
raimundo carvalho (1958, pirapora) é o meu mestre. aprendi latim & virei tradutor por causa dele, virei professor por causa dele. “por causa dele” é sempre drástico, talvez não seja tanto; mas preciso reconhecer que, sem as mil conversas cafeinadas, à tarde, na sua casa, eu não teria aprendido um inúmero de coisas. a principal, & que não entra nunca no currículo, é que aprendi a ler poesia. vejam: eu – graduando metido a besta, escritor aspirante & deprimente – já lia, compulsivamente, porém foi com ele aprendi a ler com o tempo que isso demanda. & com isso, espero, também aprendi um tanto sobre escrever.
descobri ao longo dos anos que o sr. carvalho era poeta. ótimo poeta. desconhecido, praticamente. que, para além de professor de latim na ufes, tradutor de virgílio (bucólicas, 2005), estudioso de murilo mendes (murilo mendes: olhar vertical, 2001), &c., ele fazia o próprio desde os anos 80; estreou com sabor plástico (1983), depois aos poucos, foi lançando brinde (1990) & conversa com o ciclope (1997), além do belo livro infantil circo universal (2001), em parceria com ivan luís mota. sua trajetória, apesar de tudo, é discreta: raimundo não parece interessado em entrar nas rodas literárias, trocar bombons, ou coisa parecida; além disso, publicou parte da sua obra no espírito santo, o que, em termos nacionais, infelizmente tem significado silêncio (basta ver o caso de sérgio blank, reinaldo santos neves & paulo sodré, que já apareceram no escamandro, embora a maioria das obras de raimundo tenha saído ainda em minas gerais).
em vez de pegar um poema publicado em livro, preferi pegar “catábase“, que saiu publicado na revista farenheit 451, n. 3, em 1989, & nunca – infelicissimante – entrou em livro. a catábase em questão – essa descida aos infernos – é um delírio urbano pela noite belorizontina (raimundo formou-se em letras & defendeu seu mestrado sobre murilo mendes em bh), um liquidificador culural (“catábase com macarronada”) dos anos 80, onde entram antropofagia, cultura pop, maconha, virtuose literária, tudo num processo paranoico em que a paronomásia e deformações de gosto joyceano por vezes parecem tomar conta do pensamento. em resumo “uma enciclopédia de todos os males / um álbum das misérias do espírito”, entoada por uma espécie de orfeu transformado em “narciso fudido”, ou mesmo uma “palidez kitsch de gueixa pornô”.
guilherme gontijo flores
CATÁBASE (1989)
atado a ti loucura aqui estou
dentro do lado de fora da lei
estarei no céu com minha mãe
estarei no seio da virgem
constelação consternada
signos noturnos oportunos
espectrais vitrais travam
babélicas babas
e o rádio urrando nestarde
estarei rei de mim mesmo
a esmo no ermo no meio
termomentâneo tormento
remo rumo úmido incerto
incesto duvidoloso
entrada franca na retranca
anca catábase com macarronada
fanfarronronada dominguante
frasco fracos cacos quintais
infernos sombrios árvores
a pressentir aproximação
música atemporal emana
fim de sema símil símio
assobio aço frio punhal sonoro
choro chorus cachoeira asco
penhor penhasco penacho você
deveria prosseguir não nessenda
sem zen zebudistante distinto
discjockey cavalgando crina
onda curta sua língua enrola
melomaluco palavriadonis
sesta sexta cesto sentido sol
dardos no abismo ao azar
ziguezague das águas danzol
no ritmo marítimo das rimas
achadas na praia do sol ao raiar
na maranha das malhas das algas
marinhas rinhas de galos e leões
gatos gângster stars babás
odalisca belisca isca e whiskey
parafernália saturnália austrália
alto austral astral gélido ataúde
epidemia bem al gusto e ar old
de campus de batalha espadachinfrim
espasmódico olhar médico
palidez kitsch de gueixa pornô
stripstress haraquiri de araque
no irã no iraque truque trote traque
cretenses palácios lábiodegradáveis
astrolabirínticos touros ouro
nos milharais milhares milhafres
negros sinais decifra e dê cifra antes
que aurora estacione seu carro
ponha manguinhas e dedos de fora
lançai redes pérolas per olas
aos porcos procos da rainha
ateia fogo à teia daranha
que sustinha o teto azul donde
tombam gaivotas e pombos
plúmbeo templo de augúrio agouro
torpes torpedos teus peidos
amor primor primata mamiferoz
primeiro ama depois mais
até à morte marte antiarte
manha fronha broa bronha
tantamanhas manchas lençóis
de água do canal do homem de la
mancha original et imaculata
de cerveja ora pro nobis coito
couve alface joio jóia rala trigo
trigueiro gueto de pardos pardais
asfódelos no asfalto alto brotam
brutos brotos bambu e samambaia
saia de dentro do atro antro onde
jaz mim tim sim fim rim dim dom
cabeça-me mucho muchacho macho
machucaiu no soneto neto do eco
avestruz avessa ao vôo vômito
pentelho pentâmetros tâmaras
na boca do vaternura a essa hora
agora madruga mandrágora e cérebro
cérbero serpente pensa na porta
mortas morde o rabo das palavras
goma de gnomos sílabas bacilos
letras estrelas elétricas ciladas
no mar de sagazes sargaços
garças pairam na poeira da praia
linha limítrofe do horizonte
bisonte perdido transatlântico
pacífico sul azul manhã
ais jorros ojos jarros de flores
ruflo de tambores boreais a bordo
borboletras aos borbotões de rosas
iguapós iguarias mananciais
remanso ganso descanso descalço
quem lucra com a cura da loucura
a essaltura do campesinato abaixo
o fluxo das palavras da horda ordeira
ordinário marcha ré dominó
sempre viva vertigem no banheiro
mãos testa vazando suor odor
dos canos de esgoto subcutâneos
súbito tremor alô olá quem chama?
