o poema épico conhecido como as argonáuticas de apolônio de rodes representa uma das (senão a) obras maiores do período helenístico na antiguidade. diferentemente do que pregavam contemporâneos do autor como teócrito e calímaco (este tendo dito: ‘um grande livro é um grande mal’), autores de poemas menores em extensão, como epigramas, e pensadores de uma poética sucinta, apolônio compõe uma épica de extensão considerável: 5.835 versos, que são divididos em quatro cantos em média duas vezes maiores do que um canto homérico. o tamanho total do poema, assim, alcança cerca de um terço da ilíada. nesse poema, trata-se então do mito dos argonautas, bastante difundido na grécia desde pelo menos a época dos poetas arcaicos homero e hesíodo, mas especialmente corrente durante o período helenístico, sendo, por exemplo, tema de um dos aetia de calímaco.
assim, estando a famosa busca pelo velocino de ouro dividida em quatro cantos pelas mãos de apolônio de rodes, nosso foco recai sobre um dos acontecimentos principais do canto primeiro. após a abertura do poema e a listagem do catálogo de heróis que compunham a expedição, passando pelos preparativos da viagem, pelas libações aos deuses e pela despedida de jasão de sua mãe, finalmente acontece a partida da nau e, em um espaço de menos de trinta versos, a chegada até os portões de mirina, na ilha de lemnos. (veja abaixo o trajeto da nau, que parte de iolcos, reino de pélias, e atravessa o mar egeu até mirina, em lemnos, onde se dá o episódio aqui discutido).
o momento da ilha de lemnos constitui, portanto, o primeiro embate diplomático enfrentado por jasão como líder da expedição, o que virá a demonstrar, eventualmente, características notáveis de seu caráter. as habitantes de lemnos, por seu lado, têm uma história singular e especialmente interessante. enciumadas dos maridos que traíam-nas incessantemente com escravas pilhadas da trácia, elas assassinam a todos, abandonam o rei à própria sorte dentro de um caixão jogado ao mar, e por fim tomam o poder. a filha do rei, hipsípile, é então a soberana da ilha. sua figura, longe de ser desimportante nessa sucessão de eventos, congrega em si alguns traços de calipso e de nausícaa, e ainda anuncia outros, como de medeia e, não nos esqueçamos, de dido.
a ilha de lemnos torna-se a ilha dos amores, lugar tão reconhecido na épica de antes e de depois, e ali os argonautas perdem-se em festejos e graças, atirando ao esquecimento os motivos de suas jornadas e as lembranças de suas terras e famílias. ali eles são pegos também pela mentira (comparar a história de lemnos contada pelo narrador, vv. 609-32, com a mesma história contada por hipsípile, vv. 798-826) e pelo desejo carnal; o tempo passa sem que percebam; o mistério e os festejos assumem o lugar da insegurança de ambos os lados. como veremos no texto, é necessária uma força maior que os coloque de volta nos trilhos do fado. hipsípile e as mulheres, cansadas de realizar por si mesmas os trabalhos manuais masculinos (chamados ‘trabalhos de atena’, v. 629), desejam ardentemente a companhia que atraca em seus portos. insufladas de amor por afrodite, planejam seus futuros junto aos heróis.
demais elementos importantes presentes neste trecho, como a ekphrasis do manto de jasão (vv. 721-67) e o símile da estrela com o qual o herói se assemelha durante a entrada em mirina (vv. 774-80), renderiam por si sós dezenas de páginas de análises, e não por acaso são assuntos com os quais a fortuna crítica se debate incessantemente. não entraremos nessas discussões neste espaço, mas uma leitura mais detida desses versos sempre valerá em função de novos esclarecimentos do sentido não só deste episódio mas também das motivações e sentimentos desses personagens que compartilham um cenário tão complexo como é o da enormemente acadêmica épica helenística. creio que, para quem se interesse, esse seja um dos capítulos mais deliciosos e intrigantes de toda a épica de apolônio de rodes, justamente por ser tão rodeada de enganos e incertezas, dessa atmosfera de poderes divinos que sugerem o erotismo, e que ao mesmo tempo demonstram-se tão dolorosamente trágicos.
por fim, sobre a tradução: utilizei a edição crítica estabelecida por hermann fränkel (1961), e o metro que escolhi neste projeto, para a trasposição do hexâmetro dactílico para o português, é o verso de doze sílabas.
