Hilda Hilst é uma poeta que dispensa apresentações – fato, claro, que não me isenta da obrigação de dizer algumas palavras introdutórias, no entanto. Nascida em Jaú em 1930, ela estudou direito na Universidade de São Paulo e publicou seu primeiro livro, Presságio, em 1950. Mas é a partir da década de 60 (quando abandona a vida movimentada da cidade pela sua bucólica Casa do Sol) que ela floresceu e se afirmou como uma das maiores vozes da literatura brasileira do século XX, publicando diversos volumes de poesia, além de teatro e, a partir de 1970, prosa também, com o experimental Fluxo-Floema. Só de poesia, conto 18 volumes em sua obra (mais 2 coletâneas), são eles: Presságio (1950), Balada de Alzira (1951), Balada do festival (1955), Roteiro do Silêncio (1959), Trovas de muito amor para um amado senhor (1959), Ode fragmentária (1961), Sete cantos do poeta para o anjo (1962), Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), Da Morte. Odes mínimas (1980), Cantares de perda e predileção (1980), Poemas malditos, gozosos e devotos (1984), Sobre a tua grande face (1986), Amavisse (1989), Alcoólicas (1990), Do desejo (1992), Bufólicas (1992), Cantares do sem nome e de partidas (1995) e Do amor (1999). Ela morreu em 2004, e desde então sua Casa do Sol vem sido cuidada pelo pessoal do Instituto Hilda Hilst, encarregado de preservar a memória da poeta.
Como fica evidente já desde os títulos de seus volumes inclusive, o amor, o desejo e o sexo são temas recorrentes de sua obra poética, e, apesar de ela ter tido pouca circulação a princípio, com volumes em tiragens pequenas, eu arriscaria dizer que o seu impacto sobre a nossa poesia foi grande o bastante para que boa parte das tentativas hoje ainda de se abordar essa temática em português de um modo ou de outro acabe por esbarrar na poética hilstiana, consciente ou inconscientemente.
Hilda Hilst foi traduzida para línguas como o francês, o inglês, o alemão e o italiano (para uma referência dos títulos, conferir aqui). No entanto, parece-me que os tradutores e editores estrangeiros têm uma preferência pela sua obra em prosa, particularmente a da sua fase da “bandalheira”, como é conhecida, quando Hilda, nos anos 90, farta de não ser lida, decidiu escrever romances absurdamente pornográficos (O Caderno Rosa de Lori Lamby, por exemplo, relata as experiências sexuais da protagonista, que tem 8 anos de idade) numa tentativa de, simultaneamente, criticar o mercado editorial brasileiro e chamar uma atenção que a sua poesia não estava conseguindo atrair – um objetivo que ela, de fato, realizou.
Felizmente, porém, há uma poeta e tradutora daqui do Brasil mesmo que vem fazendo um trabalho interessantíssimo de tradução da poesia da Hilda para o inglês. Seu nome é Beatriz Bastos, nascida no Rio de Janeiro (1979) e autora de 4 livros – Areia (2003), Flor do sal (2005) Pandora – Fósforos de segurança (2006) e Da Ilha (2009). Esbarrei em sua tese de doutorado por acaso outro dia, intitulada Um Corpo a Corpo com a Poesia: Traduzindo Hilda Hilst e Adília Lopes, orientada pelo também poeta Paulo Henriques Britto (PUC/RJ), e, como é uma pena confinar um trabalho tão importante desses aos corredores da academia, gostaria de compartilhar algumas dessas traduções com os nossos leitores do escamandro.
São 5 poemas, todos retirados de Júbilo, memória, noviciado da paixão. Dentre esses cinco, dois (os dois primeiros aqui) fazem parte da série “Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé. De Ariana para Dioniso”, famosa por ter sido musicada por Zeca Baleiro. Como comenta o poeta Ricardo Domeneck na revista Modo de Usar & Co., uma das influências sobre a poética da Hilda foi Catulo, e, de fato, isso transparece nesse ciclo de poemas, quando Hilda se vale do recurso clássico (remetendo, em nossa referência mais direta, ao arcadismo brasileiro, e, de lá, à poesia latina) de utilizar pseudônimos para representar as situações e os topói também clássicos da poesia amorosa. É claro, no entanto, que o modo como Hilda faz isso é absolutamente moderno. Na tradução para o inglês de Beatriz Bastos, as soluções que a tradutora encontra para reproduzir o efeito sintático dos versos de Hilda se aproximam muito, na minha opinião, do que faz e. e. cummings (mas sem o trabalho gráfico mais imediatamente reconhecível de cummings, isto é, o que faz com que a semelhança não seja tão óbvia).
Sem mais delongas, então, seguem os poemas com suas traduções para o inglês. Quem quiser conferir os pormenores das justificativas por trás das soluções da tradutora pode consultar o capítulo 4 de sua tese, clicando aqui. Essas traduções também foram publicadas na edição de janeiro de 2012 da revista literária estrangeira Asymptote, que pode ser conferida clicando aqui.
