Arseny Tarkovsky (1907-1989), pai do cineasta Andrei Tarkovsky, não foi apenas tradutor de poetas de terras distantes (poetas como Abul’Ala Al-Ma’arri, Nizami, Magtymguly Pyragy), mas também foi, ele mesmo, um poeta de uma terra distante. Não por ter passado a maior parte da vida em Moscou, mas por refletir, em seus poemas, o estranhamento e a admiração que nos causa a leitura da poesia árabe, persa, turca e armênia que traduziu. Gostaria de apresentar aqui uma versão de seus poemas (que aparecem, aliás, nos filmes de seu filho), feita por Paulo da Costa Domingos sobre a tradução inglesa de Kitty Hunter-Blair (publicada pela Assívrio & Alvim em 1987).
O Verão Partiu
O verão partiu
e nunca devia ter vindo
será quente o sol
mas não pode ser só isto
tudo veio para partir
nas minhas mãos tudo caiu
corola de cinco pétalas
mas não pode ser só isto
nenhum mal se perdeu
nenhum bem foi em vão
à luz clara tudo arde
mas não pode ser só isto
agarra-me a vida
sob a sua asa intacto
sempre a sorte do meu lado
mas não pode ser só isto
nem uma folha se consumiu
nem uma vara quebrada
vidro límpido é o dia
mas não pode ser só isto
Eurídice
Temos um só corpo
singular, solitário
a alma teve que baste
ali dentro fechada
caixa com olhos e orelhas
do tamanho de um botão
e a pele – costura após costura –
cobrindo a estrutura óssea
sai da córnea voando
para o cálice celeste
para o gelado raio
da roda voadora das aves
e escuta pelas grades
da sua cela viva
o crepitar do bosque e da seara
e a trombeta dos sete mares
corpo sem alma é pecado
é um corpo sem camisa
nada feito sem intenção
sem inspiração, nenhuma linha
insolúvel charada:
quem no fim irá voltar
à pista de dança quando
ninguém houver para dançar?
sonhei com uma alma outra
de um modo outro vestida:
ardia na fuga
da timidez à esperança
espirituosa e límpida
como o fogo habita a terra
sobre a mesa pondo lilases
para que lembrada seja
corre, criança, não pares
pela pobre Eurídice
rola o arco e a gancheta
no mundo roda
até subires uma oitava
no tom alegre, e calma
porque a cada passo a terra
faz soar guizos nos teus ouvidos
bernardo lins brandão
Pouca gente fala dele. Também tenho admiração pelos poemas do Arseny e isso desde a primeira vez que os vi (ouvi) os filmes do filho nos idos de oitenta, quando me pareceram, poema e cinema, indissociáveis.
Tenho esse livrinho. Curiosamente, o tradutor cita 1905 como sendo a data de nascimento de Arseny. Não vi isso em outras fontes. Belo blog! Parabéns!