Lorde Alfred Tennyson (1809 – 1892), mais um dos membros tardios do romantismo inglês, é uma das maiores vozes do período – e eu já disse algumas palavras sobre esse que pode ser visto como o terceiro momento do romantismo, muito pouco estudado e traduzido em português, num post anterior sobre o seu contemporâneo Robert Browning (clique aqui). No entanto, assim como com Browning, que nos legou a famosa fábula do flautista de Hamelin, apesar de não termos quase nada dele em nossa língua, Tennyson conseguiu deixar suas marcas no, digamos, inconsciente coletivo. Você, com certeza, já deve ter ouvido a expressão “melhor ter amado e perdido do que nunca ter amado”, o que é uma tradução literal dos versos “Tis better to have loved and lost / Than never to have loved at all”, mas imagino que poucos saibam que esses versos partem da seção 27 do seu longo poema In Memoriam A. H. H., uma elegia em 133 partes pela morte do amigo de Tennyson, o também poeta Arthur Henry Hallam. Arthur morreu em 1833, e Tennyson passou 17 anos ponderando sobre a sua morte e escrevendo o poema – e imagino que algumas pessoas possam se surpreender que essa declaração sobre o amor parta de um poema de tons homoafetivos, ainda que de uma homoafetividade “no armário”, por assim dizer. In Memoriam e o ciclo de poemas narrativos em tom elegíaco e versos brancos sobre as lendas arturianas, Idylls of the King, compõem o que é visto como as maiores obras de Tennyson, apesar de que ele também nos deixou vários poemas líricos belíssimos.
Um desses poemas é o “Ulisses”, escrito em 1833 e publicado na segunda edição de seu volume Poems (1842). É um monólogo dramático em versos brancos na voz do famoso rei de Ítaca, já retornado ao lar e em idade avançada, mas que sente outra vez os anseios de retornar ao mar. O poema foi já um sucesso à época, suscitando resenhas positivas no Quarterly Review no mesmo ano em que foi publicado – aliás, Tennyson, tendo se tornado poeta laureado da Grã Bretanha em 1850, foi um desses poucos poetas a ser agraciado com sucesso em vida -, além de estudos continuados posteriormente, que passaram cada vez mais a enxergar nele uma ironia que não foi percebida pela recepção inicial. O poema é comparável ao episódio da Divina Comédia, no Inferno, em que Dante encontra Ulisses, e Eliot, de fato, traça essa comparação num ensaio de 1929 chamado “Dante”, presente em suas Selected Essays. Diz Eliot que “o episódio de Ulisses é particularmente ‘legível’, acredito, por causa de sua narrativa direta e contínua, e porque para um leitor anglófono a comparação com o poema de Tennyson – um poema perfeito – é das mais instrutivas. Vale a pena notar, porém, o grau imensamente superior da simplificação da versão de Dante. Tennyson, como a maioria dos poetas, mesmo aqueles a quem chamamos de grandes poetas, precisa obter esse efeito forçando, em certa medida”. É um elogio um pouco dúbio, vindo de Eliot, mas podemos concordar que são raros os poemas aos quais Eliot se referiu como “poemas perfeitos” e mais raros ainda os que podem competir com Dante.
É esse o poema que compartilho, então, abaixo. A tradução é da autoria de Rubens Canarim, que entrou em contato comigo faz algum tempo (e que eu tenha demorado tanto para postá-la aqui é uma falta terrível minha). O que é surpreendente, porém – especialmente neste mundo atual em que um dos últimos refúgios dos poetas (bem como tradutores de poesia, exclusivamente, sem maiores contatos com grandes editoras) que não vêm de famílias abastadas, mas que gostam de ter comida na mesa, tem sido infelizmente o mundo isolado e burocratizado da academia – é que Rubens não é da área das letras, mas da engenharia. No entanto, não só ele demonstra conhecimento e interesse por um autor que muitos alunos de letras mesmo desconhecem, como ainda parece ter aprendido sozinho as técnicas da tradução poética, o que é louvável. Seus projetos envolvem continuar traduzindo Tennyson (um autor, aliás, pouquíssimo traduzido) e começar uma tradução do livro de filosofia política Political Justice (ou Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on Morals and Happiness, de 1793) de William Godwin (1756 – 1836), que teve forte influência sobre os românticos (tanto que Shelley até se casou com a filha de Godwin) e que, até onde tenho notícia, continua, lamentavelmente, sem tradução para o português.
Adriano Scandolara
Ulisses
De nada serve a um rei ficar inerte,
No lar quieto, em meio à rocha infértil,
Unido a esposa idosa, eu doo e imponho
Iníquas leis a um bando de selvagens
Que soma, e dorme, e engorda, e não me vê.
Estou inquieto: Sorverei da vida
A última gota: Sempre gozei muito,
Sofri muito, com todos que me amaram,
E só; em terra firme, ou arrastado
Por negras correntezas irritadas
Pelas Híades: Transformei-me em nome;
Errante sempre, com ardente impulso
Muito vi e conheci; cidades de homens
E costumes, conselhos, climas, regras,
E a mim mesmo, por todos sempre honrado.
