todos os poemas de paul auster

auster

Continuo muito ligado à poesia que escrevi […] Eu ainda me orgulho dela. Pensando bem, pode ser a melhor coisa que eu já fiz.
Paul Auster

paul auster (newark, 1947) é figura famosa na prosa mundial. seus romances & ensaios, além da prosa memorialística, são best-sellers com o selo da qualidade, de modo que alguns de seus livros, como a trilogia de nova york, já são verdadeiros clássicos. daí o interesse contraditório de ter acabado sair uma coleção de todos os poemas, em tradução de caetano w. galindo. como se pode ver no próprio texto – no caso dos mais afoitos – ou nos textos de apresentação, embora auster tenha começado sua carreira como poeta nos anos 70, com a clara intenção de se dedicar apenas à poesia, para depois fixar-se na prosa e abandonar o gênero de juventude. embora essa história pareça com a de vários outros prosadores, aqui nós temos um poeta forte, com uma escrita firme, apesar dos seus vinte & poucos anos. essa maturidade aparece nas anotações do caderno de rascunho de 1967 (quando auster ainda tinha apenas 20 anos!), onde podemos ler alguns aforismos como este:

What then is the experience of language? It gives us the world and takes it away from us. In the same breath.

[Qual é então a experiência da linguagem? Ela nos dá o mundo e o tira de nós. No mesmo sopro. (trad. de caetano w. galindo)]

seu pensamento sobre a linguagem & sua escrita poética foram profundamente permeados pela obra de alguns poetas americanos pouco conhecidos no brasil, tais como george oppen & charles reznikoff, mas eu diria que na maior parte dos poemas a influência do romeno paul celan é a que mais se destaca, tanto pelo uso pouquíssimo claro de um eu & de um tu (duas instâncias bastante fluidas, como notou hans-georg gadamer a respeito de alguns poemas de celan, no livro quem sou eu, quem és tu), a construção de algumas palavras compostas bastante inesperadas (meteor-word & dice-and-the-dice aparecem em 25, na seleção), a quebra de versos que cria efeitos radicais de adiamento & expectativa que ainda aumentam pela contrução muitas vezes hermética do seu pensamento, & a preferências por referências naturais (pedras, rios, pássaros, neve &c.) entremeadas de tons bíblicos judaicos; isso para ficarmos em apenas alguns pontos. a influência se torna mais óbvia no poema branco, que se abre com alusão ao suicídio de celan (“For one who drowned“), que se lançou para a morte no rio sena em 1970. no entanto, apesar dos ecos notáveis, a voz de auster já começa a ganhar mais peso nos últimos livros, da segunda metade da década de 70, sobretudo quando vemos acontecimentos pessoais, públicos & políticos invadirem a interioridade abstrata dos primeiros poemas, para que se crie uma nova dicção. um desses momentos, é o poema para a morte do pai (S. A. 1911-1979), que, apesar da extrema especificidade contextual, comunica a sensação de perda num grau tocante.

infelizmente, como estamos num espaço de brevidade, não pretendo me alongar mais nos comentários à poética de auster, sobretudo se há dois textos de apresentação no livro, que fazem isso com mais vagar & experiência no assunto. passo portanto a outro comentário limitado sobre a tradução poética. antes de mais nada, algumas palavras do próprio caetano, no prefácio do livro, servem para explicitar seu projeto tradutório. a citação é longa, mas vale a pena:

“Diante da inexistência de um metro definido, da incontornável incapacidade de manter em português (uma língua de polissílabos) a secura da monossilábica prosódia inglesa, e lembrando sempre aquela ênfase no dito, que me pareceu central para o autor, não tentei reproduzi os tamanhos e as medidas dos versos. Por outro lado, as divisões de versos e estrofes foram mantidas com um rigor que normalmente não se alcança em traduções que respeitem metro e rima. A não ser onde a sintaxe portuguesa fosse gerar um resultado excessivamente canhestro, todas as quebras de linhas e estrofes seguem as originais.

No que se refere aos efeitos sonoros, à constante busca por aquela sonoridade definida em aliterações, ecos e assonâncias, o que esta tradução tem talvez de singular entre as traduções de poesia é o fato de, por estarmos lidando não com uma seleção ou até um livro de determinado autor, mas com uma obra completa, acabada, eu ter podido me servir, sempre que isso pareceu uma possibilidade de atender às necessidades da riqueza vocabular e sonora do original, de um recurso frequentemente utilizado na tradução de prosa, mais extensa, compensando certas impossibilidades de um trecho em outro momento da obra.

