Via, de Caroline Bergvall

Caroline_Bergvall

Caroline Bergvall é uma poeta nascida em 1962 na Alemanha, filha de um casal franco-norueguês, e radicada na Inglaterra desde 1989. Como era de se esperar, com um background cultural desses, sua produção se foca em temas como multilinguismo, bem como também feminismo e questões de identidade cultural, muitas vezes trabalhando não só com o texto escrito, mas também performance, poesia sonora e instalações multimídia. Sua instalação Say: ‘Parsley’, por exemplo, tem como foco conflitos entre registros de fala e foi comissionada e exibida pela primeira vez pela Spacex Gallery em Exeter em 2001. Sua obra escrita inclui os livros Strange Passage: A Choral Poem (1993), Goan Atom (2001), Fig (2005) – onde está incluído o texto de Say: ‘Parsley’, junto do texto anglo-francófono “About Face” e do poema “Via”, de que falaremos aqui –, Alyson Singes (2008), uma versão sincrética de inglês moderno com inglês médio do conto da Mulher de Bath de Chaucer, e Meddle English (2010), onde Bergvall dá continuidade a esse trabalho de exploração do inglês médio em contato com o inglês moderno, o francês e o norueguês.

“Via”, em referência ao verso “che la diritta via era smarrita” do primeiro terceto do Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, é um poema conceitual já bastante notório. Como aponta esse comentário de Genevieve Kaplan na revista Jacket, ele é algo anômalo em Fig, porque é um poema com “cara de poema”, no meio de outros textos poéticos em formatos mais prosaicos e fragmentários. Sua proposta é simples: pegar todas as 47 traduções registradas do Inferno na British Library e transcrever o primeiro terceto de cada uma, com o sobrenome do tradutor e ano de publicação abaixo, organizando-os em ordem alfabética (primeiro uma tradução cujo primeiro verso é “Along the journey of our life half way”, depois outro que começa com “At the midpoint in the journey of our life” e assim por diante). A ideia é algo incomum, mas o efeito é hipnótico, com a figura de Dante constantemente reentrando a e se perdendo na floresta escura, o “sujeito da escrita desaparecendo infinitamente nas palavras de tradutores de Dante”, como diz Marjorie Perloff, em O Gênio Não Original. Continua ela depois:

“Ao organizar as traduções em ordem alfabética (pela primeira letra do primeiro verso, começando com “Along the journey of our life halfway”), ignorando a cronologia e inserindo o nome e a data do autor em parênteses após a citação, Bergvall produziu um texto estarrecedor que demonstra o quanto é impossível – e, no entanto, inevitável – a tarefa da tradução. A selva oscura de Dante é ao mesmo tempo escura [dark], sem sol [sunless], sombria [darkling], tenebrosa [gloomy], grande [great], obscura [obscure], umbrosa [shadowy] e fosca [darksome]; sua via diritta pode ser o caminho mais próximo ou o correto, a estrada direta ou o caminho adequado; essa estrada está smarrita – perdida [lost], bloqueada [blocked], desviada [strayed from], impossível de encontrar [not to be found]. Os tradutores citados variam de poetas famosos do século 19 como Longfellow (1867) a contemporâneos como Robert Pinsky (1994) e inclui tradutores já estabelecidos, de Henry Francis Cary (1805) a Allen Mandelbaum (1980), a figuras obscuras, tais como James Innis Minchin (1885) ou Geoffrey L. Bickersteth (1955). Igualados pelo jogo alfabético e desindividualizados pela omissão do primeiro nome do tradutor, esses tercetos citados (alguns rimados em esquema aba como na terça rima, alguns em verso livre ou prosa) transmitem a genialidade do original, cujas palavras, cada uma delas, encontram ressonâncias com possíveis sentidos mesmo ao produzirem um poema independente escrito num nonsense curioso de “meio de caminho”, variantes de rimas repetidas midway/astray e versos iniciais com “amid”, “in the middle of” e “half-way”, de modo que o badalar dos sons produz um tipo de salmodia, perturbada a cada quatro versos pelo som e imagem discordantes de um nome próprio e data ordinários.”

Ilustração de William Blake para o Canto I
Ilustração do Canto I, por William Blake

 

Para a tradução, Bergvall então cria um problema curioso. Talvez seja possível fazer uma tradução poética, digamos, “normal” de “Via”, se atentando para as diferentes refrações das palavras do italiano na língua inglesa e no modo como dá para reproduzir esse efeito no português sem acabar se prendendo ao original de Dante… o que pode ser particularmente complicado no caso das 17 destas traduções que são rimadas (e um número maior que ainda é metrificado). A coisa da ordem alfabética, porém, seria um problema. No entanto, eu imagino que a graça esteja em refazer o mesmo movimento que Bergvall fez, uma recriação se valendo do mesmo princípio: pegar as traduções disponíveis de Dante para o português (o que, infelizmente, dá um número menor do que 47), transcrevê-las, com sobrenome e data, e dispô-las em ordem alfabética. Foi o que fez, no ano passado, no espanhol, o tradutor Carlos Soto Román para a revista Letras En Línea, cuja tradução pode ser lida clicando aqui.