vinicius ferreira barth
The Lemnians
Art Gallery of NSW, Sydney
William Russell Flint
Scotland 1880-1969
The Lemnians c 1924
oil on canvas
argonáutica 1.605-914
Até a noite, naquele dia, um vento bom |
605 |
soprou com força, esticando a vela da nau. |
|
Mas ao tombar do sol, o abandonar do vento, |
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chegaram remando à rochosa Lemnos Síntia. |
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Ali, de uma vez só, os homens do povo foram |
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mortos pelas mulheres no ano anterior. |
610 |
Pois tendo rejeitado as esposas legítimas, |
|
execrando-as, desejo bruto tinham pelas |
|
cativas, que eles despojavam do outro lado, |
|
pilhando a Trácia; os escoltava o vil rancor |
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de Cípris, pois há muito a ela não honravam. |
615 |
Oh, miseráveis! Insaciadas de ciúmes. |
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Não somente os maridos com elas mataram |
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na cama, mas os homens todos, p’ra que não |
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houvesse no futuro a paga do massacre. |
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De todas, só Hipsípile poupou o velho |
620 |
pai, Toante, que sobre a multidão reinava; |
|
e em um baú vazio lançou-o ao mar, p’ra assim |
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quiçá escapar. E pescadores o arrastaram |
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p’ra ilha que era antes Eneia, e então Sicino, |
|
por causa de Sicino, gerado de Eneia, |
625 |
a ninfa, após ter se deitado com Toante. |
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Vestir os brônzeos trajes e os bois pastorear, |
|
e arar as plantações de trigo era mais fácil |
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p’ra elas que os trabalhos de Atena, co’ os quais |
|
se ocupavam outrora. No entanto, frequente |
630 |
pousavam sobre o vasto mar os seus olhares, |
|
temendo horrivelmente o retorno dos Trácios. |
|
Por isso, ao terem visto junto à ilha a Argo, |
|
iam em multidão das portas de Mirina |
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vestidas para a guerra, à praia despejando-se, |
635 |
como Tíades carniceiras, pois talvez |
|
viessem Trácios; e Hipsípile Toantida co’ elas |
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vestiu do pai as armas. Receosas desciam |
|
sem fala; tal o horror que sobre elas pairava. |
|
Entretanto, os heróis despachavam da nau |
640 |
o ágil mensageiro Etálida, encarregado |
|
de portar as mensagens e o báculo de Hermes, |
|
seu pai, que concedeu-lhe memória infinita. |
|
Nem mesmo agora, entrando em imprevistos vórtices |
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do Aqueronte, em sua alma penetrou o oblívio; |
645 |
pois esta tem em seu destino a infinda troca, |
|
que a põe ora entre os subtérreos, ora entre os homens |
|
vivos sob o raiar do sol. Mas por que as lendas |
|
de Etálida é preciso que eu conte integrais? |
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Pois ele convenceu Hipsípile a acolher |
650 |
quem vinha ao pôr do sol; mas a nau não soltaram |
|
nem na aurora, por causa do sopro de Bóreas. |
|
E as mulheres de Lemnos, vindo pelas pólis, |
|
reuniram-se, como ordenado por Hipsípile. |
|
E quando estavam unidas em assembleia, |
655 |
seu discurso impelia às outras desse modo: |
|
“Amigas, bom será darmos gentis regalos |
|
aos homens, coisas que convêm levar à nau, |
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víveres, vinho puro, p’ra mantê-los fora |
|
de nossas torres, e que por necessidade |
660 |
não venham cá a saber verdades e se espalhe |
|
um rumor grave; pois atos vis operamos, |
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e não será de agrado a ninguém, se souberem. |
|
Em minha mente surge agora tal astúcia; |
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mas, se de vós alguém tiver melhor propósito, |
665 |