Traguei da pugna o gozo junto aos meus,
Longe na Troia dos ventantes plainos.
Sou parte, enfim, de tudo que encontrei;
A experiência é um arco pelo qual
Vislumbro um mundo inexplorado, cuja
Margem se afasta sempre ao meu mover.
Que tolice o parar, o dar um fim,
Enferrujar assim, sem uso e brilho!
Como se respirar fosse viver.
Quão pouco, vidas sobre vidas! Desta,
Pouco resta: mas cada hora é salva
Do que é silêncio eterno, um algo além,
Arauto do que é novo; vil seria
Guardar-me, agrisalhando por três sóis,
A alma cinzenta ardendo por seguir
O saber como um astro que se afoga,
Além do limiar do pensamento.
Este é o meu filho, meu fiel Telêmaco,
Para quem eu relego o cetro e a ilha –
Meu bem-amado, hábil a cumprir
Esse labor, prudente domador
De um povo rude, e mansamente, aos poucos,
Vai sujeitá-los ao que é bom e útil.
Irreprochável, centra-se na esfera
Dos deveres comuns, decente para
Sutis ofícios, prestará tributos
De justa adoração aos nossos deuses
Quando eu me for. Ele obra o dele, eu o meu.
Lá jaz o porto; O barco estufa as velas:
Ensombram grandes mares. Meus marujos,
Almas que lutam, sofrem junto a mim –
Que, jubilosas, acolheram sempre
Trovão e sol ardente, opondo frente
E fronte livres – nós estamos velhos;
Na velhice, persiste a honra e a luta;
A morte é o fim: mas antes, algum feito
Notório e nobre está por se fazer,
Sem impróprios conflitos com os Deuses.
Luzes estão a cintilar nas rochas:
O dia míngua: a lua ascende: o abismo
Gemendo em muitas vozes. Venham, homens,
Não tarda a busca por um novo mundo.
Partam, em ordem todos, e fulminem
As sonoras esteiras; Meu intento
É navegar além-poente, e sob
Estrelas do ocidente, até morrer.
Talvez vorazes golfos nos devorem,
Ou então, nas Afortunadas Ilhas,
Vejamos grande Aquiles, caro a nós;
Mesmo perdendo muito, há muito à frente,
Ainda que como antes não movamos
A Terra e o Céu; O que nós somos, somos;
O mesmo heroico peito temperado,
Fraco por tempo e fado, mas forte a
Lutar, buscar, achar, e não ceder.
Ulysses
It little profits that an idle king,
By this still hearth, among these barren crags,
Match’d with an aged wife, I mete and dole
Unequal laws unto a savage race,
That hoard, and sleep, and feed, and know not me.
I cannot rest from travel: I will drink
Life to the lees; all times I have enjoy’d
Greatly, have suffer’d greatly, both with those
That loved me, and alone; on shore, and when
Thro’ scudding drifts the rainy Hyades
Vext the dim sea: I am become a name;
For always roaming with a hungry heart
Much have I seen and known; cities of men
And manners, climates, councils, governments,
Myself not least, but honour’d of them all;
And drunk delight of battle with my peers,
Far on the ringing plains of windy Troy,
I am a part of all that I have met;
Yet all experience is an arch wherethro’
Gleams that untravell’d world, whose margin fades
For ever and for ever when I move.
How dull it is to pause, to make an end,
To rust unburnish’d, not to shine in use!
As tho’ to breathe were life. Life piled on life
Were all too little, and of one to me
Little remains: but every hour is saved
From that eternal silence, something more,
A bringer of new things; and vile it were
For some three suns to store and hoard myself,
And this gray spirit yearning in desire
To follow knowledge like a sinking star,
Beyond the utmost bound of human thought.
This is my son, mine own Telemachus,
To whom I leave the scepter and the isle—
Well-loved of me, discerning to fulfil
This labour, by slow prudence to make mild
A rugged people, and thro’ soft degrees
Subdue them to the useful and the good.
Most blameless is he, centred in the sphere
Of common duties, decent not to fail
In offices of tenderness, and pay
Meet adoration to my household gods,
When I am gone. He works his work, I mine.
There lies the port; the vessel puffs her sail:
There gloom the dark broad seas. My mariners,
Souls that have toil’d, and wrought, and thought with me—
That ever with a frolic welcome took
The thunder and the sunshine, and opposed
Free hearts, free foreheads—you and I are old;
Old age hath yet his honour and his toil;
Death closes all: but something ere the end,
Some work of noble note, may yet be done,
Not unbecoming men that strove with Gods.
The lights begin to twinkle from the rocks:
The long day wanes: the slow moon climbs: the deep
Moans round with many voices. Come, my friends,
‘Tis not too late to seek a newer world.
Push off, and sitting well in order smite
The sounding furrows; for my purpose holds
To sail beyond the sunset, and the baths
Of all the western stars, until I die.
It may be that the gulfs will wash us down:
It may be we shall touch the Happy Isles,
And see the great Achilles, whom we knew.
