nota crítica: “poesia total” de waly salomão

poesia total — waly_salomao

faz algum tempo, eu escrevi outra nota crítica sobre toda poesia, de paulo leminski, editado pela cia. das letras. naquele momento, enquanto por um lado saudava o projeto — que se revelou um (in)esperado supersucesso de vendas — por outro busquei pensar sobre o que seria “toda poesia de leminski”: no momento, notei que na edição faltavam as fotos dos 40 clics, boa parte dos seus experimentos visuais, bem como a poesia cantada de leminski, suas canções. enfim, louvável que fosse, ainda não era toda poesia.

well, ausência de poesia visual e de canções não é um problema na poesia total de waly salomão (1943 – 2003), publicada recentemente com bastante badalação (acho que escolhi essa palavra porque tem um quê de waly) também pela cia das letras. novamente, um projeto digno das maiores saudações, até porque se trata de um poeta mais marginal (leia-se à margem) do que leminski: seus experimentos se revelaram bem menos pop que os do poeta curitibano, apesar de ambos terem flertado muito com as mídias populares. talvez por esse experimentalismo mais complicado (e complexo?) ele ainda seja em grande parte um poeta de poetas, embora torçamos para que uma edição completa por uma editora grande possa dar uma guinada nessa história.

porém, mais uma vez, creio que há pontos por discutir, se quisermos manter um debate sério sobre poesia no brasil. pensemos numa pergunta simples (geralmente essas são as menos respondíveis) tal como: o que foi poesia na poesia de waly sailormoon? me pergunto isso, porque um título como poesia total nos faz esperar uma totalidade do poético, então a primeira pergunta busca definir o que vem a ser o poético naquele poeta. as canções (parte fundamental da sua obra) de fato estão lá, inclusive canções inéditas & mesmo letras nunca gravadas, o que revela um cuidado notável de pesquisa; porém gostaria de discutir duas ausências importantes: a prosa & os experimentos visuais.

antes de tudo, é interessante pensarmos no que dizia o próprio waly na orelha de sua antologia, em vida, mel do melhor (essa orelha está genialmente posta na abertura de poesia total, como um umbral poético, um convite ao leitor):

uma orelha

… o poeta resta no mundo
com raros talismãs,
algumas malícias,
parcas mandingas.
Ele vai de peito aberto
para a clareira,
quase sem amuletos,
quase sem boias.
É se afogando,
se desafogando:
escrever assim,
viver assado…

… o autor, na verdade, é falível,
é vulnerável, e sobretudo, ele
não detém a última palavra, a
chave final sobre a propulsão
que um poema pode despertar
num eventual leitor…

… como se sabe
o leitor é querido e livre:
pode ler assim ou assado…

é o poeta mesmo quem convida seu leitor não a ler a verdade do texto — o que o poeta quis dizer —, mas uma relação com o texto, o que é possível extrair dali, sem dar poderes ao autor como dono da obra & da interpretação. waly abre os braços para a intervenção do outro no(s) poema(s), & também eu, seguindo o que ele propunha, não desejo aqui simplesmente criticar a edição da poesia total: entendo o processo editorial como leitura, um jogo de escolhas & recortes que forma um texto, ou neste caso dá nova forma aos textos reunidos; respeito muito o trabalho de reunir a poesia de um poeta & entendo que haverá respostas diversas sobre o poético em waly. o que me interessa ver aqui é qual a imagem de poeta-waly surge dessa edição, como ela responde à pergunta que formulei, para criar um waly possível. mas vamos ao ponto.

1. a prosa: a edição inclui todos os livros de poesia de waly: me segura qu’eu vou dar um troço [1972], gigolô de bibelôs [1983], armarinho de miudezas [1993], hélio oiticica: qual é o parangolé? [1996], algaravias: câmara de ecos [1996], lábia [1998], tarifa de embarque [2000] & o póstumo pescados vivos [2004]. desses livros, dois apresentam problemas notados pelos editores: vejamos o que dizem:

Armarinho de miudezas […] é um livro híbrido e de difícil classificação, que reúne textos ensaísticos e poéticos. Optamos por reproduzir aqui apenas os textos em verso que aparecem ao longo do livro (p. 198)