E isso nos leva a pensar uma questão do conceitualismo que é a sua relação tensa com a possibilidade da tradução. A poesia conceitual, especialmente a do conceitualismo mais de raiz, como praticado por Kenneth Goldsmith, Vanessa Place e outras figuras infames da contemporaneidade, inverte a dinâmica estabelecida por Mallarmé de que poesia se faz com palavras e não com ideias, constituindo uma poética de fato de ideias (mais sobre aqui neste artigo de Archambeau). Na prática, isso significa que, se pensarmos numa dicotomia entre projeto e execução – em que um poeta começa com uma ideia sobre um poema e elabora sobre ela – a poesia moderna mais tradicional, canônica, apesar de vir exigindo cada vez mais originalidade dos projetos (literalmente pode-se dizer que não se faz mais poemas pastorais como antigamente), privilegia a execução (que pode ser mal feita mesmo quando um poeta tem um projeto bom, o que dá sempre aquela sensação horrível de potencial desperdiçado), ao passo que, para a poesia conceitual, a execução (que, como diz Goldsmith, talvez de piada, mas não dá para ter certeza, não é para ser lida) é menos importante do que o projeto – e isso, no limite, faz com que cada poema conceitual seja irrepetível. Você pode escrever um livro inteiro de poemas amorosos, com a variação dos poemas entre si repousando em sua execução, mas não é possível repetir um poema como “Via” e menos ainda um livro absurdo como Traffic, de Goldsmith, porque a novidade por trás da ideia se esgota muito rapidamente. Desse modo, a linha entre tradução e criação (não-)original é cada vez mais borrada, mais ainda do que no caso das traduções “normais” de poesia, porque, ao mesmo tempo em que eu posso apresentar o “meu” “Via” como uma tradução, eu também posso dizer que se trata de um novo poema conceitual em português que segue os mesmos parâmetros, mas envolvendo as traduções de Dante para o português – mais ou menos como eu poderia aproveitar a ideia por trás dos poemas amorosos altamente imagéticos de cummings, por exemplo, para escrever os meus próprios poemas amorosos em português. Talvez seja por isso que Goldsmith tenha dado declarações difíceis de engolir como a de que a tradução está “ultrapassada” e que o “deslocamento” (displacement) é o que deverá tomar o seu lugar (clique aqui). Diz ele:

“A tradução é o grande gesto humanista. Educada e razoável, é uma construtora de pontes exageradamamente cautelosa. Sempre pedindo licença, ela roga por compreensão e amizade. É otimista, porém provisória, apostando as esperanças num resultado harmonioso. No final, sempre fracassa, pois o discurso que propõe acaba sendo inevitavelmente fora de registro; a tradução é uma aproximação do discurso.”

Óbvio que devemos ler as opiniões de Goldsmith com um grão (ou um caminhão) de sal (é difícil não enxergá-lo como um tipo de troll literário, afinal de contas, o que é muito interessante dum ponto de vista bakhtiniano, mas isso é assunto para outra ocasião), e eu inclusive tenho um pé atrás com esse discurso num nível ético, especialmente quando essa empolgação dele pelo modernismo do século XXI me traz flashbacks incômodos de Marinetti. Mas, em todo caso, serve de provocação, e a discussão, creio, há de ser frutífera.

Voltando a Bergvall agora, a “minha” tradução (já explico o porquê das aspas) talvez destoe um pouco da proposta dela. As 47 traduções em “Via” estão todas registradas na British Library, ao passo que, das 16 aqui, 5 são, digamos, extra-oficiais. O trabalho aqui começou com um post nessa famigerada rede social que é o facebook, procurando as traduções disponíveis de Dante (um assunto em que, até então, eu era bastante leigo) e eis que o pessoal se empolgou, e o Guilherme Gontijo Flores, o Rubens Canarim, o Daniel Martineschen e o Ademir Demarchi me mandaram as suas traduções desse primeiro terceto (e eu, por fim, cedi e acabei fazendo a minha também). Como, mesmo assim, ainda estamos desfalcados em número de traduções, achei por bem ir contra a letra do projeto do poema (mas seguindo-o em espírito, porque o que há de mais modernismo-século-XXI do que um poema feito no facebook?) e incluí-las, com um agradecimento aos tradutores e também ao poeta Pádua Fernandes e a Gustavo Petter por terem todos me ajudado a encontrar as edições. A que eu tenho é a do Italo Eugênio Mauro, da editora 34, por isso ela e a tradução em domínio público de Xavier Pinheiro foram o meu ponto de partida, ao qual as outras traduções foram sendo somadas depois. No entanto, eu estou ciente de que não consegui localizar todas as traduções. Falta, por exemplo, a do Barão da Vila da Barra, do século XIX, e também me foram apontados nomes como Yan Dargent, Rui Viana Pereira, Fábio M Alberti, Fernanda Botelho, Sophia de Mello Breyner, Armindo Rodrigues, Teixeira de Aguilar, Cordélia Dias D’Aguiar e Cecilia Casas. Esta tradução, portanto, acaba sem querer confirmando o que disse Goldsmith e sendo provisória, um work-in-progress ao qual todos os leitores do escamandro estão convidados a participar – e que pode muito bem, contrariando o Goldsmith, derivar a sua força dessa situação provisória. E por isso eu hesito em dizer que essa tradução seja minha, o que talvez seja a postura mais adequada dentro do conceitualismo.