[…] É portanto muito possível (além de sempre provável) que traduções isoladas de poemas individuais do autor atinjam níveis mais elevados de acabamento formal” (itálicos do autor).

há duas coisas a se dizer sobre essas palavras. em primeiro lugar, há certa humildade de galindo no quesito formal, mas que logo se revela mera delicadeza da parte dele. basta lermos o poema 3 de raios (o primeiro da seleção), onde a complexa tessitura sonora recebe um cuidado impressionante pelos jogos de casca / basta / engasta / lascas que já abrem os dois primeiros versos; além de outros seiva / sangueeclusa/fugafolha/fura & vã/vantagem, para ficarmos apenas em algumas mais notáveis. é claro que, como ele mesmo nota, não é possível manter o mesmo nível numa obra completa, até porque o poeta paul auster não mantém o mesmo nível no original em inglês). o que nos leva ao segundo ponto: a fala de caetano desvela os riscos da tradução parcial, uma prática recorrente, difundida no brasil desde as primeiras intervenções da poesia concreta. não se trata – vejam bem – de dizer que aquelas intervenções não tiveram sua função (o paideuma concretista de fato entrou em circulação & renovou a literatura brasileira); porém o esquema de pílulas, ou amostra grátis, se recorrente, acaba por apagar a força & as dificuldades de uma obra completa: o paideuma, como pound bem percebia, serve apenas como resumo para os leitores com menos tempo, & de forma alguma supre a leitura integral das obras que mais interessam. nesse sentido, a tradução integral de um autor continua sendo importante, & a insistência na microperfeição formal pode se tornar um logro. caetano pode até escorregar aqui & ali, como ele mesmo prevê; mas não se trata da regra, & sim da exceção neste livro. para tentar dar uma visão desse trabalho é que escolhi um poema de cada livro na coletânea abaixo, para que o leitor possa ver o trabalho de galindo ao longo do processo, ao mesmo tempo em que pode perceber algumas mudanças na poética de auster, enquanto ele se encaminhava para a prosa.

há apenas uma falha – talvez imensa – da minha parte: o texto em prosa, espaços em branco (white spaces), que encerra o desenvolvimento cronológico & marca, nas palavras de auster, um “momento entre a poesia e a prosa”, presente no final do livro, fica de fora da minha seleção. o caso é que o texto, por ser  razoavelmente longo, não caberia aqui, apesar da sua importância. mea culpa & meia culpa.

um detalhe final me parece digno de nota. apesar do cuidado visual do livro como um todo (capa, material, diagramação etc.), apesar do que o cerca (introdução de norman finkelstein & prefácio do tradutor), apesar mesmo da importância dessa publicação & do nome de peso de caetano galindo na tradução, pude notar um número razoavelmente elevado de erros, sobretudo na digitação dos poemas em inglês.

(guilherme gontijo flores)

snow tracks 2, por ashen venema, http://courseofmirrors.wordpress.com/
snow tracks 2, por ashen venema

3. (de Raios, 1970)

A casca não basta. Engasta
Lascas redundantes e troca
Pedra por seiva, sangue por eclusa em fuga,
Enquanto a folha se fura, se malha
De ar, e tanto mais, sulcada
Ou envolta, entre lobo e cão,
Por quanto tempo mais há de estacar
A vã vantagem do machado?

3. (from Spokes, 1970)

The bark is not enough. It furls
Redundant shards, will barter

Rock for sap, blood for veering sluice,
While the leaf is pecked, brindled
With air, and how much more, furrowed
Or wrapped, between dog and wolf,
How much longer will it stake
The axe to its gloatin advantage?

25. (de Desterrar, 1970-72)

Nômade –
até lugar-nenhum, brotando
da prisão de tua boca, tornar-se
o onde estás; lês
a fábula
que foi escrita nos olhos
dos dados: (era
palavra-meteoro, rabiscada pela luz
entre nós, e nós, contudo, no fim,
não tínhamos provas, não
podíamos produzir
a pedra). O dado-e-o-dado
possuem agora teu nome. Como quem diz
que onde quer que estejas
está o deserto contigo. Como se,
onde quer que te movas, seja
novo o deserto,
e se mova contigo.

25. (from Unearth, 197o-72)

Nomad –
till nowhere, blooming
in the prison of your mouth, becomes
wherever you are: you
reade the fable
that was written in the eyes
of dice: (it was
the meteor-word, scrawled by light
between us, yet we, in the end,
had no evidence, we could
not produce
the stone). The dice-and-the-dice
now own your name. As if to say,
wherever you are
the desert is with you. As if,
wherever yo move, the desert
is new,
is moving with you.

Branco (de Escritos na parede, 1971-75)

Para um afogado:
esta folha, como se
feita ao mar
em garrafa.

Para que
ainda enquanto o céu embarca
no ver-a-terra, um eco
da terra
possa singrar para ele,
cheio de lembrança da chuva,
e o som da chuva
caindo na água.