O último texto desta seção, “Balada de um vagabundo”, foi extraído do livro Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? […] também pende mais para o ensaio e para a biografia, embora a dicção poética de Waly esteja sempre presente. (p. 198)

o que está em jogo aqui? nos dois casos, os editores apontam para uma fusão, típica de waly, entre poesia & prosa, poética & ensaística. o cruzamento de gêneros é radical & acaba por criar dificuldades ao editor. no caso, preferiram cortar do armarinho tudo que viesse apresentado sob a forma visual da prosa. eu diria que esse critério, para a poesia de waly salomão, é dos mais infelizes: estamos falando do mesmo poeta que iniciou sua carreira com me segura… um livro praticamente inteiro escrito em prosa, mas nunca enquadrado nas prateleiras de prosa. em outras palavras: disposição visual não é uma categoria do poético, pelo menos não na poética do baiano waly.

ao comentarem o texto extraído de hélio oiticica… os editores caem na mesma divisão fácil & facilitadora, apesar de observarem que se trata de uma biografia poética, longe da formalidade tradicional. eu me perguntaria: não seria possível pensarmos que existe um projeto walynesco persistente de aniquilar fronteiras? o ensaio-poema, a biografia-poema me parecem peculiaridades da sua poética que determinam uma potência na história recente da literatura brasileira. não é à toa que a orelha de mel do melhor (acima citada) é também um metapoema, uma orelha-poema.

2. experimentos visuais. como já disse, esta edição foi mais feliz que a de leminski por guardar os experimentos visuais de waly salomão publicados em livro. é o caso dos tantos experimentos tipográficos de me segura…, ou de poemas como “mosquito extraordinário”, ou “olho de lince”, ambos do gigolô…., dentre vários outros. no entanto, a obra mais estritamente visual da poética de waly que não foi publicada em livro ao longo de sua vida (penso sobretudo nos babilaques, mas imagino que ainda haja mais por escavar) está fora da poesia total. sabemos que o próprio waly afirmava seus babilaques como “uma experiência axial que desenvolvi do meu processo incessante de buscas poéticas […] é uma experiência de fusão da escrita com a plasticidade”; novamente, quebra de fronteiras como determinação do projeto poético, uma “experiência axial” desse projeto. basta vermos uma imagem dos babilaques, intitulada “as mandíbulas do tubarão imperialista versus sombra chinesa de capim de caboclo: dramatização em 5 quadros em aberto” [1976]:

as mandíbulas — waly salomão

embora não haja texto na composição visual, ela se dá como texto pelo diálogo com seu longo texto (apresento aqui apenas a primeira imagem): a reprodução de uma foto alheia que representa um avião de guerra como um tubarão (para waly, tornado símbolo do imperialismo ianque) guerreando contra uma simples sombra (de capim de caboclo) é capaz de reencenar numa sinédoque as batalhas da pindaíba nacional, que se encerra com uma quase vitória do capim de caboclo, uma virada na história pela quase supressão da imagem imperialista ao ar livre — vejam que não foi por acaso que essa imagem acabou ocupando a capa da edição original de gigolô de bibelôs . outro caso, talvez mais exemplar, é a série construtivista tabareú [1977]:

tabaréu — waly salomão

nesta série que reúne 10 imagens, vemos o mesmo texto sendo desenvolvido (nas imagens anteriores temos ainda poucas palavras escritas) no papel, ao mesmo tempo em que seu suporte varia: sobre as mão do poeta, sobre pedras, sobre grama, até sobre um táxi, como no caso desta imagem. aqui temos um texto longo, com experimentação da grafia manual, mudança de cores, de estilos de escrita, uma pequena colagem (a palavra test), num registro que poderia ser classificado como mais próximo do ensaio: a obra anuncia os testes de uma obra poética-lecture-palestra a ser realizada em curitiba. estaríamos afinal diante de um ensaio, de um ensaio visual, de um poema, de um poema visual, de um poema-ensaio-visual, de um anúncio-poético, de um ensaio-propaganda-poema-visual-em-série? se fosse pra classificar, acho que ficaria com a última escolha, que se recusa à categorização simples.

como disse antes, o plano não é desmerecer a edição da poesia total (suponho que, para além dos motivos estéticos haja também outros de ordem econômica: inserir imagens coloridas encarece um livro que se quer popular), mas pensar sobre que poesia total walynesca surge dessa edição. a meu ver, apesar de todo louvor merecido por reeditar um poeta fundamental, ela limita o que vem a ser o poeta na sua totalidade, na sua poesia total; ou pelo menos quanto ao que me parece ser um projeto de ruptura constante dos limites pré-estabelecidos. no fim, ao reposicionar fronteiras de gêneros como critério de demarcação do que seria a obra poética de waly salomão, a poesia total se especifica & arrisca a resumir sua poética dentro da poética tradicional.

