Talvez seja algo estranho que eu tenha tido contato pela primeira vez com a poesia da parnasiana Francisca Júlia (1871 – 1920) através do Tratado de Metrificação de Glauco Mattoso, onde o nosso célebre poeta/podólatra cita e comenta o seu soneto “Dança de Centauras”. Nascida na cidade de Xiririca (hoje Eldorado, em SP), como comenta Péricles Eugênio da Silva Ramos, pouco se sabe de sua biografia pessoal, além do que temos documentado sobre sua carreira (que começa no jornal O Estado de São Paulo, com um poema publicado em 6 de setembro de 1891), seu casamento e viuvez com Filadelfo Edmundo Munster, que contrai tuberculose em 1916 e morre da doença em 1920, ao que se segue o (presumido) suicídio da poeta. Deixou-nos uma obra pequena, porém digna de alguma atenção – tanto quanto de qualquer outro poeta da época, pelo menos.
Os episódios famosos de sua carreira envolvem a demonstração, nada anacrônica, diga-se de passagem, de um duradouro machismo à brasileira por parte dos poetas que lhe foram contemporâneos. Severiano de Rezende, por exemplo, lhe sugerira: “Minha senhora, há ocupações mais úteis: dedique-se aos trabalhos de agulha”. Após ser publicada, em meados da década de 1890, no periódico A Semana, de Valentim Guimarães, o poeta e dramaturgo Artur de Azevedo também declara: “não acreditei [que esses versos] saíssem de mãos femininas”, e o mesmo pensou o poeta, crítico e filólogo João Ribeiro, que imaginou que fosse um caso de “mistificação” e atribuiu a autoria dos poemas à Raimundo Correia, aproveitando para publicar um poema em resposta sob o pseudônimo de Maria Azevedo, com a declaração: “Eu respondo a esta imaginária poetisa”.
Mas Francisca Júlia era bem real e mais tarde foi autora de dois volumes de poesia, Mármores (1895) e Esfinges (1903), além dos infanto-juvenis Livro da Infância (1899) e Alma Infantil (1912). O primeiro livro é considerado mais parnasiano, enquanto o segundo, além de reunir poemas do primeiro, apresenta novos poemas onde se nota influências simbolistas, por sua temática mais mística e contemplativa, por vezes chegando ao devocional, sobretudo nos poemas adicionados na segunda edição. Quem tiver algum grau de TOC com datas (mea culpa) há de notar aqui a mínima diferença cronológica que separa o seu livro de estreia do de Olavo Bilac, Poesias (1888) – Bilac então tinha 23 anos, e Júlia, 17, publicando Mármores depois aos 24. Ele próprio, aliás, a elogia, e diz de seu português que era “o mesmo antigo português, remoçado por um banho maravilhoso de novidade e frescura”. Bem, é um comentário que não diz muita coisa (antigo português remoçado? tipo, com renew? com botox?), mas é um elogio vindo do Bilac, ainda assim.
É complicado discutir qual a situação canônica atual de Francisca Júlia, em parte porque o próprio parnasianismo ainda existe como uma espécie de gigante antigo e anacrônico derrotado pela estética modernista – e que, justamente por ter sido uma estética dominante e porque as nossas sensibilidades já não batem, nem de longe, com as deles (e eu digo isso como alguém que passou as últimas semanas mergulhado nos sonetos do “Via Láctea”), não me parece que será revisto tão cedo. Mas não sei, pode ser que isso seja só impressão minha.
