O Paraíso Reconquistado de John Milton

Eu, que há pouco o feliz Jardim cantei,
Perdido em desobediência, canto
Aos homens recobrado Paraíso,
Provada a obediência de outro homem
Por toda a tentação, o Tentador
Frustrado em seus ardis, vencido e expulso,
E o Éden ressurgido em vasto ermo.

Assim começa a continuação do Paraíso Perdido, de John Milton, intitulado, em nossa tradução, Paraíso Reconquistado (Paradise Regained, no original. Motivo de várias discussões sobre tradução). Pois bem, como eu há (não tão) pouco o feliz Jardim comentei, perdido em desobediência, agora acho importante comentar a sua sequência.

Em comparação com o Paraíso Perdido (PP), o Paraíso Reconquistado (PR) é bem menos popular, e não é difícil de ver o porquê disso – e a palavra-chave nesta questão é singeleza. Não é nenhuma novidade afirmar que o PP é um poema bombástico, que trata, por exemplo, da situação da queda de Satã com gravidade e minúcia, descrevendo, por exemplo, como sua queda, hiperbolicamente, durou 9 dias e 9 noites (o tempo necessário para se cair do Éter à terra, e da terra ao Tártaro, segundo os gregos), como o escudo às suas costas parecia uma lua, como era inimaginável o seu sofrimento, etc. Pois os acontecimentos narrados pelo PP são, de fato, grandiosos: a criação do mundo, a rebelião dos anjos, a queda de Satã, a queda de Adão e Eva… e Milton não era o Padre Marcelo Rossi para tratar de algo como, por exemplo, o Dilúvio com “os animaizinhos / subiram de dois em dois”. Ele evidentemente soube elevar a linguagem ao nível que julgou apropriado para o assunto. Mas o PR é um outro tipo de poema.

Primeiramente, ele não é tanto um épico quanto um epílio, totalizando cerca de 2.000 versos em 4 livro, um número pequeno comparado aos 10.000, mais ou menos, dos 12 livros do PP. Segundo que um de seus principais temas é a mansidão e a humildade de Jesus. O enredo, avançando muitos anos após o final do PP, trata do episódio do Novo Testamento em que Jesus, encarnado em homem, passa 40 dias e 40 noites no deserto, resistindo às tentações de Satã e cumprindo, com isso, a promessa feita a Deus Pai no PP, quando ainda era uma entidade plenamente divina, de que ele desceria ao mundo com o fim de se sacrificar para a redenção do homem. Até esse momento, a humanidade se vê à mercê do Pecado e da Morte, que são as duas crias de Satã liberadas do Inferno com a Queda, e caída em idolatria, tendo como deuses os demônios comparsas de Satã, como Moloch, Astaroth, Asmodeus, Belial (em geral divindidades caananitas demonizadas, tal como era a prática judaica, herdada pelo cristianismo). Milton poderia ter ido pela via mais comum e ter feito do poema uma versão narrativa das peças da Paixão de Cristo, comuns na igreja (e, de fato, o PP já havia sido concebido como uma peça teatral inicialmente. Não seria tão estranho), mas ele preferiu uma ação mais interna, psicológica e espiritual do que a carnagem chocante da Paixão.

De fato, não há nada parecido com um acontecimento visivelmente grandioso e bombástico em PR, mas é justamente através desse nada que se dá a preparação de estado de espírito de Cristo e a segunda queda de Satã. São, como ele põe (e nós traduzimos), “feitos mais que heroicos, mas secretos”. O poema se abre com o batismo, depois passa para a fuga para o deserto, as tentações e o retorno. Satã, como em PP, organiza uma assembleia para decidir qual seria o melhor modo de fazer Cristo ser corrompido, como Adão e Eva o foram, e se prontifica a tentá-lo pessoalmente.