é a morte? Pois então ó dama
vai bater em porte de outro porte
mau das pernas e de má sorte
corta essa breca à beça necas
nex nox nix pois a letra lepra
o espírito esperto chega perto
do caroço negra mascareta
vida reta ou arretada pudera
pudinastia das titias enquanto
a hera das eras vaivestindo lenta
os vestígios e litígios dos muros
rede de paredes hit parade
há janeiros na janelas esperanto
carolina e a banda passar pra lá
dó réu missalfacebolas belas
hálito hábito habito exílio hesito
êxito revérbero do verbo na vidraça
dos olhos da raça roça o riso
febo efebo em febre bofe sarado
cuzinho depilado ecce homo
deu pinta pilatus no tablado
papirado em busca do secreto charme
invocoráculos óculos e ósculos
inoculado veneno pelos molares
olhares exaltados perfuratrizes
no palco talco coisa e talvez
amanhã quem sabe sobe ou sabre
sobra sobral pinto torto morto
farol faraó de apagado porto
parto a cada escada acima a cismar
sozinho adivinho velho e novinho
noviço no vício viscoso vi coisas
biscoito fino e grosso pras massas
cilindros lindos silente atmosferida
noite foice martelo pulsando
relógios elogio demente demoras
alibabou sob o apelo da pele
permeia esperneia espirra esperma
pelas pernas garoutros gatunos
rei dos hunos átila invadimpério
romano dos cinco sentidos
sentados neste bar bárbaro
ritalee deitado e quem me livraria
ou sebo essa dor eu sei de cor a cor
do alcorão e das cartas dalcanforado
furado papo pop pós pó de arroz
no arrazoado e cândidas canjas
monjas manjares esgares jantares
à luz de velhas ilustres atoalhas
atalhos caminho de mesa e banho
comensais diários horários otários
tempo rio corrente arranca âncora
do rancor recorrente quem rente
margem está morre afobado
brado bardo berro urro arre!
cessar fogo fátuo brilho artefato
roupa suja tanto fede em casa
no jornal voraz varal se lava
expõe expoente poente ponte
bússola sol sola galé ralé lelé
alegre regalo tristes trópicos
abuso aliterativo câmbio de letra
7 pintando novesfora nosferatu
peste política nos postes hostis
hostes há de ir ao hades ardendo
ordenhando lenha penha brenha
a pantera era negra ou cor de rosa
choque batalhão chic achincalha
bem chilique tigre de papel picado
picadeiro píncaro ícaro pícaro
pé na cova ova cavanhaque conhaque
ianque inhaca ao som de falsa valsa
alça do sutiã coçando saco soco
oco eco de duelo de elos e elas
merdiz como perdiz o sapato zapata
no meio da verde mata vermelho verme
ver-me assim nuca mais cai na caçapa
opa opalas antenas mil cenas hábeis
contábeis tábuas pedra de toque
toquinho viu nisso demorais demais
nem menos memória dos momentos
vernissacanagem na caverna primitivos
cabeças futuristas rolando roleta
russa cassino caça níquel míssil
delatando viralatindo vociferoz
escrita mosaico inscrito na noite
sonhos desvarios vários varíola
luta carnal com o vazio vasilha
ilha de inquietos quitutes frutas
frauta rude grude leituratura
de trás pra diante deixada antes
que cabal manuscrito roído
catálogo das naus dos insensatos
incensados sátiros céticos
homem tu és húmus e o nome
nume é o número um dois e depois
driblar mal estar trabalhando
mais valia nada fazer do que
se foder à mercê do poder
cupidez consumo compulsivo
funesta festa ninfetas infectas
rapaz e amor rubor no umbigo
biga corceis trottoir de guerreiros
hititas tantãs titãs dantanho
idade ouro aderente à calcinha
da neo-republiqueta das bananas
dinamite roberto carlos imperial
palácio do planalto baixos planos
debaixo dos panos plainando no aero
porto seguro acidente geográfico
encontro cantos opacos no parque
lábios de centauro ninfa nenúfar
lua moeda de prata no lago imago
no âmago estilhaça vidraça
espelho ondulante daguardente
canino sobressalto sobre a relva
macio catre de cio e ócio aciona
a cia cicia segredo medo demo
um pássaro pousa na paisagem
chuvindo luz piscando bimotor
serena arena sereia areia
arco-íris tênue cemitério dautomóveis
tá tá eu sei tartamudeio até morder
os dedos desse dia a diabólide
em diante mão única esperança
é a última que morre na praia
ondina batendo caracol jacaré
levante obreiras formigalha
papai pipipoca polícia parando
medo nenhum soldadinho de chumbo
o delírio é um só ou há vários calvários?