De qualquer modo, F. Júlia parece em algum grau ter sido aceita já como um dos grandes nomes do nosso parnasianismo, e encontra-se o nome dela em sites de educação aqui e ali, e há alguns trabalhos acadêmicos disponíveis online (quem tiver interesse, pode consultar dois deles clicando aqui e aqui)… sua presença e disponibilidade, no entanto, ainda são bem reduzidas. O único volume de poemas dela publicado após sua morte é o Poesias, de 1961, organizado por Péricles Eugênio da Silva Ramos, que também é responsável pelo texto introdutório e notas. Só para exemplificar: neste momento, ao todo, há 30 livros de autoria dela na Estante Virtual (alguns sendo edições raras e caras como as das primeiras edições de Mármores e Esphinges), ao passo que uma procura por Olavo Bilac retorna 980 resultados. Também não me parece fácil encontrar sua obra completa disponível online para download, apesar de estar em domínio público.
Enfim, essas são questões inevitáveis de se ponderar ao entrar em contato com a poesia de Francisca Júlia, e, por isso, gostaria de compartilhar alguns de seus poemas abaixo, extraídos de ambos os seus livros, conforme constam em Poesias.
Adriano Scandolara
PS: o poeta e crítico Emmanuel Santiago tem um ensaio bastante interessante sobre a poeta em seu blogue Antenas de Marfim, intitulado “Impassibilidade, frigidez e masoquismo: uma leitura erótica da poesia parnasiana de Francisca Júlia”, que pode ser lido clicando aqui. O poeta, crítico e tradutor Ricardo Domeneck também já tinha feito um comentário sobre Júlia e outras figuras femininas importantes da poesia brasileira, como Patrícia Galvão e Henriqueta Lisboa e muitas outras, em seu blogue pessoal e no blogue da Modo de Usar & Co., no texto intitulado “A textualidade em algumas poetas brasileiras do século XX e início do XXI”.
poemas publicados pela primeira vez em Mármores:
Em Sonda
Quieta, enrolada a um tronco, ameaçadora e hedionda,
A boa espia… Em cima estende-se a folhagem
Que um vento manso faz oscilar, de onda em onda,
Com a sua noturna e amorosa bafagem.
Um luar mortiço banha a floresta de Sonda,
Desde a copa da faia à esplêndida pastagem;
O ofidiano, escondido, olhos abertos, sonda…
Vai passando, tranqüilo, um búfalo selvagem.
Segue o búfalo, só… mas suspende-lhe o passo
O ofidiano cruel que o ataca de repente,
E que o prende, a silvar, com suas roscas de aço.
Tenta o pobre lutar; os chavelhos enresta;
Mas tomba de cansaço e morre… Tristemente
No alto se esconde a lua, e cala-se a floresta…
Rainha das Águas
a Alberto de Oliveira
Mar fora, a rir, da boca o fúlgido tesouro
Mostrando, e sacudindo a farta cabeleira,
Corta a planura ao mar, que se desdobra inteira,
Na esguia concha azul orladurada de ouro.
Rema, à popa, um tritão de escâmeo dorso louro;
Vão à frente os delfins; e, marchando em fileira,
Das ondas a seguir a luminosa esteira,
Vão cantando, a compasso, as piérides em coro.
Crespas, cantando em torno, as vagas, à porfia,
Lambem de popa à proa o casco à concha esguia,
Que prossegue, mar fora, a infinda rota, ufana;
E, no alto, o louro sol, que assoma, entre desmaios,
Saúda esse outro sol de coruscantes raios
Que orna a cabeça real da bela soberana.
A Noite
A Venceslau de Queiroz
Um vento fresco e suave entre os pinhais murmura;
A Noite, aos ombros solta a desgranhada coma,
No seu plaustro de crepe, entre as nuvens, assoma…
Tornam-se o campo e o céu de uma cor mais escura.
Um novo aspecto em tudo. Um novo e bom aroma
De látiros exala a amplíssima verdura.
Num hausto longo, a Noite, aos ares a frescura
Doce, entreabrindo a flor dos negros lábios, toma…
Por vales e rechãs caminha, passo a passo,
Atento o ouvido, à escuta… E no seu plaustro enorme
Cujo rumor desperta a placidez do espaço,
À encantada região das estrelas se eleva…
E, ao ver que dorme o espaço e o mundo inteiro dorme,
Volve, quieta, de novo, à habitação da treva.