que levante; também p’ra isso vos chamei.” |
|
Assim falou, e sentou no assento de pedra |
|
do próprio pai; e então ergueu-se a ama Polixo, |
|
que tinha vasta idade sobre os frouxos pés, |
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e num bastão se apoiava, ansiando em falar. |
670 |
Ao seu redor estavam quatro jovens damas; |
|
distinguia-se delas pelas alvas comas. |
|
E estando ao centro da assembléia, debilmente |
|
ergueu o pescoço sobre o curvo dorso, e disse: |
|
“Os regalos, como a própria Hipsípile intenta, |
675 |
aos estranhos mandemos, que é melhor assim. |
|
Mas e a nós, como sustentar-nos a nós mesmas |
|
se nos ataca a Trácia tropa ou qualquer outra, |
|
como acontece aos homens com certa frequência? |
|
Assim é o caso desta inesperada turba. |
680 |
E se algum dos divinos isso afasta, infindos |
|
e outros males vos esperam, piores que a guerra, |
|
quando todas as velhas mulheres morrerem, |
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e a vós jovens, inférteis, vier velhice trágica. |
|
Como resistirão, ó miseráveis? Vão |
685 |
acaso por si sós os bois trazer o arado |
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p’ra vós, e abrir os sulcos, repartir a terra, |
|
e à translação de um ano recolher espigas? |
|
Pois eu, embora as Queres quanto a mim se ericem, |
|
acredito que no próximo ano eu me cubra |
690 |
de terra, após ter recebido ritos fúnebres, |
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como é devido, antes que a ruína se aproxime. |
|
Às mais jovens aconselho pensar bem nisto. |
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A vossos pés se avista, pois, escapatória, |
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se confiardes as casas e todos os vossos |
695 |
bens e a luzente cidade às mãos dos estranhos.” |
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Disse; e houve na ágora rumor. Pois foi do agrado |
|
aquela fala. E então ergueu-se novamente |
|
Hipsípile, e foi tal a sua fala em resposta: |
|
“Se tal resolução é, pois, de agrado a todas, |
700 |
com toda pressa envio a mensageira à nau.” |
|
E então a Ifínoe proferiu, perto postada: |
|
“Levanta, Ifínoe, e vá encontrar-se com tal homem |
|
e o traga até nós, quem lidere tal jornada, |
|
p’ra que lhe conte a amável decisão do povo; |
705 |
e se lhes for do agrado, invita-os a adentrar |
|
a nossa terra e pólis de modo amigável” |
|
Assim, findou o encontro e partiu para o lar. |
|
Também partiu aos Mínias Ifínoe; e a ela |
|
eles perguntaram a intenção da visita. |
710 |
A tanto respondeu com tal fala e relato: |
|
“Até aqui me enviou a filha de Toante, |
|
Hipsípile, a chamar da nau quem seja o líder, |
|
p’ra que lhe conte a amável decisão do povo; |
|
e se a vós for do agrado, invita-os a adentrar |
715 |
a nossa terra e pólis de modo amigável.” |
|
Assim falou, causando agrado o bom discurso. |
|
Supuseram que, morto Toante, a filha Hipsípile |
|
teria herdado o trono e reinava; com pressa |
|
mandaram Jasão, e eles mesmos se aprontaram. |
720 |
Prendeu nos ombros, obra da deusa Tritônia, |
|
o ambifácie manto purpúreo, dado a ele |
|
por Palas, no início da construção da Argo, |
|
quando ouviu dela como medir os seus bancos. |
|
Seria até mais fácil levantar os olhos |
725 |
ao sol, que contemplar tamanho enrubescer. |
|
Pois era rubro ao centro, mas todas as bordas |
|
eram purpúreas; e em cada margem havia |
|
galantes adornos bordados com destreza. |
|
Viam-se ali os Ciclopes em labor eterno, |
730 |
forjando o raio para o Zeus supremo; agora |
|
quase todo fúlgido, um só facho faltava, |
|
que estava a ser forjado em marteladas férreas, |
|
cuspindo um fumo tórrido o faustoso fogo. |
|
Via-se também ambos os filhos de Antíope |
735 |
Asopida, Anfíon e Zeto; e Tebas próxima |
|
inda indefesa, e cuja fundação fixavam |
|
dispostos. Sobre o ombro Zeto carregava |
|
o pico de um abrupto monte, como obreiro; |
|
com ele ia Anfíon, cantando co’ áureo fórminge, |
740 |
e uma rocha duplamente grande o seguia. |
|
Depois, havia Citereia em grossas comas |
|