mas há fundamentalmente uma notícia boa nisso tudo: ainda não demos conta do waly.

guilherme gontijo flores

 

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3 comentários sobre “nota crítica: “poesia total” de waly salomão

  1. Oi Guilherme,
    queria fazer duas obserções,
    quanto aos babilaques , adoraria colocar, mas o livro teria um custo inviável, não era nosso interesse fazer um livro pra poucos, era tornar a obra do meu pai mais acessível através de um livro reunindo toda a obra poética – apesar de ser uma obra mais experimental e complexa em vários momentos, não acho que meu pai se restrinja ao círculo de poetas para poetas, sua poesia sempre vendeu bem para livro de poesia (o Gigolo de Bibelos, na época, entrou na lista dos mais vendidos da Veja e os outros livros tiveram reedições).
    existe um catálogo de arte nas livrarias com os babilaques de uma exposição feita em 2007 no Oi Futuro. Também acredito que eles mereçam esse cuidado e delicadeza maior de edição, de serem tratados como obras de artes – a opção de colocar em preto e branco me pareceu absurda, apenas alguns poucos no livro, em um caderno colorido, insuficiente, e de dobrar ou triplicar o preço do livro para inclui-los, sinceramente, nunca gostei.

    quanto ao Armarinho e Helio,
    talvez o meu grande erro tenha sido na redação da nota, devia ter explicado melhor, mas também não queria fazer de uma nota, um tratado ensaistico.
    é claro que a nota, sobretudo vindo após a prosa-poética do Me Segura, dá a entender que optamos por cortar outros possíveis textos de prosa-poética que essas edições conteriam, mas acho que o caso é diferente.
    considero que existe uma transformação na relação do meu pai com a poesia, com o livro e a música, no período da década de 80 pós lançamento do Gigolo: onde há uma diferenciação de letra de música e o restante – que cessa de acontecer a partir dos livros Algaravias e do poema Balada de um vagabundo na biografia do Helio, os textos musicados continuam sendo trabalhados e modificados até a sua publicação como poemas – ocorre também uma guinada do meu pai para o verso (isso também mereceria maiores esclarecimentos, mas fica pra outra – estou digitando o texto no celular, não é fácil!)
    Assim como a prosa também se modifica, apesar de ainda embebidos por poesia, são textos que (ao meu ver, posso estar errado, mas acho que não estou) assumem um caráter mais ensaístico ou de memória, não sei exatamente classificar, mas são textos de outra ordem, de outro lugar, o fluxo deles é diferente e, realmente, acho que não pertencem a esse livro de poesia completa – acho que pertencem ao lugar onde meu pai os publicou: um livro “de difícil classificação” chamado Armarinho de Miudezas e a biografia sobre Helio Oiticica (que ganhará em breve uma nova edição).

    enfim, peço desculpas se essas questões tenham comprometido a sua leitura – o seu artigo é praticamente todo sobre isso, logo, entendo que foram, para você, um problema grave, por isso achei que deveria explicar melhor as escolhas.

    gd abs o.

  2. Oi Guilherme,
    queria fazer duas obserções,
    quanto aos babilaques , adoraria colocar,  mas o livro teria um custo inviável,  não era nosso interesse fazer um livro pra poucos,  era tornar a obra do meu pai mais acessível através de um livro reunindo toda a obra poética – apesar de ser uma obra mais experimental e complexa em vários momentos,  não acho que meu pai se restrinja ao círculo de poetas para poetas, sua poesia sempre vendeu bem para livro de poesia (o Gigolo de Bibelos,  na época,  entrou na lista dos mais vendidos da Veja e os outros livros tiveram reedições).
    existe um catálogo de arte nas livrarias com os babilaques de uma exposição feita em 2007 no Oi Futuro. Também acredito que eles mereçam esse cuidado e delicadeza maior de edição, de serem tratados como obras de artes – a opção de colocar em preto e branco me pareceu absurda, apenas alguns poucos no livro,  em um caderno colorido, insuficiente,  e de dobrar ou triplicar o preço do livro para inclui-los,  sinceramente, nunca gostei.

