Aproveitando a deixa de uma possível discussãozinha sobre o crítico canadense Northrop Frye (1912 – 1991) que possa ser suscitada pelo meu post anterior sobre uma tradução de “The Sleeper”, de Poe, eu gostaria de compartilhar um trechinho interessantíssimo de uma das maiores obras desse grande crítico e teórico que é a sua Anatomia da Crítica (1957). O terceiro capítulo é o ensaio de sua teoria sobre mitos e parece fornecer um aparato crítico bastante útil para tratar de questões de representação, de algo como uma escala entre o realismo (seja ele o hiperrealismo de fato ou o realismo tal como convencionado) e o estilizado (de tom mítico ou abstrato), que parece ser o modo predominante do poético.
Há uma tradução para o português da Anatomia (pela editora Cultrix), mas infelizmente ela está um pouco acima do meu orçamento, por isso só tenho acesso à edição em inglês, a partir da qual traduzi os seguintes parágrafos.
Adriano Scandolara
Na literatura, como na pintura, costuma-se, por tradição, tanto na prática quanto na teoria, dar ênfase à representação ou à “verossimilhança”. Quando, por exemplo, pegamos um romance de Dickens, nosso impulso imediato, um hábito alimentado em nós por toda a crítica que conhecemos, é compará-lo com “a vida”, seja ela tal como vivida por nós ou pelos contemporâneos de Dickens. E então encontramos personagens como Heep ou Quilp, e nem nós, nem os vitorianos já viram qualquer coisa se “assemelhasse” a esses monstros curiosos, e o método de pronto entra em colapso. Alguns leitores irão reclamar que Dickens recaiu no que chamam de “mera” caricatura (como se a caricatura fosse fácil). Outros, num gesto mais razoável, simplesmente abrem mão do critério da verossimilhança e aproveitam a criação pelos seus próprios méritos.
Os princípios estruturais da pintura são com frequência descritos em termos de seus análogos na geometria plana (ou a geometria sólida, estendendo a analogia um pouco mais). Uma carta famosa de Cézanne fala da aproximação da forma pictorial à esfera e ao cubo, e a prática dos pintores abstratos parece confirmar esse argumento. As formas geométricas são análogas apenas às formas pictóricas, mas de modo algum são idênticas a elas. Os princípios estruturais reais da pintura são derivados não de uma analogia externa com alguma outra coisa, mas da analogia interna à própria arte. Os princípios estruturais da literatura devem, de forma semelhante, ser derivados da crítica arquetípicia e anagógica, os únicos tipos que assumem um contexto maior da literatura como um todo. Mas vimos no primeiro ensaio que, conforme os modos da ficção se deslocam do mítico ao baixo mimético e irônico, eles se aproximam do “realismo” extremo ou verossimilhança representativa da vida. Ele acompanha o modo mítico, as histórias sobre deuses, em que os personagens têm o maior poder possível de ação, é o mais abstrato e convencionalizado de todos os modos literários, assim como os modos correspondentes nas outras artes – a pintura religiosa bizantina, por exemplo – demonstram o mais elevado grau de estilização em sua estrutura. Daí que os princípios estruturais da literatura têm uma relação de proximidade com a mitologia e a religião comparada semelhante à da pintura com a geometria. Neste ensaio, usaremos o simbolismo do Bíblia e, em menor grau, das mitologias clássicas, como uma gramática de arquétipos literários.
No conto egípcio dos Dois Irmãos, visto como a fonte da história da esposa de Potifar na lenda de José, a esposa de um irmão mais velho tenta seduzir o irmão mais novo que convive com o casal e, quando ele resiste, ela o acusa de tentar estuprá-la. O irmão mais novo é forçado a fugir, com o irmão mais velho enfurecido perseguindo-o. Até então, os incidentes reproduzem fatos mais ou menos críveis da vida. Então, o irmão mais novo faz uma oração a Rá, pedindo ajuda, para que justiça seja feita. Rá coloca um lago imenso entre ele e o seu irmão e, num arroubo de exuberância divina, enche esse lago de crocodilos. Esse incidente não é mais fictício do que qualquer outra coisa que o antecede, tampouco tem uma relação menos lógica com qualquer outro episódio no enredo como um todo. Mas ele abriu mão de uma analogia externa com a “vida”: isso, dizemos, é o tipo de coisa que só acontece em histórias. O conto egípcio adquiriu, então, em seu episódio mítico, uma qualidade abstratamente literária. E, como o narrador poderia muito bem ter, com a mesma facilidade, resolvido esse probleminha de um modo mais “realista”, assim parece que a literatura no Egito, como as outras artes, preferia um certo grau de estilização.
(…)
Começamos nosso estudo dos arquétipos, então, com um mundo de mitos, um mundo abstrato ou puramente literário de criação ficcional e temática, intocado pelos cânones de adaptação plausível à experiência conhecida. Em termos de narrativa, o mito é a imitação de ações próximas ou nos limites concebíveis do desejo. Os deuses desfrutam de belas mulheres, lutam um com o outro com força prodigiosa, reconfortam e auxiliam o homem, ou então observam seus sofrimentos do alto de sua liberdade imortal. O fato de que o mito opera no nível máximo do desejo humano não significa que ele apresenta necessariamente o mundo tal como atingido ou atingível pelos seres humanos. Em termos de sentido ou dianoia, o mito é o mesmo mundo visto como uma área ou campo de atuação, tendo em mente nosso princípio de que o sentido ou padrão da poesia é uma estrutura de imagética com implicações conceituais. O mundo da imagética mítica é geralmente representado pelo conceito do céu ou Paraíso na religião e é apocalíptico, no sentido anteriormente explicado dessa palavra, um mundo de metáfora total, em que tudo é potencialmente idêntico a todo o resto, como se tudo estivesse dentro de um único corpo infinito.
(Northrop Frye. “Third Essay: Archetypal Criticism: Theory of Myths”, in The Anatomy of Criticism: Four Essays (Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1990), pp. 134-136, tradução de Adriano Scandolara)