extinto o instinto a estante o êxtase
exquisofrêmito mito fala falindo
totó totem telex sed lex cosmoagônico
nanico mico macaco pater origem remorta
futuro inseto insosso osso sabor
sabonete de plástico subaco baco
maculelê afrodizia no selvagem silêncio
lenços pensos insipidez ambiental
ficção de costume sôfrego esfrega
gemer segundo saint genet
paixão peixão escamas cama mucamas
dança bem o bunda meu boi foi não foi
meras indicações cínicas
para quando pintar clímax
ébrio lépido elíptico lebre
equilíbrio brio brilho áspero astro
ostra extra espera peras zoroastro
oi ai ei uiiiiiiiiiiiiii oh hein hum
nem querer ser fernando pessoa nenhuma
receita poética? receie tá!
abominável velha mina de morro velho
descida diária aos infernos
lenga longa das saúvas viúvas
de mário de andróide preso na rede
semiótica sem minhoca na cabeça
do dedo lelé da cucaracha cuja cara
coralina culinária urina urânio
doce gerâneo girassol rol besteirol
bosta besta best seller merdieval
aval emenda recomenda remendos
litelorota cricri titi cocô
tudo mais vai pro inferno meu bem
crasso arrastar das patas no chão
de estrelas suco do sucesso cessou
fim de papo pro ar risco riso horrível
barango tango último em paris
coimbra cãibrasil comédia
idade da razão ração noção
danação donna summer time square
esquiando in the sky para trás
disculpariu modesto mordaz
devo ir com mais sede à sede?
troca troca com o anjo da guarda
atrás do guarda-roupa queda
para isso o paraíso parapeito
paralelepípedo para suster
o corpo na vertigem vertente
tente ver o vento no abismo
ébrio adentro o adro abro
a fera espera no centro da esfera
zero zero eros vezes eros zero
mater matemática flor de lis
boa melhor que mal me queiras
sobrado soçobrado só sobrou
melodia da muralha das lamúrias
enxame de xamãs em chamas
fio de ariadne horas a fio
de alta tensão tecendo rede
de balanço de dados dadá
deserto de desejo beduíno
desejo de deserto babuíno
nos bidês biritas biribas
lufadas de fadas fardadas
rendinhas chapeuzinho vermelho
com sete mil anões senis senões
sinais na floresta de signos
zodiacais do porto rico ri ateu
pé cada sacada sacuda bastardo boi
da cara preta pretinha no capim
neo neon onã num nem nada não
nunca mais ou menos money manes
outro lado da moeda corrente
cascata de moinho de vento lento
lesto mesto besto testosterona
isolado a lado das comentiras
bem ao sul do sudão num vulcão
num harém dum sultão além do japão
nos embalos de sabbat à noite
descida aos inferninhos de cobra
cabras lagartos abracadabras
amar o mar de leite sorvete
prazer a prazo raso leito de rio
pular fora do imaginário popular
escritarada escritura sangrada
pentateuculhões palimpsesto de lixo
prolixo passado a limpo no limbo
onde tenras crianças servidas
a comunistas num ágape natalino
cristalino vinho bebido num crânio
alquimista num banco de sangue
réus vítimas expiatórias
da quebra do tabu da tábua da lei
ocaso aurora das torturas
tártaro tartarugas rugas
happy réptil happy end juízo final
maracanã clã bataclã bodas de canaã
família festim tintim por tintímpanos
tilintar do gelo nos copos aos poucos
ouvidos moucos caindo cacareco
sem piedade ou terror matar o avô
pai de santo babalorixarada
o que é o que é que é um outro
pasolini expelindo diabo pelo cu
do frade cidade dos cimérios
satã heavymetalúrgico do abc
loucas virgens acendei lâmpadas
derramai óleo nos olhos do amante
uma enciclopédia de todos os males
um álbum das misérias do espírito
humano hermano meu semelhante
à imagem de deus adeus dará
tarot torah tarol tarado tocai
de tocaia nessa não senhor sonhar
sonhei sonhara arames farpados
pedra sangue poeira piral e cal
um fiapo de verso preso no dente
a doutrina trina prima revelada
obra manobra mágoa de mago
sábio charlatão mau ladrão
pança cheia na ceia de pã
orfeu sem fôlego narciso fudido
nu nulo pulo no nihilo
(raimundo carvalho)