Mas Satã já perdeu muito de seu brilho. Se ele era uma figura trágica no começo do PP e se degenera ao longo do poema, no PR  é uma figura digna de pena. Ele, sem dúvida, mantém seu poder retórico (afinal, é o pai da mentira), mas se vê já que sua compreensão das coisas está completamente ofuscada. Desde sua primeira fala, quando comenta a passagem bíblica que diz que se “esmagará a cabeça da serpente” (que aparece também no final do PP), ele revela que não compreende o sentido real dessas palavras, ao acreditar que poderá manter sua liberdade e império após o “golpe do jurado ferimento”. Mais ainda ele demonstra essa cegueira nas suas tentações. Primeiro ele vem disfarçado, tentando convencer Jesus a transformar pedra em pães. Humilhado e expulso, sai e retorna depois, quando a fome do jejum de Cristo mais começa a torturá-lo, e traz um banquete suntuoso, que é recusado. E assim continua, oferecendo, em sequência, riqueza, armas, glória, poder… em nenhum momento Satã compreende a busca espiritual de Cristo e o porquê dele recusar os dons mundanos, o que faz com que o clímax, quando ele pede pateticamente a Jesus que o venere, seja efetivamente um anticlímax.

Tendo em vista essa falta de ação e a figura debilitada de Satã, não é difícil ver os motivos pelos quais o PR não é tão popular quanto o PP. No entanto, não é por isso que ele seria um poema inferior. Os dotes poéticos de Milton não deixam nada a desejar, e há realmente várias cenas verbalmente poderosas (e, por conta da menor extensão do poema, menos espaçadas entre si), dentre as quais foi difícil escolher uma somente para postar aqui. Mas, por fim, decidimos a favor do trecho final, onde um coro de anjos celebra a segunda queda de Satã e a reconquista do Paraíso.

Antes disso, porém, há a necessidade de falarmos um pouco da tradução. Este poema de Milton é inédito em português. Mas temos na gaveta uma tradução integral já concluída, cujo projeto acho que seria interessante apresentar a vocês, leitores, pois foi uma tradução coletiva.

Os tradutores foram, daqui do escamandro, eu, o Guilherme Gontijo Flores e o Vinicius Ferreira Barth, mais uma colega nossa da UFPR, chamada Bianca Davanzo, e o Rodrigo Tadeu Gonçalves, que já deu as caras aqui com sua tradução do Prufrock. O nosso projeto se destaca por termos dividido o poema em cerca de 400 versos para cada um, mas que foram tão vigorosa e rigorosamente revisados e compostos sob uma tal rigidez de regras (governando quais seriam os termos utilizados, métrica, número de versos, dicção, etc) que se tornou possível obter uniformidade com o resultado final, tornando muito difícil de precisar, senão pela memória, a identidade exata de quem produziu qual verso. E foi um processo relativamente rápido também, concluído em seis meses… o que para 2000 versos do inglês tortuoso do século XVII, modéstia à parte, não é nada mal.

Sendo assim, publico uma amostra, tirada do livro IV, vv. 596-639, consistindo do coro angélico cantando “hinos celestes da vitória” e os versos de encerramento.

Adriano Scandolara
(imagens de William Blake)

        “Vera imagem do Pai, seja entronado
Num regaço de bênção, luz da luz
Gerando, seja longe do Céu, posto
No tabernáculo da carne, humano,
Vagando vasto ermo, em toda parte,
Com modo, estado e hábito que expressam-no
Filho de Deus, por diva força ungido,
Vens contra o Tentador do trono pátrio,
Que foi ladrão do Paraíso, e há tempos
Enfrentaste, lançaste Céu abaixo
Com todo seu exército e vingaste
Vencido Adão, venceste a tentação;
Reconquistas perdido Paraíso,
que a fraude da conquista tu frustraste:
Jamais ele ousará tentar de novo
O Paraíso; os seus ardis quebraram-se:
Pois, se falhara o trono sobre a Terra,
Fundou-se inda mais belo Paraíso
Para Adão e seus filhos escolhidos,
Que tu, ó Salvador, reinauguraste;
Onde seguros viverão, sem medo
De Tentador e tentação jamais.
Mas tu, Infernal Serpente, nunca mais
Nas nuvens reinará; como outonal
Estrela ou raio, tu cairás dos Céus
Pisado por seu pé; e, como prova,
Sentirás a ferida, não mortal,
Por tal repulsa ganha; sem triunfos
No Inferno; e em seus portais Abadom chora
A tua tentativa, então aprende
Temer Filho de Deus, que, desarmado,
Te há de perseguir com voz terrível,
De teus demônicos domínios sujos
A ti e as legiões; pois fugirão
Aos berros p’ra esconder-se num rebanho
De porcos e não serem escorraçados
Antes do tempo, atados em tormento.
Filho do Excelso, herdeiro dos dois mundos,
Algoz de Satanás, ao glório feito
Agora vem e salva a humanidade.”
        Ao humilde Salvador Filho de Deus
Vencedor cantam, renovado pelo
Festim celeste; em júbilo o conduzem,
E ao lar materno anônimo retorna.