portando de Ares o violento escudo; do ombro |
|
esquerdo as dobras do seu manto deslizavam |
|
por debaixo do seio; isso se via nítido |
745 |
também no escudo brônzeo que ela tinha à frente. |
|
Viu-se um espesso campo de vacas; por elas |
|
combatiam os Teléboas e os Electridas; |
|
uns defendiam-nas, e os outros, bandidos Táfios, |
|
tentavam furtá-las; e de cruor cobriam-se |
750 |
os campos; e arrasavam-se os poucos pastores. |
|
E ainda havia duas bigas em combate. |
|
À frente Pélops guiava e agitava as rédeas |
|
e junto a ele estava a consorte Hipodâmia; |
|
Mirtilo ia no encalço urgindo seus cavalos; |
755 |
e com ele Enomau, que alçava à mão a lança |
|
e caía ao quebrar-se o eixo do seu carro |
|
quando prestes a varar o dorso de Pélops. |
|
E havia o miúdo Febo Apolo, que flechava |
|
quem pelo véu queria arrastar sua mãe; |
760 |
este era o grande Tício, de Elara nascido, |
|
mas criado e renascido pela deusa Gaia. |
|
E ali também Frixo, o Mínio, como se ouvisse |
|
o carneiro, como se este mesmo falasse. |
|
765 |
|
terias a esperança de ouvir falas sábias, |
|
e longo tempo os olharia co’ esperança. |
|
Eram tais os presentes da Tritônia Atena. |
|
e ele tomou na destra o dardo, que Atalanta |
|
um dia deu-lhe em Menalo como lembrança, |
770 |
em júbilo o encontrando; ansiava, pois, segui-lo |
|
na jornada; mas ele mesmo a proibira, |
|
temeroso das duras querelas do amor. |
|
E ele foi até a pólis, qual fulgente estrela |
|
que, encerradas dentro dos novos aposentos, |
775 |
as moças desposadas veem se alevantar, |
|
e que pelo ar escuro seus olhos encanta |
|
em belo enrubescer; e a dama então se alegra |
|
saudosa do homem que foi viver entre estranhos, |
|
a quem seus pais para noivar a mantiveram; |
780 |
de tal modo rumava o herói até a pólis. |
|
E quando as portas dessa pólis adentrou, |
|
seguiram-no as mulheres dali em dilúvio, |
|
encantadas co’ estranho; mas co’ os olhos fixos |
|
no chão, firme seguiu até alcançar o paço |
785 |
de Hipsípile; na chegada, as servas abriram |
|
o portão duplo, disposto em bem feitas tábuas. |
|
Ali Ifínoe, tendo passado um belo pórtico, |
|
o acomodou por sobre um luxuoso assento |
|
frente à senhora; e ela, olhando-o de relance, |
790 |
corou a face virginal; no entanto, embora |
|
tímida, dirigiu-lhe palavras amenas: |
|
“Estranho, por que tão longo tempo ficaram |
|
p’ra lá dos muros? Não há homens na cidade, |
|
pois foram, peregrinos, a lavrar os campos |
795 |
da terra Trácia. E contarei, sincera, todos |
|
os nossos infortúnios, p’ra que vós saibais. |
|
Quando meu pai Toante governava o povo, |
|
os lares Trácios que existiam do outro lado |
|
eram pilhados pelos nossos, que desciam |
800 |
das naus e de lá traziam infindas moças |
|
e espólios; o rancor destrutivo da deusa |
|
Cípris cumpria-se, lançando-os à imprudência. |
|
Pois repugnavam as legítimas esposas, |
|
expulsando, insanos, as mulheres das casas |
805 |
e possuindo as cativas, espólios da lança, |
|
desgraçados! Por quanto tempo suportamos |
|
a ver se as mentes mudariam; mas em dobro |
|
sobrevinham os maus tormentos. Desonravam |
|
os filhos nos salões, criando raça umbrosa. |
810 |
Assim, virgens incólumes e mães viúvas |
|
vagaram abandonadas pela cidade. |
|
E nunca um pai tão pouco amor cedeu à filha, |
|
mesmo se atormentada diante de seus olhos |
|
sob mãos de uma cruel madrasta; e nem os filhos |
815 |
defendiam, como antes, as mães de injustiças; |
|
e nem irmão co’ a irmã se importava sincero. |
|
Mas eram as donzelas cativas, nas casas, |
|
nas danças, na ágora, em banquetes, admiradas; |
|
até que um deus em nós inflou violenta audácia, |
820 |
p’ra não mais receber nos muros quem voltasse |
|
da Trácia, para que julgassem o que é justo, |
|
ou para outro lugar partissem co’ as cativas. |
|
Tendo implorado, então, pelos seus filhos homens |
|
que estavam na pólis, retornaram aonde |
825 |
estão até agora, os campos níveos da Trácia. |
|
Ficai aqui para morar; se vos agrada |
|
permanecer, em consequência vos darei |
|
a distinção de Toante, meu pai. Não creio |
|
