Cunt Shakespeare, de Dodie Bellamy

Dodie-Bellamy

Dodie Bellamy é uma autora feminista experimental norte-americana associada ao movimento literário da New Narrative das décadas de 1970 e 1980, ao lado de figuras como Kathy Acker (1947 – 1997) e Dennis Cooper (1953 – ). Como diz a breve notinha introdutória à sua entrevista para a revista Paris Review, ela escreve obras “genre-bending” (ô, termo difícil de traduzir: eu arriscaria algo como “subversoras de gênero”… no caso, é no sentido textual, mas ninguém há de duvidar de que vale para o sentido sexual também, genre/gender) com enfoque para “sexualidade, política e experimentação narrativa, desafiando as distinções entre ficção, ensaio e poesia” e “revisões radicalmente feministas de obras canônicas”. Ela tem publicado desde 1990, quando estreia com seu primeiro livro, de contos, chamado Feminine Hijinx, ao que se segue Real: The Letters of Mina Harker and Sam D’Allesandro (1995), uma obra mais estranha, em colaboração com Sam D’Allesandro, consistindo de um romance (?) epistolar, que recontextualiza a história do Drácula de Bram Stoker para a San Francisco flagelada pela epidemia (então recente) de AIDS dos anos 90. Esse livro, publicado a princípio por uma editora pequena, foi republicado mais recentemente em 2004 pela editora da Universidade de Wisconsin.

Para nós, porém, pensando mais nas questões de poética, imagino que o seu trabalho mais interessante seja o que vem sido desenvolvido desde 2002 com a publicação de Cunt-Ups (volume publicado pela editora Tender Buttons. Não consigo pensar num nome melhor para uma editora que publica um livro desses). Cunt-Ups consiste num trabalho de intervenção sobre o texto à moda da técnica dos cut-ups (recorte e colagem) dos beats, dos quais o exemplo mais famoso é William Burroughs, autor, por exemplo, do famoso Almoço Nu (1959). Mas o que transforma aqui o cut em cunt (um dos termos ingleses mais pesados para a genitália feminina, que também serve de ofensa (tipo “you cunt”), mas que convém traduzir aqui por “buceta” ou ainda “xoxota”, depende de como é onde você mora) é o aspecto não exatamente pornográfico (os textos não são feitos para excitar), mas sexualmente explícito, subversor, dessa prática, que sugere uma “violência sexual/textual que é mais do que uma mera ‘desorganização dos sentidos’, mas um desmembramento do corpo marcado pelo gênero também”, como diz a orelha do livro. Essa prática encontrou continuação no seu novo volume, publicado ano passado, chamado Cunt Norton, em que o cunt-up é aplicado à famosa Norton Anthology of Poetry – uma das instituições mais respeitáveis da edição de poesia do mundo anglófono, que, como com qualquer instituição respeitável e pomposa, é impossível não sentir uma pontinha de vontade de profanar. E é basicamente isso que Bellamy faz aqui: de Chaucer, Spenser e Shakespeare, até John Ashbery e Hughes, passando por Milton, Pope, Blake, Keats & Shelley, Poe, Whitman, Dickinson, Stevens, Pound, cummings, ela vai à desforra, cortando, colando, fundindo e – bem, que adianta ser pudico nessas horas? – fodendo os textos, conforme mescla os autores do panteão da alta cultura de língua inglesa com a virtualmente anônima literatura (no sentido lato da palavra) erótica mais barata de banca de revista. E os resultados são curiosíssimos, surpreendendo como textos mesmo, linguisticamente interessantes (sobretudo para quem tem gosto por poesia conceitual), mesmo depois que se dissipa o choque imediato e paramos de rir um pouco para prestar uma maior atenção. Em alguns momentos, ele chega a dar uma prosa bonita de fato, e eis talvez o paradoxo inato da prática de Bellamy: ao mesmo tempo uma profanação do cânone – “O que acontece quando enrabam a Norton Anthology of Poetry?”, começa a resenha de Adam Fitzgerald sobre Cunt Norton – e uma “canção de amor” a ele, uma forma torta de homenagem, Cunt Norton parece encarnar na prática aquilo que Baudelaire descreveu como a perda da auréola, lançando esses nomes já sacralizados à muito bem-vinda lama do cotidiano e das paixões humanas (sobretudo as mais baixas).