O original de Bergvall, que não transcrevo aqui por conta do tamanho, pode ser visto no site da Poetry Foundation, clicando aqui.

Adriano Scandolara

Ilustração do Canto I, por Salvador Dali.

Via

17 Variações de Dante

Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
che la diritta via era smarrita

A Divina Comédia – Pt. 1 Inferno – Canto 1 – (1-3)

1. À meia-idade da terrena vida,
perdido achei-me numa selva escura,
a senda certa estando já perdida
               (Ziller, 1953)
2. A meio caminhar de nossa vida
fui me encontrar em uma selva escura:
estava a reta minha via perdida.
               (Mauro, 1998)
3. Ao meio da jornada da vida, tendo perdido o caminho verdadeiro, achei-me embrenhado em selva tenebrosa.
               (Donato, 1978)
4. Ao meio das quebradas desta vida
Me vi perdido pelo breu das brenhas
Extraviado de qualquer saída.
               (Flores, 2014)
5. Aos meus 35 annos, termo medio commum da nossa vida, dei accordo de mim n’uma selva escura, porque do recto caminho me afastára.
               (Pinto de Campos, 1886)
6. DA nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.
               (Pinheiro, 1907)
7. Dos dias no mear desta jornada,
Embrenho-me num verde e negro umbral,
Desvio à via reta, irretornada.
               (Canarim, 2014)
8. Em meio do caminho de nossa vida,
encontrei-me por uma selva escura…
Porque o reto (direito) caminho era perdido
               (Tahan, 1947)
9. Era ao mei’ traçado da nossa vida
que me embrenhei numa quiçaça
que a via destra já se via evadida.
               (Martineschen, 2014)
10. No meio do caminho de nossa vida
encontrei-me numa selva escura
porque me tinha extraviado da via do bem
               (Braga, 1955)
11. No meio do caminho desta vida
desencontrei-me numa selva escura
que do rumo direito vi perdida
               (Wanderley, 2004)
12. No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída.
               (Campos, 1986)
13. no meio do caminho e da vida
perdi o amor na selva obscura
errando dor, sem direção e saída
               (Demarchi, 2014)
14. No meio do caminho em nossa vida,
eu me encontrei por uma selva escura
porque a direita via era perdida
               (Moura, 2011)
15. Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo.
               (Rocha, 1999)
16. Tendo já meia vida palmilhado,
Numa escura floresta me flagrei,
E da correta via fui desviado
               (Scandolara, 2014)

 

(poema de Caroline Bergvall em cima de Dante Alighieri, em tradução de vários tradutores, organizada por Adriano Scandolara)

6 comentários sobre “Via, de Caroline Bergvall

  1. A tradução do Domingo Ennes (1947) começa assim:

    “Em meio do caminho desta vida,
    Achei-me um dia numa selva escura,
    Muito longe da senda já perdida.”

    A do Cristiano Martins (1976):

    “A meio do caminho desta vida
    Achei-me a errar numa selva escura
    Longe da boa vida, então perdida.”

    A tradução do Alberti é plagiada:

    http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2008/11/assassinado-tradutores-5-divina-comdia.html

    Uma tentativa minha, em versos de 11 sílabas, seguindo a versificação antiga e aloprando com uma paráfrase irresistível de Milionário e José Rico:

    “No meio desta longa estrada da vida
    Eu me perdi andando numa selva escura,
    Quando a senda correta estava perdida.”

  2. Da minha vida em meio do caminho,
    Tendo perdido o rumo verdadeiro,
    Em uma selva escura dei comigo.
    (Tradução do Barão da Villa da Barra, conforme edição da Pradense, 2010. Yan D’Argent é o ilustrador usado neste volume, e um baita ilustrador!, e é francês; alguém pode ter-se confundido ao lhe passar esse nome, porque certamente nunca traduziu essa obra para o português)

    1. Aaaah, obrigado pelos dados e pela tradução. O que me foi passado foram os nomes a quem a publicação está atribuída (tal como registrado na biblioteca, acredito), aí como o Yan colaborou com as ilustrações, acabou entrando junto. Já corrijo os dados. O ano original, se não me engano, é 1886. Um dos outros tradutores (o Hernani, creio) comenta isso na introdução. Um abraço!

  3. Ah, o ano é dessa edição; não faço ideia de qual é o ano verdadeiro da tradução e 1ª edição)

  4. E só porque eu também quero brincar, registro minha tradução 😛
    “Da estrada desta nossa vida ao meio,
    perdido numa selva achei-me escura
    porque da reta via estava alheio.”

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