eu começo depois da escrita, toda escrita começa depois da escrita.
(luís quintais)
eu já falei aqui sobre o meu gosto pelo acaso. ele é maior no caso de livros de poesia, porque abri-los ao léu é uma arte, porque meter a mão desatenta numa estante de livraria (preferencialmente um sebo) & arrancar dali alguns versos é um esporte que pratico sempre que posso.
numa dessas, me deparei com mais espesso que a água (2008), de luís quintais (n. em luena, angola, 1968), radicado em lisboa. é uma poesia árida. mental. dura mesmo (“afinal o amor é cosa mentale, caixa espectral”). como se pode ver em “mente”, poema que abre o livro:
Mente
Uma coisa-movimento,
assim, ao abrir a porta, e dentro
a música de a lembrar.
“nada de estéticas com o coração” (álvaro de campos), é a frase que me vem à mente lendo um poema desses, feito pedra a quebrar nossos telhados de vidro. mas troquei, como sempre a ordem das coisas. luís quintais é antropólogo social, professor de antropologia na universidade de coimbra; tem um livro sobre psiquiatria forense intitulado franz piechowski ou a analítica do arquivo (2006); o que explica parte da sua poética. mas o que interessa nesses casos, é a consonância desencontrada dos empregos: maior que seu trabalho acadêmico, a sua produção poética já tem mais de década. a imprecisa melancolia (1995, que ganhou o prêmio “aula de poesia de barcelona”), lamento (1999), umbria (1999), verso antigo (2001), angst (2002), duelo (2004, que ganhou os prêmios “pen club de poesia” & “luís miguel nava”) & canto onde (2006) antecedem o livro de 2008.
nesse percurso, que pude conferir em parte graças à internet, o processo intelectivo de desnaturalização do suposto natural parece constante, um argumento antropológico que invade a poesia & se faz nela:
Natureza
Humanos?
Qual a diferença,
a ínfima dobra,
que faz a diferença?
por isso a influência explícita de borges (7 poemas com esse título) & stevens (este no poema que encerra o livro, mais abaixo). ao longo desse movimento, o real se revela como construto humano (“a metáfora da alma / será ainda a melhor dádiva / deste corpo tão eficiente e tão pobre”), designação de um vazio que funciona também como cárcere – ele está lá, mas só pode estar lá porque criado em quem o designa como tal e não pode escapar da própria criação (“a linguagem inventada dilacera-me”). o que resta ao poeta é, portanto, a descrição desse real, ou melhor, criá-lo na poética, com todo o risco que isso possa representar: “dobram-se como árvores, as frases, / sob o vento que veio do nada”. ou então, se mais positivo, “mudar a regra a meio do jogo / será o que melhor nos qualifica”
guilherme gontijo flores
Do gelo
Para J G Ballard
À psicologia profunda tudo devemos.
Acima de todas as coisas, devemos-lhe
o que não comunica, o que a inocência
e o esquecimento traem.
É à ímpia hipótese que tudo devemos:
que no cérebro espelha abominações
e que nos faz balbuciar o seu fogo
e o seu reino.
As lições do gelo são a melhor explicação
da arte das cesuras e dos caprichos:
o que não fará certamente a cidade,
o que não compõe um segredo
que não seja a plena paixão do ilegível.
Psicogeografia
Como nos salvámos, ainda que só por instantes?
Recusando mapas, designando ocasos,
espreitando
a intransparência do vidro das casas
após a entropia que devora famílias.
Salvámo-nos por inquietação móvel,
por solidão contrafeita
e vigilante.
Ave
Uma ave agonizante
entrou-te no quarto,
apenas uma sombra
que se enlaça
noutra:
assim definiste
a memória,
a cidade
que se mineraliza
quando
rodeias
essa sombra-ave
com os dedos
apavorados.
Passos
Escutaste os passos
no quarto
semi-escurecido
pela tua derrota?
Não eram teus,
mas do que amaste:
os passos
do que esqueces.
Borges (1)
O cão chama-se agora Borges.
Num sítio de espelhos onde os nomes se encontram
o cão responde ao nome recente
no seu modo-gume de responder.
Assim é todo o reconhecimento.
Antes de chegar à nossa porta
o cão teria outro nome,
e antes dessa porta,
outro nome haveria de ter o cão.
A infinita regressão dos seus nomes
e das portas que o receberam
traz-nos o eco das infatigáveis decifrações.
O cão adormece na sala.
Os sonhos do cão contêm o colapso dos nomes
na sua carne.
Aí escrever-se-á
o que não saberemos ler.
Homenagem à adjectivação
Turbulento e caótico é o mundo, dear.
Meteorologias são bichos
de irrmediável fulgurante rápida incivilidade.
Fome
A fome desata os nós da consciente
vontade que a escrita denuncia.
Literacias são perfeitas rituais
entregas do acaso,
e tu recensearás acasos,
porque a fome te acomete
sem reservas, sem interlúdios.
O que és transbordará
em longos signos negros.
A luz virá como um sortilégio
de Verão em pleno Inverno.
Um bicho gritará a sem harmonia
que te desenha, a tão real ficção
dessa fome.
Subjectivas mesas
(sobre Wallace Stevens)
É com uma estranha malícia
que distorço o mundo.
Assim se revigora o opaco
e a possibilidade de invenção, ainda.
O cimento é o tonal modo
de nos agarrar às significativas paisagens
a ocidente.
Dobram-se como árvores, as frases,
sob o vento que veio do nada.
Asas destroem a insaciada ordem
que nos governa, a polis de anátema
que se instala no texto.
Vejamos: a cidade começa aqui
nas ásperas figuras do entardecer.
Descrevo o que flutua
neste espaço, a infigurável
destreza moderna trucidando
com dedos de morte
os acantos e as cicutas
que só existem em reais palavras
como subjectivas mesas
sobre as quais me desloco,
velozmente.
(luís quintais)