P.S: temos outras duas postagens aqui no escamandro com poemas em português traduzidos para o inglês: uma sobre as traduções feitas por Elizabeth Bishop e outra com o poema “O Velho Chico”, de Raimundo Carvalho.
Adriano Scandolara
É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar a tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.
It is as it should be, Dionysus: do not come
Voice and wind only
Of the out there
Supposing alone
That if you were inside
This important voice, this wind
of the branches out there
Would never reach me. Absorbed
I would listen
To the essence of your song. Do not come, Dionysus,
For it is better to dream your roughness
And every night, savour victory anew
Thinking: tomorrow, yes, you will come
And tomorrow will be a time of plenty:
Every night, I Ariana, making ready
Fragrance and body. And a verse every night
Unfolding from the wisdom of your absence.
Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio,
Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa
Ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã. A mim me importa,
Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor
E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor.
When Beatrice and Cayanna ask you, Dionysus,
If you love me, you may say you love me not.
It little matters to me
Being nothing around you, a shadow, tattered stuff
In the judgement of your mother and sister. What matters to me,
Dionysus, is what you say in bed, to my ear
And what you say can not be sung
Because they are shameless, raging words
And in my verse they would sound wrong
And in my room love is the word.
Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso
Distanciado
Dos teus livros políticos
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?
I smile when I wonder
Where in your room
You keep my verse.
Away from your
Political books?
In the first drawer
Close to the window?
Do you smile when you read
Or are you tired of seeing
Such abandon
Amorous spark
On my ripened face?
Do I seem beautiful
Or am I to you
Too much of a poet, perhaps,
And not serious enough?
What does the man think
Of the poet? That there’s no truth
In my drunkenness
And that you prefer
A friend more peaceful
And less adventurous?
That you simply cannot
Keep in your room
Worldly traces
Of my passionate words?
Do you see me as mad?
Do you see me as pure?
Do you see me as young?
Or is it real
That you never knew me?
Se for possível, manda-me dizer
– É lua cheia, a casa está vazia. –
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
– É lua nova –
E revestida de luz te volto a ver.
Send me word, if you can,
“The moon is full, the house is clear.”
Send me word, and paradise
Shall be nearer, and your uncertain face
Shall seem more recent.
Send for me if your day
Is as long as your night. If it’s true
Without me you see nothing but monotony.
If you remember the gleam of tides
Some pale red fish
In certain seas
And my wet feet, send me word:
“It’s a moonless night”
And dressed in light, I come to see you again.
Essa lua enlutada, esse desassossego
A convulsão de dentro, ilharga
Dentro da solidão, corpo morrendo
Tudo isso te devo. E eram tão vastas
As coisas planejadas, navios,
Muralhas de marfim, palavras largas
Consentimento sempre. E seria dezembro.
Um cavalo de jade sob as águas
Dupla transparência, fio suspenso
Todas essas coisas na ponta dos teus dedos
E tudo se desfez no pórtico do tempo
Em lívido silêncio. Umas manhãs de vidro
Vento, a alma esvaziada, um sol que não vejo.
Também isso te devo.
This mournful moon, this unease
Inner turbulence, lagoon,
Inside the solitude, a dying body,
All this I owe to you. Such immense
Plans and future, ships,
Walls of ivory, words full
Always consented to. It would be December.
A jade horse beneath the waters
A double transparency, a line in mid-air
All these things at your fingertips
All undone through the portal of time
Silent and blue. Mornings of glass,
Wind, a hollow soul, a sun I can not see
This, too, I owe to you.
(poemas de Hilda Hilst, traduções para o inglês de Beatriz Bastos)
genial iniciativa!
Adriano, muito por acaso cheguei aqui no escamandro, qual não foi minha surpresa ao me deparar com as minhas traduções de Hilda! Fico feliz que você tenha gostado. Essas traduções também foram publicadas na revista Asymptote (http://www.asymptotejournal.com/), uma revista de tradução muito bacana, vale a visita. um abraço, Beatriz Bastos PS: apenas uma pequena correção, os 5 poemas são de “Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão”
Oi, Beatriz, fico feliz pela sua visita! Peço desculpas pelo errinho, já corrigi lá e coloquei o link p/ a Asymptote. Meus parabéns pelo bom trabalho, espero que tenha continuidade. A Hilda merece. 🙂
Que bom que vocês existem…
muitos lindos seus ´poemas
Obrigado, Gabrielli… só preciso deixar claro que os poemas não são meus, mas da Hilda Hilst, traduzidos pela Beatriz Bastos. 🙂
olá estou fazendo um trabalho vou usar seu poema e gostaria de saber porque ele foi traduzido ? qual o motivo ?
Olá,Jenniffer. Não podemos responder pela tradutora, já que estamos apenas divulgando o trabalho dela aqui, mas se você der uma procurada na tese dela, que está disponível online, talvez você ache a resposta da sua pergunta: http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/Busca_etds.php?strSecao=especifico&nrSeq=16450@1
boa sorte no seu trabalho.