Tho’ much is taken, much abides; and tho’
We are not now that strength which in old days
Moved earth and heaven; that which we are, we are;
One equal temper of heroic hearts,
Made weak by time and fate, but strong in will
To strive, to seek, to find, and not to yield.
(poema de Lorde Alfred Tennyson, tradução de Rubens Canarim)
Que bacana! A tradução tá tinindo. Tipo essa parte aqui, sonoridade simplesmente fenomenal: “(…) Meu intento / É navegar além-poente, e sob / Estrelas do ocidente, até morrer.” Ou essa daqui: “Luzes estão a cintilar nas rochas: / O dia míngua: a lua ascende: o abismo / Gemendo em muitas vozes. (…)”.
Eu também já cheguei a traduzir um punhadinho de Tennyson:
http://matheusmavericco.blogspot.com.br/2014/02/06-poemas-de-alfred-tennyson.html
E, como disse lá, o Ulysses estava na minha rota. Mas aí eu basicamente fui bundando, bundando… e descobri a tradução do Haroldo… e agora descubro essa… Bate até um recalque.
Mas a felicidade de ver Tennyson traduzido é sempre maior.
Procuro qual poema de Alfred Lord Tenneyson serviu de inspiração para a coreografia de Fokine – A morte do cisne – Alguém pode me informar?
Olá, Celia!
Se não me engano, o poema em questão seria o “The Dying Swan” (que é também como é o título do balé em inglês). Ele pode ser lido aqui: http://www.litscape.com/author/Alfred_Lord_Tennyson/The_Dying_Swan.html
Meus caros e prezados amigos. Foi com imensa satisfação que por acaso esbarrei com essa turma. Por favor não tomem meus comentários como crítica gratuita. Nós tradutores sabemos bem o quanto o nosso ofício é balizado por um zilhão de normas e exigências que entretanto todos reconhecem que são impossíveis de atender a todas. Cada tradutor se vê com a difícil tarefa de selecionar qual aspecto da obra será privilegiado em determinado momento. E isso sempre em detrimento de outros. Fico feliz que o caro amigo Rubens Canarin tenha optado por privilegiar o aspecto musical do texto. Ainda assim não estou certo de que a tradução atenda àquilo que o autor quis dizer. “De nada serve a um rei ficar inerte” me parece inapropriado (e eu de modo algum pretendo ser dono da verdade, exponho meus comentários sabendo que corro o risco de estar completamente enganado) porque a tradução acrescenta o verbo “ficar” ao primeiro verso o que o torna uma oração completa. Me parece que o original é sem verbo. Trata-se de uma frase interrompida que só vai se completar com “I mete and dole…”. O tradutor também optou pela palavra “nada” como tradução de “little’. Aqui vai minha sugestão da primeira estrofe. Espero que a recebam com simpatia: “De pouco vale um rei que sem cetro; em fogo morto sobre a terra infértil; casado com a velhice conceba e edite; leis desiguais pruma raça de vermes; que comem, dormem e enriquecem em minha ausência.”
Caro Marcelo, creio que suas apreciações são justas e aproveitáveis. Na primeira versão, eu tinha completado a oração com “Unido a esposa idosa, doando e impondo” (ainda que forçasse um pouco a métrica). Sobre o primeiro verso, acho que resolve se for substituído por “De nada serve um rei assim inerte”, ou “A pouco serve um rei assim inerte,”, que se aproxima do sentido original intentado por Tennyson, sem deixar de ater-se à musicalidade (tão fundamental nesse poeta). Da sua versão sugerida, acredito que a escolha de “vermes” acarrete uma depreciação excessiva do povo de Ítaca (‘leis desiguais a uma raça agreste’ também resolveria), ainda que quisesse demonstrar o seu comportamento. Além disso, “em minha ausência” significaria que Ulisses ainda não retornou para sua terra natal, o que não representa o estado atual do curso do presente poema (pós-Odisseia). No mais, agradeço sinceramente a contribuição.
Maravilhoso poema! O encontrei primeiro como o áudio da récita da primeira estrofe na Enciclopédia Encarta 1996, em inglês mesmo. A récita me impressionou tanto que a reovi numerosas vezes, até decorar. Anos depois, encontrei o poema completo na récita do Tom O’Bedlam, em seu canal no Youtube. Esse poema é um baita remédio para curar tristeza, pessimismo, desânimo. Hoje em dia prefiro muito mais recitar o Pequeno Ofício da Imaculada Conceição, que é eficaz não só para espantar a tristeza, mas também as seduções do paganismo. Parabéns ao tradutor e ao blog por apresentar esse ouro poético de Tennyson.
Muito obrigado pela tradução.
Olá! Cheguei aqui pelo filme do famoso detetive (rsrsrs), mas fiquei completamente encantada com as traduções, comentários reflexivos e seriedade do trabalho de vocês tradutores. Parabéns!!! Isso só mostra que a alma humana cultivada sempre rompe o tempo e o espaço com o seu legado.