A Ondina
Rente ao mar, que soluça e lambe a praia, a ondina,
Solto, às brisas da noite, o áureo cabelo, nua,
Pela praia passeia. A alvacenta neblina
Tem reflexos de prata à refração da lua.
Uma velha goleta encalhada, a bolina
Rota, pompeia no ar a vela, que flutua
E, de onda em onda, o mar, soluçando em surdina,
Empola-se espumante, à praia vem, recua…
E, surdindo da treva, um monstro negro, fito
O olhar na ondina, avança, embargando-lhe o passo…
Ela tenta fugir, sufoca o choro, o grito…
Mas o mar, que espreitando-a, as ondas avoluma,
Roja-se aos pés da ondina e esconde-a no regaço,
Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões de espuma.
À Noite
Eis-me a pensar, enquanto a noite envolve a terra,
Olhos fitos no vácuo, a amiga pena em pouso,
Eis-me, pois a pensar… De antro em antro, de serra
Em serra, ecoa, longo, um requiem doloroso.
No alto uma estrela triste as pálpebras descerra,
Lançando, noite dentro, o claro olhar piedoso.
A alma das sombras dorme; e pelos ares erra
Um mórbido langor de calma e de repouso…
Em noite assim, de repouso e de calma,
É que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas,
A alma cheia de dor, a dor cheia de alma…
É que a alma se abandona ao sabor dos enganos,
Antegozando já quimeras pressentidas
Que mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos.
poemas publicados pela primeira vez em Esfinges:
Dança de Centauras
Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,
Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças,
Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças
Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.
A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;
Mil centauras a rir, em lutas e torneios,
Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios
De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.
Empalidece o luar, a noite cai, madruga…
A dança hípica pára e logo atroa o espaço
O galope infernal das centauras em fuga:
É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,
Enorme, aceso o olhar, bravo, do heróico braço
Pendente a clava argiva, Hércules aparece…
Adamah
A Júlia Lopes de Almeida
Homem, sábio produto, epítome fecundo
Do supremo saber, forma recém-nascida,
Pelos mandos do céu, divinos, impelida,
Para povoar a terra e dominar o mundo;
Homem, filho de Deus, imagem foragida,
Homem, ser inocente, incauto e vagabundo,
Da terra substância, em que nasceu, oriundo,
Para ser o primeiro a conhecer a vida;
Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada
Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas
De pássaros saudando a primeira alvorada,
Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas
O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada
No primeiro silêncio e nas primeiras trevas…
Crepúsculo
Tôdas as cousas têm o aspecto vago e mudo
Como se as envolvesse uma bruma de incenso;
No alto, uma nuvem, só, num nastro largo e extenso,
Precinta do céu calmo a caris de veludo.
Tudo: o campo, a montanha, o alto rochedo agudo
Se esfuma numa suave água-tinta… e, suspenso,
Espalhando-se no ar, como um nevoeiro denso,
Um tom neutro de cinza empoeirando tudo.
Nest’hora, muita vez, sinto um mole cansaço,
Como que o ar me falta e a fôrça se me esgota…
Som de Ângelus, moroso, a rolar pelo espaço…
Neste letargo que, pouco a pouco, me invade,
Avulta e cresce dentro em mim essa remota
Sombra da minha Dor e da minha Saudade.
Natureza
Um contínuo voejar de moscas e de abelhas
Agita os ares de um rumor de asas medrosas;
A Natureza ri pelas bocas vermelhas
Tanto das flores más como das boas rosas.
Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas
O grito dos chacais e o pranto das ovelhas,
Brados de desespero e frases amorosas
Pronunciadas, a medo, à concha das orelhas…
Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias
Na longa sucessão das noites e dos dias,
Tanto aborto, que se transforma e se renova,
Quando meu pobre corpo estiver sepultado,
Mãe! transforma-o também num chorão recurvado
Para dar sombra fresca à minha própria cova.
