das tílias só se ouvem alguns surdos gemidos;
Os brancos esqueletos, pela escura via,
Vão correndo e saltando, de lençóis vestidos.
Zig e zig e zag, cada qual se agita,
Ouve-se chocalhar os ossos nessa dança,
Um lascivo casal na relva se espreguiça
Disposto a gozar de antigas lembranças.
Zig e zig e zag, a Morte continua
Arranhando incessante seu amargo instrumento.
Um véu agora cai! A madame está nua!
Seu cavalheiro a abraça com muito sentimento.
Marquesa ou baronesa, por certo, é a dona.
E o seu galante par um mísero artesão.
Que horror! Mas olha só como ela se abandona
Tal se fosse o imbecil propriamente um barão.
Zig e zig e zig – bela sarabanda!
Uma roda de mortos, mão na mão, se fez!
Zig e zig e zag, vê-se nessa banda
Um rei saltitando junto a um camponês.
Mas psiu! De pronto, se acaba o surungo.
Todos correm, fogem, já o galo cantou.
Oh! que bela noite, desgraçado mundo!
E viva a Morte que a todos igualou!
Trad: anadege
Muito obrigado por este post!