Para ilustrar o que estou dizendo aqui (eu sei que fica bastante vago só de descrever), eu selecionei um dos textos do livro, chamado “Cunt Shakespeare” (todos os títulos consistem de Cunt + o nome do poeta… o “Cunt Chaucer”, “Cunt Spenser”, “Cunt Shakespeare” e o introdutório “Cunt Norton” podem ser vistos no excerto disponibilizado online pela editora clicando aqui), arregacei as mangas e o traduzi. No entanto, como se trata de uma obra apropriativa, imaginei que uma tradução direta não seria adequada. Em vez disso, procurei identificar as referências – no caso, os sonetos 116, 129, 130, 138 e 146, mas deve ter outros que me escaparam, com certeza – e fui atrás das traduções, mais ou menos como fiz quando traduzi aquele poema do Aaron Shurin no ano passado. Como temos várias traduções desses sonetos à disposição, de variados graus de sucesso, eu me permiti utilizá-las liberalmente. Por exemplo, na primeira parte de “Cunt Shakespeare”, Bellamy utiliza recortes do soneto 116. No começo, eu me vali da tradução de Jorge Wanderley, para reproduzir no jogo entre o verbo “desertar” e o substantivo “desertor” a relação entre “remove” e “remover” do inglês, que outras traduções não mantêm. No entanto, preferi a do Ivo Barroso na parte “Love bears it out even to the edge” (“of doom”, continua, em Shakespeare, mas o “doom” foi cortado em Bellamy), porque “persevera ao limiar (da morte)” me serve melhor aqui do que “resiste até o Dia (do Juízo)”, e assim por diante, sobretudo como sugestão sexual, o “limiar” como a proximidade do orgasmo. No fim, apesar do pequeno volume e da falta de metro, rima e outros elementos tradicionalmente considerados difíceis de se verter na poesia, esse é um texto bastante lento de se traduzir, ainda que divertido.

Por fim, eu escolhi “Bucetado” para traduzir o “Cunt” aqui usado como qualificador no título, em parte porque acredito que “buceta” (com u mesmo) seja uma boa tradução para “cunt” (no caso, eu descartei a leitura, ainda que possível, do cunt como qualificador ofensivo, semelhante a “cuzão”, “filho da puta”, etc) e em parte porque também imagino que se mantenha alguma relação sonora com a palavra “recortado”, em alusão ao cut-up (e, talvez, só talvez, eu tenha gostado também do eco pornô-paródico com o título do filme Shakespeare Apaixonado, o que foi acidental, mas um acidente muito feliz). Pensei também em “embucetado” ou “embuçado” (com um jogo de palavras com um termo que já existe) e ainda algo como “Xoxote do Shakespeare” (uma referência ao estilo musical do xote). Decisões, decisões. É claro, porém, que não é nada definitivo, e essa aqui é só uma tentativa experimental (no sentido de “tentativa”) de traduzir um texto de uma poética experimental. Mas vale a pena a experiência.

(Adriano Scandolara)

Achei essa imagem na internet, não consegui achar o contexto, mas vou deixar aqui, porque me pareceu muito apropriada.
Achei essa imagem na internet, não consegui identificar o contexto, mas vou deixar aqui assim mesmo, porque me pareceu muito apropriada.

 

