traduzir e retraduzir (n)o escamandro

o capítulo primeiro de tradução, reescrita e manipulação da fama literária, de andré lefevere, inicia-se com o seguinte parágrafo:

Este livro lida com os intermediários, homens e mulheres que não escrevem literatura, mas a reescrevem. Isso é importante porque eles são, no presente, co-responsáveis, em igual ou maior proporção que os escritores, pela recepção geral e pela sobrevivência de obras literárias entre leitores não-profissionais, que constituem a grande maioria dos leitores em nossa cultura globalizada. (p. 13)

assim, nos termos de lefevere não é descabido pensar no cinema como um dos domínios operantes da tradução (chamarei simplesmente de tradução o que reunirá também o conceito problemático de adaptação e reescrita), e tampouco o seria pensar o mesmo com os quadrinhos, a arte que, entre todas, mais é aparentada com o cinema.
pois bem, pensemos nos processos de transposição de uma ideia ao longo do trabalho composicional de ambas. essa ‘ideia’, ou o conteúdo que se pretende transpor desde uma obra literária até o resultado midiático final (pensando, claro, em termos de adaptações) sofre um trabalho brutal de adaptação a um roteiro estabelecido para comunicação em outra mídia. (o que causa o clássico ‘o filme é bom, mas o livro é melhor). ou seja, esse novo roteiro, que faz o meio de campo entre obra e destino, constitui o caminho intermediário que reúne todo esse conteúdo original (a poética, de acordo com alguns) com a matéria transposta. daqui, ao invés de pensarmos no ‘que se perde’ no caminho (assunto que resume a cruz de todo tradutor), já temos em mente que se tratam de mídias diferentes, e, portanto, abordagens diferentes de um mesmo tema. antes de pensarmos em todos os filmes que não alcançaram a magnitude de suas realizações literárias, não esqueçamos daqueles que fizeram o contrário, e tornaram livros medianos em clássicos da turma cinemática. um exemplo disso para mim seria o carteiro e o poeta.

do roteiro, passa-se ao storyboard, a nova transposição. traduz-se o conceito do roteiro no seu primeiro acontecimento visual. supõe-se ali o texto, vivificado, mas aponta-se para um lado em que acontecem outras coisas além do verbal.

abaixo podemos visualizar dois exemplos. o primeiro trata-se de uma página do storyboard de star wars: o império contra-ataca, com uma cena bastante conhecida por todos nós, creio. mais abaixo temos o sketch de jim lee para uma página de batman: silêncio, juntamente com a sua realização após a arte-final.

disso, supõe-se que o caminho final seja do storyboard em direção à versão definitiva, à arte-final e às cores.

tradução, adaptação, reescrita.

muito provavelmente não lemos o roteiro original de quaisquer revistas do batman ou da série star wars. certamente eu simplifiquei bastante o processo. de qualquer modo, a coisa se torna especialmente interessante quando vemos uma obra literária bastante conhecida tomar forma em uma dessas outras mídias. já falei nesses termos com relação à música aqui, em outro post. ali, a expressão verbal é praticamente zero, e capta-se algo do ‘espírito’ da obra para ser transmitido por som, e isso pode acontecer tanto no poema sinfônico oitocentista quanto na banda de metal que busca temas da épica clássica. no cinema, tanto quanto nos quadrinhos, a expressão verbal é diminuída com relação ao texto-fonte, podendo ser muito bem (re)elaborada, e divide espaço (e atenção) com a imagem.alienista_gemeos_capa

minha própria experiência alertou negativamente durante vários anos para obras literárias adaptadas para quadrinhos. simplificação do roteiro (para não dizer bestificação), aliado muitas vezes com artistas de segunda mão faziam um desserviço a um trabalho que, retomando a abertura desse post, pode ser uma ferramenta poderosa para divulgação de literatura a um público não-profissional. supondo o argumento de lefevere, um maldito quadrinho ruim poderia arruinar com a imagem de uma obra em meio a uma comunidade de leitores jovens, para pensarmos numa situação. nos últimos tempos, no entanto, algo tem mudado. um exemplo básico em termos de brasil é o trabalho dos irmãos gabriel bá e fábio moon, que adaptaram, por exemplo, o alienista, de machado de assis (capa ao lado), com grande qualidade de roteiro e de arte. trabalhos assim passaram a ser mais comuns a nível nacional e internacional, deixando de representar apenas a imbecilidade da ‘adaptação para jovens’ para constituir uma mídia de comunicação bem fundamentada e mais levada a sério, como já era o cinema.