        “True image of the Father, whether throned
In the bosom of bliss, and light of light
Conceiving, or, remote from Heaven, enshrined
In fleshly tabernacle and human form,
Wandering the wilderness—whatever place,
Habit, or state, or motion, still expressing
The Son of God, with Godlike force endued
Against the attempter of thy Father’s throne
And thief of Paradise! Him long of old
Thou didst debel, and down from Heaven cast
With all his army; now thou hast avenged
Supplanted Adam, and, by vanquishing
Temptation, hast regained lost Paradise,
And frustrated the conquest fraudulent.
He never more henceforth will dare set foot
In paradise to tempt; his snares are broke.
For, though that seat of earthly bliss be failed,
A fairer Paradise is founded now
For Adam and his chosen sons, whom thou,
A Saviour, art come down to reinstall;
Where they shall dwell secure, when time shall be,
Of tempter and temptation without fear.
But thou, Infernal Serpent! shalt not long
Rule in the clouds. Like an autumnal star,
Or lightning, thou shalt fall from Heaven, trod down
Under his feet. For proof, ere this thou feel’st
Thy wound (yet not thy last and deadliest wound)
By this repulse received, and hold’st in Hell
No triumph; in all her gates Abaddon rues
Thy bold attempt. Hereafter learn with awe
To dread the Son of God. He, all unarmed,
Shall chase thee, with the terror of his voice,
From thy demoniac holds, possession foul—
Thee and thy legions; yelling they shall fly,
And beg to hide them in a herd of swine,
Lest he command them down into the deep,
Bound, and to torment sent before their time.
Hail, Son of the Most High, heir of both worlds,
Queller of Satan, on thy glorious work
Now enter, and begin to save mankind.”
        Thus they the Son of God, our Saviour meek,
Sung victor, and, from heavenly feast refreshed,
Brought on his way with joy. He, unobserved,
Home to his mother’s house private returned.

(tradução de Vinicius Ferreira Barth, Bianca Davanzo Bianeck, Guilherme Gontijo Flores, Rodrigo Tadeu Gonçalves & Adriano Scandolara)

8 comentários sobre “O Paraíso Reconquistado de John Milton

  1. Existe o livro traduzido em português?
    Gostei muito de paraíso perdido… li 2 vezes (ou 3), e queria ler na integra o PR.

  2. Por que não se publicou o Paraíso Recuperado de Milton? será que os editores estão pensando que nós brasileiros não temos capacidade de saborear um poema do sec.XvII traduzido daquele inglês para um Português castiço e poéticamente bem elaborado, como vocês provam com este “aperitivo”?

    1. Olá, Humberto! Agradecemos pelo comentário e pelo entusiasmo. À época ainda estávamos procurando uma possível editora p/ publicação, mas já a encontramos. O miolo do livro já está pronto, logo logo será lançado. Um abraço!

  3. Ouvi a citação desta obra em um sermão religioso. Fez uma menção nobre. Nunca esqueci. Hoje pude saborear como leitor esta delícia. Espero lê-lo todo.

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