    quanto ao Armarinho e Helio,
    talvez o meu grande erro tenha sido na redação da nota,  devia ter explicado melhor,  mas também não queria fazer de uma nota, um tratado ensaistico.
    é claro que a nota,  sobretudo vindo após a prosa-poética do Me Segura,  dá a entender que optamos por cortar outros possíveis textos de prosa-poética que essas edições conteriam,  mas acho que o caso é diferente.
    considero que existe uma transformação na relação do meu pai com a poesia,  com o livro e a música, no período da década de 80 pós lançamento do Gigolo: onde há uma diferenciação de letra de música e o restante –  que cessa de acontecer a partir dos livros Algaravias e do poema Balada de um vagabundo na biografia do Helio,  os textos musicados continuam sendo trabalhados e modificados até a sua publicação como poemas – ocorre também uma guinada do meu pai para o verso (isso também mereceria maiores esclarecimentos, mas fica pra outra – estou digitando o texto no celular, não é fácil!)
    Assim como a prosa também se modifica,  apesar de ainda embebidos por poesia,  são textos que (ao meu ver,  posso estar errado, mas acho que não estou) assumem um caráter mais ensaístico ou de memória,  não sei exatamente classificar,  mas são textos de outra ordem, de outro lugar, o fluxo deles é diferente e,  realmente, acho que não pertencem a esse livro de poesia completa – acho que pertencem ao lugar onde meu pai os publicou: um livro “de difícil classificação” chamado Armarinho de Miudezas e a biografia sobre Helio Oiticica (que ganhará em breve uma nova edição).

    enfim,  peço desculpas se essas questões tenham comprometido a sua leitura – o seu artigo é praticamente todo sobre isso,  logo, entendo que foram,  para você,  um problema grave,  por isso achei que deveria explicar melhor as escolhas.

    gd abs o.

    1. olá, omar,

      em primeiro lugar, muito obrigado por uma resposta cuidadosa dessas! não é sempre que a gente consegue de fato um diálogo sério.
      espero que você não tenha levado a mal minha nota crítica: não se trata, absolutamente, de reclamar da edição por si só. todo leitor de poesia brasileira está exultando com esse trabalho: eu apenas preferi refletir sobre os problemas que a obra do teu pai põe a qualquer editor (nem suponho que eu faria melhor ou coisa parecida) por ser multifacetada & com isso questionar fronteiras. com isso, pobre do editor que precisa escolher os limites. além disso, eu já vi algumas resenhas elogiosas, comentando as – muitas – virtudes do trabalho: desde o projeto gráfico, até a organização, então preferi não redundar e aprofundar o debate.
      um detalhe antes de tudo: não quis restringir o waly a “poeta de poetas”, mas apenas indicar que nos faltava uma nova edição popular (como foi o “gigolô”). é claro que já tinham aparecido algumas reedições, como o “me segura…”; mas faltava esse trabalho de agora, que pudesse tornar um waly um poeta para um público jovem, amplo. na falta de uma edição como essas, quem revirava sebos e afins atrás da obra dele eram os leitores atentos de poesia.
      sobre os “babilaques”, até fiz um parágrafo no texto, supondo que a causa fosse econômica mesmo (um ponto que o adriano scandolara sabiamente me sugeriu); além disso, existe aquela maravilha de edição da ed. contracapa, que tenho cá comigo, e que os interessados podem procurar.
      sobre o “armarinho” e “helio”, eu tenho os livros originais comigo, entendo o teu argumento, sobretudo no caso do “helio”. é só que eu discordo mesmo. acho que, principalmente o armarinho é um livro-fronteira, que turva as margens entre os gêneros. mas enfim, minha leitura do waly passa por essa mistura; o que argumentei aqui é que toda edição é uma leitura: a tua preferiu evitar esse problemas que pra mim fundamentam o entendimento de uma poética, então só agradeço mesmo de poder ouvir o que te motivou. a grande graça do teu pai é não se encaixar facilmente nos projetos de leitura, por isso o encerramento da nota com a ideia de que não demos conta do waly: isso é um elogio! um poeta mediano seria rapidamente digerível & assentado.
      no mais, mil parabéns mesmo pela ampliação do corpus das letras de canção. isso é um primor! se não escrevi na nota, pelo menos fica aqui no comentário. & torço pra que saia logo a nova edição do “helio”. evoé!
      ah, uma observação: procurei no livro um lugar que especificasse quem eram os editores, mas não achei (pode ser desatenção minha – me avise, se for). no caso de uma segunda edição (há de haver em breve), acho que valia a pena explicitar isso, talvez até uma notinha introdutória breve (1 página que seja).
      abração,
      guilherme

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