nessa esteira, chega ao meu conhecimento a existência da série marvel illustrated, que adapta grandes obras da literatura à linguagem dos quadrinhos. alguns de vocês devem ter conhecimento dessa série, que inclui em seu acervo títulos como a ilíada, a odisseia, moby dick, o retrato de dorian gray, a ilha do tesouro, entre outros. no primeiro momento, o que me chamou mais a atenção foi o fato de esses títulos virem licenciados pela marvel comics, o que, querendo ou não, possivelmente elevaria o padrão dos trabalhos a outro nível. (infelizmente, até onde me consta a série não foi lançada no brasil).

fato é que a adaptação da ilíada é magistral, desde a concepção do roteiro e do storyboard até o formato final e a arte, e aí eu chego finalmente onde pretendia.

para quem gosta de quadrinhos de ação, é o clássico quadrinho de pancadaria entre personagens heroicas; e mais que isso, é um quadrinho que também sabe manter os momentos de pathos, as tristezas e as tragédias, os valores. para quem gosta da ilíada, é uma adaptação e tanto, com uma fidelidade assombrosa à ‘ideia’ do poema, e até mesmo com citações exatas do texto. tanto é que partes traduzidas do próprio poema compõem falas de personagens e até do narrador, de modo que quem conhece o poema sentirá ressoar na memória a grandiloquência homerica naqueles quadrinhos que pareceriam ser à primeira vista só de porrada.

por isso, como homenagem minha ao nosso escamandro, que nem um ano tem ainda, apresento finalmente o escamandro homerico em nosso blog, em toda sua magnitude, e em duas versões: a da marvel, que conta com o roteiro de roy thomas e os desenhos de miguel angel sepulveda; e a minha, que segue o padrão dodecassílabo que estou utilizando em meu projeto de tradução da argonáutica de apolônio de rodes, mantendo o mesmo número de versos, e que logo deve ter uma pontinha aparecendo aqui no blog. por meio da comparação entre essas duas versões também será possível perceber o quão próxima está a versão da marvel do texto de homero.

para uma introdução à leitura, lembramos que o rio escamandro (em seu nome humano, sendo xanto o divino) se entope com corpos de troianos durante a aristeia de um aquiles recém retornado à guerra e enfurecido pela morte de pátroclo. afrontado pelo herói, o escamandro se revolta, dá uma coça no mais poderoso dos homens e bota ele pra correr, fazendo com que o semideus aquiles sinta medo e rogue aos deuses por salvação. aquiles, em desespero, chega a se comparar, num símile, com um pequeno pastor que, ao tentar atravessar as fortes correntes durante o inverno, acaba engolido e afogado. mas no fim ele é salvo e o escamandro é acalmado pelos outros deuses.
a cena é memorável e acabou encontrando nos quadrinhos da série marvel illustrated uma realização igualmente magnífica. acabo até pensando no porquê de ser uma cena tão pouco representada nas artes visuais ou mesmo no cinema, sendo das mais divertidas no poema homerico.

e finalmente, sem mais delongas, a minha tradução dos versos 209 a 283 do canto XXI da ilíada, seguida pela reprodução das páginas referentes ao episódio do escamandro nos quadrinhos (the iliad, v. 7, pp. 15-8).
boa leitura.