que vás a terra escarnecer, pois é mais fértil |
830 |
que as outras tantas ilhas que existem no Egeu. |
|
Pois vai agora à nau e diz aos companheiros |
|
estas palavras, e da pólis não te ausentes.” |
|
Falou, dissimulando a matança ocorrida |
|
aos homens; e isso foi o que ele respondeu: |
835 |
“Hipsípile, muito agradável é a ajuda |
|
que encontramos, e co’ a qual tu nos regalaste. |
|
Retornarei à pólis quando em ordem tudo |
|
eu relatar. Que a ti pertença a primazia |
|
e a ilha; isso declino, mas não por desdém, |
840 |
e sim por labores severos que me impelem.” |
|
Disse, tocou sua mão direita e se voltou |
|
em seguida; incontáveis moças ao redor |
|
rodavam ardentes, até que ultrapassasse |
|
os portões. E com bons vagões foram à costa |
845 |
carregando inúmeros presentes enquanto |
|
ele contava em mínimos detalhes toda |
|
a proposta então feita a ele por Hipsípile; |
|
e, logo, facilmente levaram os homens |
|
p’ra entretê-los. Pois Cípris verteu-lhes paixões, |
850 |
graças a Hefesto plurisagaz, p’ra que um dia |
|
possa de novo Lemnos ser lar para os homens. |
|
Então rumou ao palácio real de Hipsípile |
|
o Esônida; os demais foram aonde quiseram, |
|
a não ser Héracles, que junto à nau ficou |
855 |
por sua escolha e com ele poucos consortes. |
|
E a cidade alegrou-se com danças, banquetes, |
|
enchendo-se co’ as fumaças dos sacrifícios; |
|
sobretudo ao famoso e imortal filho de Hera |
|
e a Cípris com danças e imolações rezavam. |
860 |
Assim, dia após dia, atrasava-se o passo |
|
da jornada; e mais longo tempo ficariam, |
|
não tivesse Héracles apartado os consortes |
|
das mulheres, dizendo a eles tais censuras: |
|
“Malditos, a morte de um parente nos toma |
865 |
de nossa terra mãe? Ou p’ra arranjar noivados |
|
que viemos de lá, deixando as nossas mulheres? |
|
Agrada aqui morar e arar campos de Lemnos? |
|
Pois poucos louros colheremos se ficarmos |
|
tanto co’ estranhas mulheres. Nenhum deus há |
870 |
de conceder às nossas preces velo autômato. |
|
Que volte, então, cada um por si; e sobre o leito |
|
de Hipsípile p’ra sempre o deixai, até que Lemnos |
|
povoe com garotos, alcançando-o a glória.” |
|
Ralhou assim co’ bando; olhar nenhum se ergueu |
875 |
a ele e nem palavra alguma, oposta, ouviu-se; |
|
assim, saindo da assembleia se aprontaram |
|
com pressa. As moças vinham correndo, ao sabê-lo. |
|
E como abelhas zunzunindo sobre belos |
|
lírios, fluindo da pétrea colmeia, e os campos |
880 |
do entorno alegrando, em voo colhendo os doces |
|
frutos de lá e de cá; assim essas mulheres |
|
lamentavam-se em fluxos circundando os homens, |
|
e com mãos e palavras saudaram a todos, |
|
rogando aos deuses que tivessem bom retorno. |
885 |
Também Hipsípile rogou, tomando as mãos |
|
do Esônida, e vertendo lágrimas à perda: |
|
“Vá, e que permitam teu retorno ileso os deuses |
|
co’ os consortes, levando ao rei dourado velo |
|
como tu desejas e queres. Esta ilha |
890 |
e o cetro de meu pai sempre estarão à espera, |
|
se acaso aqui voltar quiseres, no retorno. |
|
Congregarias, fácil, povo inumerável |
|
de outras cidades; mas esse desejo tu |
|
não terás, nem eu mesma prevejo tal fim. |
895 |
Lembra contudo, seja indo ou retornando, |
|
de Hipsípile; e contente cumprirei qualquer |
|
dever, se um filho teu os deuses me trouxerem.” |
|
Respondeu-lhe comovido o filho de Esão: |
|
“Hipsípile, que obtenhas grandes benefícios |
900 |
por diva graça e coisas guardes em teu peito |
|
melhores que eu; em minha pátria basta a vida, |
|
cedendo-o Pélias; oxalá os trabalhos findem! |
|
Mas se à Hélade é meu destino regressar, |
|
tão distante, e tu deres à luz um garoto, |
905 |
quando crescido expede-o p’ra Pelasga Iolcos |
|
p’ra de meus pais curar o sofrimento, caso |
|
encontre-os inda vivos e, livres do rei, |
|
que deles cuide no calor de seus salões.” |
|
Foi em primeiro lugar, então, para a nau; |
910 |
e os outros heróis seguiram, tomando os remos |
|
e os assentos em linha; e Argos desatou |
|
a amarradura do banco rochoso. Então |
|
batiam n’água manejando os longos remos. |