(poemas de Francisca Júlia)
Caríssimo Adriano, foi com alegria que terminei de ler esta postagem, apesar de, certamente, discordar de algumas coisas. Francisca Júlia, à época de seus “Mármores”, foi considerada digna da tríade parnasiana (mas, vamos lá, quais poetas da tríade realmente foram grandes? Na minha opinião, Alberto de Oliveira foi o maior; Bilac foi o menor, crescendo somente em “Tarde”). Além do mais, conseguiu o reconhecimento tanto dos Parnasianos e dos Simbolistas (feito obtido também por Raul de Leoni). Mas nunca podemos desconsiderar que alguns poemas das “Esfinges” – muito para além de seus sonetos – como, por exemplo, “De Joelhos” e “Mudez” (este último considerado uma obra-prima por Mário de Andrade) demonstravam, independentemente das datas, uma poetisa de estro variado, de musicalidade flexível, ágil e aérea, diferenciando-se dos sonetos de estrutura parnasiana que ela escreveu; mas eles próprios, como os magníficos “À Noite”, “Crepúsculo”, ou um dos melhores sonetos da época, o “Noturno”, só demonstram como a sua percepção estética, sentimental, e – por que não? – a percepção metafísica estavam muito acima de uma simples parnasiana, mera descritivista. A demonstração disso, além da obra, está nos trechos das entrevistas com Francisca (presentes na edição de 1961) que, absolutamente, mostram que a poetisa não se resumia aos limites do positivismo, do cientificismo e do objetivismo, base desse parnasianismo descritivista e do naturalismo literário. Francisca Júlia, portanto, não foi “uma parnasiana”, ao bel prazer da forma, mas uma perfeita representante de um momento poético que englobou os mais variados tipos de estéticas, teses e versificações (o Simbolismo e suas ramificações; o “sincretismo” de 1911-1922, com aquela magnífica sequência de Augusto dos Anjos, Da Costa e Silva, Hermes Fontes, Raul de Leoni e Eduardo Guimaraens, entre outros destaques da época), desaguando até o Modernismo, que, apesar de sua importância histórica, não pode excluir o mais de nossa literatura, pois esse mais já foi, enfim, o tudo.
Abraços!
Agradeço muitíssimo seu comentário, Caio. Sabe que eu acho sempre muito complicado discutir o parnasianismo? Apesar da suposta tendência parnasiana à “impassibilidade”, muitas das coisas do Bilac p/ mim soam bastante ao gosto romântico (embora talvez não tanto o romantismo brasileiro), e alguns dos poemas da FJ mesmo me fazem pensar em, por exemplo, Shelley (“A Noite” me traz claramente à memória “The Two Spirits”) ou Keats. Eu empreguei nesse texto o termo “parnasiano” com alguma gratuidade, de fato, por isso friso que este post é apenas introdutório (p/ apresentar a poeta a leitores que ainda não a conhecem, que certamente devem ser muitos) e talvez ficasse muito longo se eu me detesse mais longamente a essas questões de escola literária. Mas fico feliz que você tenha comentado isso por mim. Essa discussão renderia um bom ensaio. Um abraço!
Fiquei emocionada ao ler os poemas de Francisca Julia. É uma pena que ela seja tão pouco conhecida nos outros estados brasileiros. Ela é magnífica!
Para dar uma atualizada na bibliografia, talvez este link seja de serventia:
http://antenasdemarfim.blogspot.com.br/2014/01/impassibilidade-frigidez-e-masoquismo.html
Saudações de BH!!
Grata surpresa conhecer Francisca Júlia. Que material bacana!
Parabéns pelo texto fluido (gostoso de ler) que a apresentou a nós!
Saúde e Paz!!
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Parabéns Adriano, faço minhas suas palavras e ponto de vista no comentário em resposta para Caio Cardoso, e pelo texto apresentado, muito relevante e bom de se ler! Paz e Bem.