vinicius ferreira barth


Il
. 21.209-83

Ali matou Medon, Tersíloco, Astopilo,
e Mneso e Trásio, e também Ofelestes e Ênio;
e muitos mais Peônios o veloz Aquiles
ceifaria, se não tivesse o fundo rio
o adereçado em forma humana entre voragens:
   “Aquiles, entre os homens és mais poderoso
e mais terrível; pois dos deuses tens a graça.
Se Tróia exterminar te concede o Cronida,
que o faças nas planícies, fora do meu leito;
pois minhas águas engasgaram-se com corpos,
meu fluxo não tem força pra seguir ao divo
ponto, e com mais e mais defuntos tu me entopes!
Ó líder nato, acalma-te, que estou danado!”
   E assim lhe respondeu o Aquiles velocípede:
“Caro Escamandro, assim será, como me ordenas.
Mas não antes que eu despedace a todos Troas
e os tranque na cidade e encare Heitor de frente,
e descubro, por fim, se venço-o ou ele a mim.”
   Assim falou e se lançou sobre os Troianos;
e o fundo rio então adereçou-se a Apolo:
“Filho de Zeus, argente-arqueiro!, não te lembras
das ordens do Cronida, que a ti comandou
amparar os Troianos, ser a eles refúgio,
até que a luz caísse e eclipsasse as planícies?”
   Falou, e ao ter saltado Aquiles de um relevo
para o centro, o furioso rio nele arrojou
diversos jatos num só jorro; os corpos todos
que em montes o entulhavam, mortos por Aquiles,
ele lançou às margens, como um touro irado;
e os vivos sob as limpas águas resguardou,
ocultando-os em vórtices fundos e vastos.
Formou-se uma onda horrível ao redor de Aquiles
que foi de encontro ao seu escudo em jato; os pés
mal se sustinham; segurou co’ as mãos num olmo
enorme e firme, posto abaixo na orla a expor
as raízes, contendo assim o brando fluxo
com seus pujantes ramos; sua própria massa
formou ali uma ponte; desse turbilhão
o herói lançou-se com velozes pés ao campo,
medroso; e sem deter-se, o grande deus jorrava
sobre ele com a crista enegrecida, a fim de
cessar de Aquiles o labor, salvando Tróia.
Veloz saltou o Pelida a distância de um dardo,
lançando-se como a águia escura quando caça,
entre as aves a mais ligeira e mais robusta.
Acometia assim, e o brônzeo arnês ao peito
rugia hediondo; oblíquo então pôs-se a fugir,
enquanto atrás o horrisonante rio caçava-lhe.
Tal como um homem que ergue a fonte da água negra
e traz por entre plantas e jardins o fluxo
tendo na mão a enxada que livra o conduto;
e sob o fluxo que se força acima os seixos
revolve, enquanto caem ali sujeira e terra
em balbucios, até que a ele, o guia, excedam;
assim a enorme enchente alcançou o tão célere
Aquiles, pois os deuses mais que os homens valem*.
E o divo Aquiles, sempre que parava e via
o algoz e se empenhava em saber se impeliam-no
à fuga os imortais, no largo céu de acordo,
de cima uma onda enorme vinha e lhe atingia,
encharcando seus ombros; pôs-se à frente aos saltos,
angustiado, forçado pelo rio em fúria,
cansando os joelhos, vendo o chão sumir dos pés.
   E lamuriava-se o Pelida ao largo céu:
“Zeus pai, dos deuses não há quem livrar-me possa
deste rio? Meu destino, pois, aqui eu encontro!
Outro não me causou tal mal entre os Celícolas
como o fez minha mãe, que insuflou-me vãs glorias.
Disse ela que ante os muros Troas eu cairia,
flechado pela flecha rápida de Apolo.
Tivesse-me matado Heitor, melhor troiano!,
pra que vencido um bravo, um bravo o despojasse!
Agora em mim recai a triste morte indigna
cercado pelo rio, como o pastor menino
que, atravessando a invernal torrente, afoga-se.”

(*) seguindo neste verso a ótima trad. de odorico mendes.

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