Sebastião Nunes – Enfisema Pulmonar

Será lançada oficialmente esta semana, dia 15, na Casa das Rosas, em São Paulo, a antologia Poesia (Im)Popular Brasileira, organizada por Julio Mendonça (editora Lamparina Luminosa, mais detalhes no lançamento aqui. Na ocasião também teremos o relançamento do Brasa enganosa). Como diz o título, o volume é uma coletânea da poesia de autores cujo estatuto é, digamos, menos que canônico. Temos nomes que já foram consagrados – mas cuja consagração se deu recentemente – como Gregório de Matos e Sousândrade, mas a maior parte do volume se concentra sobre autores menos conhecidos como Sapateiro Silva e Qorpo Santo, nos séculos XVIII e XIX, e, no XX e XXI, Aldo Fortes, Edgard Braga, Joaquim Cardozo, Max Martins, Omar Khouri, Pagu, os Sebastiões Nunes e Uchoa Leite, Stela do Patrocínio e Torquato Neto. As seleções introdutórias para a apresentação de cada um desses poetas são acompanhadas por ensaios escritos por poetas e estudiosos da poesia brasileira.

Sebastiao-NunesUm dos nomes que mais me chamou a atenção dentre os presentes no volume foi o de Sebastião Nunes. Nascido em Bocaiúva, 1938, o poeta é autor de 10 livros de poemas lançados entre 68 e 89 (com títulos como Papeis higiênicos e Elogio da punheta) reunidos em dois volumes de sua Antologia Mamaluca, programada visualmente pelo próprio autor. Só pelos próprios títulos em sua obra (que inclui ainda dois romances, Somos todos assassinos e Decálogo da classe média) já é possível notar o gosto do poeta pelo escracho e pela escatologia, mas, até onde pude notar, não se trata de modo algum do escracho e da escatologia que se findam em si próprios, e sim como uma ferramenta para explorar algo de brutalmente visceral e melancólico da vida cotidiana – algo como mais tarde faria, no Espírito Santo, mas com um tratamento diferente, o poeta Sérgio Blank, de que já tratamos aqui no escamandro. Um de seus poemas mais cruentos, “Serenata em B Menor” (78/79), é uma recriação de reportagem contrapondo versos, imagens jornalísticas e trechos paródicos de canções, como “o bio de baneiro bontinua bindo” (bilberto bil). Há algo de evidentemente cômico nisso (a serenata é em B, lembre) e nos versos obscenos como “português fode paraibano / baiano enraba cearense”, mas tudo está contraposto a imagens de cadáveres (de pessoas pobres, visivelmente) estatelados no asfalto. Como nota Fabrício Marques, que é o encarregado do ensaio sobre o autor em Poesia (Im)Popular Brasileira:

É um registro um pouco à maneira de jornais que exploram crimes e notícias policiais. Na última página do poema, lê-se o aviso discreto do poeta: “Só enquanto recupero o fôlego”. Essa é a senha para que se entenda o texto como um poema confessional, por dois motivos, segundo Nunes: na época de criação do poema, ele estava sufocado pelo trabalho como publicitário em agências do Rio de Janeiro; e desenvolvera uma deficiência respiratória bastante acentuada.

O confessional de um estado de desespero (que é tanto psico quanto fisiológico), portanto, em vez da banal exploração cotidiana da violência com a qual estamos acostumados.

Um dos seus poemas ainda mais fortes ocorre, no entanto, quando ele volta essa sua visceralidade poética para si próprio, como é o caso do poema “Enfisema pulmonar”, uma elegia à morte de seu pai, Levi – um dos assuntos mais graves e pessoais, na poesia, do qual alguém pode querer tratar. Com apenas 19 versos e algumas imagens (representando o seu pai, ou com partes da foto obscurecida ou multiplicado, nunca revelado plenamente de frente), diz Fabrício Marques, ele é um dos mais tocantes poemas da poesia brasileira. E não sou eu quem irá negar isso. A crueza do verso, que, até onde vai minha experiência com funerais, acerta precisamente no nervo da descrição da crueza de toda a situação, culminando na conclusão dos últimos 2 versos, é de uma força emocional tremenda. Não é obra de um poeta escatológico leviano, certamente.

Como o uso da imagem é parte integrante do poema (como é o caso dos demais poemas do Nunes), precisei digitalizar as imagens a partir do livro. Mas transcrevo junto abaixo também o texto, para facilitar para o leitor que, por qualquer motivo, tiver problemas em ver as imagens.

Para quem quiser conferir outros poemas de Nunes, indico ainda este post da revista Modo de Usar & Co.,

Adriano Scandolara

Enfisema 1

Levi Araújo Nunes nasceu no Serro, MG, de onde fugiu
aos 15 anos, depois de uma briga a tiros na qual feriu
(ou matou) alguém, se minha avó Antoninha não
estava delirando. Participou de duas ou três badernas
militares, por idealismo, gosto de aventura e falta do
que fazer. Me ensinou que preguiça e
irresponsabilidade são grandes virtudes, mas exigem
coragem e astúcia. Sempre quis que eu escrevesse
como Guerra Junqueiro, o único poeta que admirava.
Casou-se um dia antes da morte de minha avó
Etelvina e, com as 4 vacas de herança, abriu uma
venda em Bocaiúva, MG, onde se asilou para sempre

Enfisema
Pulmonar
(Elegia rupestre para Levi Araújo, o menor dos Nunes)

duas e meia da tarde. 10 de junho de 1984
mãos secas. pés juntos. algodoais no nariz.
véu negro sobre o rosto: tímido noivo de verme
rotineira terra roxa sobre o cadáver de cera.

Enfisema 2
vai embora levi e seus 40 quilos de osso.
vai embora o enfisema. missão cumprida.
vão embora pescarias. cigarros de palha. tosses.
revólver na cintura. carteados. o olho de cobra.

o coveiro sua e pragueja: antes ele do que eu
foi tudo muito rápido. silencioso. sem queixas.
1 metro e 58 e nunca confessou nada. nem a padre.
nunca pediu nada. nunca aceitou nada. nem de deus.

Enfisema 3
tão pequeno para um orgulho tão grande.
feroz como todos os pequenos. duro como diamante.
até que finalmente tudo passou – e nada.
que diferença faz? séculos ou mitos ou segundos.
grandes ilusões rastejam entre lagartixas.

e então é verdade: então a vida não passa disto:
um sopro: um cisco no olho: um sopro e nada.

(Sebastião Nunes)

4 comentários sobre “Sebastião Nunes – Enfisema Pulmonar

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