Para que
possa aprender,
malgrado a vaga
que ora naufraga do cimo
dos montes, que quarenta dias
e quarenta noites
não nos trouxeram a pomba
de volta.

White (from Wall writing, 1971-75)

For one who drowned:
this page, as if
thrown out to sea
in a bottle.

So that
even as the sky embarks
into the seeing of earth, an echo
of the earth
might sail toward him,
filled with a memory of rain,
and the sound of the rain
falling on the water.

So that
he will have learned,
in spite of the wave
now sinking from the crest
of mountains, that forty days
and forty nights
have brought no dove
back to us.

1. (de Desaparecimentos)

De solidão, ele recomeça –

como se fosse a última vez
que respira,

e portanto seja agora

que respira pela primeira vez
além das garras
do singular.

Está vivo, e portanto é nada
além do que se afoga no insondável poço
de seu olho,

e o que vê
é tudo o que não é: uma cidade

do indecifrado
evento,

e portanto uma língua de pedras,
já que sabe que pelo todo da vida
uma pedra
abrirá seu caminho a outra pedra
para erguer um muro

e que todas essas pedras
formarão a suma monstruosa

dos particulares.

1. (from Disappearances, 1975)

Out of solitude, he begins again –

as if there were the last time
that he would breathe,

and therefore it is now

that he breathes for the first time
beyond the grasp
of the singular.

He is alive, and therefore he is nothing
but what drowns in the fathomless hole
of his eye,

and what he sees
is all that he is not: a city

of the undeciphered
event,

and therefore a language of stones,
since he knows that for the whole of life
a stone
will give way to another stone
to make a wall

and that all these stones
will form the monstrous sum

of particulars.

4. (de Efígies, 1976)

Tu que permaneces. E tu
que não estás aqui. Mais boreal palavra, espargida
nas brancas

horas do mundo sem imagens –

como única palavra

que o vento enuncia e destrói.

4. (from Effigies, 1976)

You who remain. And you
who are not there. Nothernmost word, scattered
in the white

hours of the imageless world –

like a single word

the wind utters and destroys.

Fragmento de frio (de Fragmentos de frio, 1976-77)

Porque ficamos cegos
no dia que se esvai conosco,
e porque vimos nossa respiração
nublar
o espelho de ar,
o olho de ar vai se abrir
para nada mais que a palavra
a que renunciamos: o inverno
terá sido lugar
de madureza.

Nós que viramos os mortos
de uma vida que não a nossa.

Fragment from cold (from Fragments from cold, 1976-77)

Because we go blind
in the day that goes out with us,
and because we have seen our breath
cloud
the mirror of air,
the eye of the air will open
on nothing but the word
we renounce: winter
will have been a place
of ripeness.

We who become the dead
of another life than ours.

S. A. 1911-1979 (de Encarando a música, 1978-79)

Da perda. E de uma tal perda
que saqueia a mente – até a perda

da mente. Começar com essa ideia: sem rima

ou solução. Então simplesmente esperar. Como se a primeira palavra
só viesse depois da última, depois de uma vida
à espera da palavra

que se perdeu. Dizer nada além
da verdade da coisa: os homens morrem, a palavra falha, as palavras

não têm sentido. E portanto pedir
apenas palavras.

Muro de pedra. Peito de pedra. Carne e sangue.

Tanto quanto isso.
Mais.

S. A. 1911-1979 (from Facing the music, 1977-79)

From loss. And from such loss
that marauds the mind – even to the loss

of mind. To begin with this thought: without rhyme

or reason. And then simply to wait. As if the first word
comes only after the last, after a life
of waiting for the word

that was lost, To say no more
that the truth of it: men die, the world fails, the words

have no meaning. And therefore to ask
only for words.

Stone wall. Stone heart. Flesh and blood.

As much as all this.
More.

(paul auster, traduções de caetano w.  galindo)

Publicidade

3 comentários sobre “todos os poemas de paul auster

  1. Ganhei esse livro semana passada e já estou devorando. Dois poemas me pegaram de jeito – Narrativas e um outro do qual nao lembro o nome agora. Nao reparei nesses erros de que fala, uma pena mesmo…

    abs
    Jorge

  2. “Conheci” Auster quando trabalhava na Luzes da Cidade Livraria, em Botafogo, Rio, através de sua famosa trilogia nova iorquina. Até então poucos romancistas estadunidenses me chamavam atenção, e dos poetas eu destacava William C. Williams, Walt Whitman e E. E. Cummings, mas conhecendo o poeta Auster passamos a admirá-lo com respeito e veneração. Pouco sei da obra poética de Paul Auste, entretanto posso afirmar: me está a arrastar pelos olhos como se anzois estivessem cavados neles.

    Att, Evaneucio

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s