Shakespeare Bucetado

O que impeça o amor não é amor. Levei tua lingerie até meu desertor para desertá-la: ai, não! São teus peitos que balançam no ritmo, abalados até os astros. Teus peitos são toda grande vaca e me nutrem sagrados com pensamentos das alturas por alçar. O amor não é enquanto toquei punheta, pensando em ti em segredo, não poupando a minha alfange na enseada, no cinema, no restaurante, na garagem. O amor persevera ao limiar. Provavelmente eu não teria dado meu decreto nem te amado anos atrás. Arrio minhas calças e obro até a ação, a luxúria perjura, minha língua na tua orelha por só um segundo, extrema, rude, cruel, desleal. Desprezado o escroto contra o meu antigo pergaminho, na frente; e logo desfrutei-te, perdida a razão, odiada a atenção dada ao seu pau. Eu ao ser possuído insano, enlouquecida presa e perseguido nas saudades do passado e o desejo de foder; extrema a felicidade como prova – e provei, rasguei tua blusa, arregaçado sonho. O mundo bem sabe; porém foder-te-ia pra caralho. Ao inferno me conduz, meu amor de olhos assim vaidosos; com licença: me fode. Deslizo entre rubros teus lábios: se a neve é branca, por que então as paredes. Enfio o teu pau de rocha em minha buceta por pelo menos quinze minutos. Noto que teus seios são escuros; se a cabeleira ao arame é igual, negra aberta de novo e de novo até gozares adamascada, rubra e branca, brisas de rosa e manchas. Belisco teus mamilos; dá mais prazer o hálito do que cativar teu caralho? Vai minha deusa, meu amor, caminha em suas calcinhas. Se eu não tivesse lido Anaïs Nin juraria que meu amor é raro; ela desmentiu minha pomba contra a tela do computador. Declaro que a minha pomba é feita de verdades; nela creio mesmo quando desço meus dedos e aliso as minhas dobras; não sou jovem inconsequente, desconhecendo os mundos de mim e de ti. É um mapa. Penso que minha pomba me julga nova; ela te sabe aqui e agora no chão ao lado dos meus porquês: não é ela que é razão infiel. Estava eu rosnando à tua braguilha, “Vai, mete”. Meu maior dom fingir sinceridade. No amor a idade é não dizer o belo nome da foda em vão: minto contigo, e tu comigo, e nossos erros latejam entre teus lábios e no centro do meu mundo de pecado. Senhor destes rebeldes porquês, quero que me fodas em meio a esta penúria e sofrimento, as cores em expansão.

 

Cunt Shakespeare

Impediments to love are not love. I have put thy underwear up to my remover to remove: O, no! it is thy tits swaying in rhythm, shaken to the stars. Thy tits are every large cow and they feed me sacredly with thoughts of heights be taken. Love’s not while I jerked off, thinking of thee covertly, bending my sickle’s compass in a cove, a movie, a restaurant, a parking garage. Love bears it out even to the edge. I probably wouldn’t have given writ nor ever loved thee years ago. I pull down my pants and push action til action, lust is perjured, my tongue in thy ear for just a second, extreme, rude, cruel, not trusting. I enjoyed no scrotum into my ancient parchment, in front; and no sooner I had thee, past reason, I hated giving thy cock much attention. I the taker am mad, mad in pursuit and in nostalgia for our past and the desire to fuck; we had extreme bliss as proof—and proved, I ripped thy shirt open, tugging dream. All this the world well knows; yet really I do want to fuck the shit out of thee. Lead me to this hell, my mistress whose eyes are vain like that; excuse me: fuck me. I slide between thy lips red: if snow be white, why then walls. I stick thy cock stone inside my cunt for at least fifteen minutes. I notice that thy breasts are dun; if hairs be wires, black opened it over and over again until thou camest damasked, red and white, such rose breezes and spots. I pinch my nipples; is there more delight in breath than in making friends with thy cock? My goddess go, my mistress, walk on thy panties. If I hadn’t read Anaïs Nin I’d think my love as rare; she belied my pussy against the computer screen. I put forth that my pussy is made of truth; I do believe her though I reach down and unravel my wrinkles; I’m no untutored youth, unlearned in the worlds of me and thee. It’s a map. I realize my pussy thinks me young; she knows thee right now here on the floor beside my wherefore: not she is unjust. I’m at thy pants snarling, “Give it to me.” My best habit is in seeming to trust. Age in love shouldn’t take the beautiful word fuck in vain; as I lie with thee, and thou with me, our faults throb along thy lips and in the centre of my sinful earth. Lord of these rebel becauses, I want thee to fuck me within this suffering and dearth, painting outward.

(Dodie Bellamy, cunt-up de William Shakespeare, tradução de Adriano Scandolara)

 

PS: para quem leu até o final e ficou martelando na cabeça as possibilidades e problemas de tradução de termos como “cunt” e “pussy”, segue um videozinho legal que pode ajudar a ampliar o vocabulário e ajudar na discussão:

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