Ana Luísa Amaral é uma autora lisboeta nascida em 1956. Licenciou-se em Letras Germânicas na Faculdade de Letras do Porto, onde leciona até hoje. Completou uma tese de doutorado sobre Emily Dickinson (que pode ser baixada e lida clicando aqui), cujos poemas ela também já traduziu e publicou no volume Cem Poemas (ed. Relógio d’Água, 2010), uma edição que infelizmente me parece bastante difícil de se encontrar no Brasil. Suas áreas de investigação são Poéticas Comparadas, Estudos Feministas e Estudos Queer, e é coautora de um Dicionário da Crítica Feminista (ed. Afrontamento, 2005).
Como poeta, publicou Minha senhora de quê (1990), Coisas de partir (1993), Epopeias (1994), E muitos os caminhos (1995), Às vezes o paraíso, (1998), Imagens (2000), Imagias (2002), A Arte de Ser Tigre (2003), A Génese do Amor (2005), Entre Dois Rios e Outras Noites (2008), Se fosse um intervalo (2009), Vozes (2011), Próspero morreu: Poemas em acto (2011) e Escuro (2014), além de dois volumes de poesia reunida – um deles com o título muito adequado de Poesia Reunida (1990 – 2005), e Inversos (Poesia 1990 – 2010) –, um volume de prosa (Ara, de 2013) e alguns livros de literatura infantil. É ganhadora de diversos prêmios e já teve poemas traduzidos para o espanhol, o italiano, o francês, o sueco, o alemão e o holandês.
Seu livro Vozes, originalmente publicado pela editora lisboeta Dom Quixote em 2011, foi publicado ano passado em terras brasileiras pela Iluminuras e, ao lado de Observação de Verão seguido de Fogo, do também português Gastão Cruz, e dos brasileiros Ximerix, de Zuca Sardan (de que já tratamos aqui no escamandro anteriormente, como se pode ver clicando aqui) e brasa enganosa, de nosso coeditor Guilherme Gontijo Flores, é um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom deste ano. É desse volume que eu selecionei alguns poemas abaixo para compartilhar com nossos leitores, visto que imagino que muitos (por diversos motivos, incluindo problemas de natureza editorial) possam não ter ainda muito contato com a produção portuguesa contemporânea.
Vozes é estruturado como um longo intervalo entre dois poemas, um que carrega o título do livro, que encerra o volume, e outro chamado “silêncios”, i.e. um espaço, portanto, entre o silêncio e a sua quebra pela voz, o que acaba me lembrando daquela citação do Debussy de que a “música é o espaço entre as notas”. Ambos os poemas são marcados pela temática da perda e por uma metalinguagem que acaba permeando o livro inteiro, uma preocupação manifesta com a palavra, a linguagem, a escrita, o eterno problema da comunicação sob a ótica moderna. Entre este começo e este fim há 6 seções, intituladas “A impossível sarça”, “Breve exercício em três vozes”, “Trovas de memória”, “Escrito à régua”, “Outras rotações” e “Outras vozes”.
“A impossível sarça”, da qual retirei abaixo o poema homônimo, é uma referência clara ao episódio bíblico da sarça ardente no Êxodo, quando Deus fala com Moisés pelas chamas – explicitando aí também essa questão da linguagem (“Que mais fazer/ se as palavras queimam”, “palavras// que não chegam/— mas cegam”). “Breve exercício em três vozes” consiste de 3 poemas, com variações sobre Rilke, Camões e Bocage (vozes que não a dela própria, portanto, ainda que tenham vindo inevitavelmente a fazer parte dela, pela leitura e influência), e “Trovas de Memória” retoma uma certa tradição medieval trovadoresca portuguesa, com poemas como “Inês e Pedro: Quarenta Anos Depois”, que lança um viés irônico sobre a história trágica de Inês de Castro, e alguns poemas com “memória” no título (“Mais um sal de memórias”, “Outro sal de memórias”, “E a memória em sextina”, “Em trovas de memória”), cujo mote é um diálogo entre uma dama e um cavaleiro, onde predomina o uso de formas mais fixas, como a quadra metrificada e rimada e a sextina, ainda que o uso dessas formas seja bastante liberal. “Escrito à régua” (da qual selecionei o poema “Vitória de Samotrácia” abaixo) retoma a discussão metalinguística e do problema da escrita, ao passo que “Outras rotações: cinco andamentos” consiste em um único poema intitulado “Galileu, a sua torre e outras rotações” não em 5, como se era de esperar, mas em 4 partes, ou”andamentos”, ficando sugerido, nos versos finais, esse último andamento por vir. Por fim, a seção que vem antes do último e solitário poema que encerra o livro, “Outras vozes”, é mais um excurso pelo passado, especificamente o passado português, dos emblemas míticos de Mensagem, de Pessoa, explorados agora pelo viés feminino – as outras vozes, então, as que foram abandonadas, caladas e apagadas pelo registro oficial da história. Como diz Vinícius Dantas, no ensaio final que acompanha o livro, “Palavras sobre Vozes“:
É um olhar enviesado, e às vezes turvo, para o que é decisivo no processo de criação das imagens de magníficos personagens do passado, como o Infante D. Henrique, Dona Filipa de Lencastre ou D. Pedro, o Cru – um olhar mais interessado na figuração mítica e na sua transformação em símbolo do que que propriamente nas figuras histórias ou na interpretação histórica do período. Os pressupostos da aventura marítima e da expansão comercial aqui estão no escuro da alma – combinação de cobiça, terror, crenças e superstições. Ana Luísa apresenta no poema ‘Outras vozes’, do ciclo de mesmo nome, uma espécie de fábula alternativa sobre o deslumbramento dos viajantes com os corpos e a natureza, à maneira de uma visão realizada da utopia do diverso e do desconhecido, em contraste gritante com a visão cinza dos poderosos e dos ‘mais pequenos’, que juntaram as mesquinharias e os acabrunhamentos para as grandes viagens, abandonando mulheres e crianças.
É a parte mais ambiciosa do livro, na minha opinião, e é onde se encontram alguns dos seus poemas mais interessantes, como o longo “A Cerimônia”, que também selecionei abaixo. E o encerramento deste poema – “Por que outra noite trocaram/ o meu escuro?” – nos aponta já, ao que tudo indica, para a direção que Ana Luísa seguiu logo após Vozes, com o livro de 2014, Escuro, onde dá continuidade a esta releitura crítica da história.
Mais de e sobre Ana Luísa Amaral pode ser visto clicando-se aqui e aqui.
(Adriano Scandolara)
silêncios
a meu amigo Paulo Eduardo Carvalho,
a saudade, sempre
«não queres fazer o silêncio
comigo?»,
perguntei-te uma vez
agora, sei:
irradiando em sol
de mil palavras,
sempre o fizeste
a ele e à alegria —
assim, alegria e silêncio
hão de ficar
os dois somados juntos,
lado a lado
e agora,
o sol está bem,
o azul igual a azul,
porque te tem
e as contas
todas
que tu corrigiste
hão de dar sempre certas
A IMPOSSÍVEL SARÇA
Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer
Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita abençoada
mas de mais e cristã
também castigo
Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras
que não chegam
— mas cegam
SALOMÉ REVISITADA
Deixa-a lá dentro, cortada, na cozinha,
e traz-me só café. Pousa a bandeja
ali, e depois vai. Não quero o seu olhar:
recorda-me a prisão que ele habitou
(sem ser por mim) e a outra
em que eu morei, e onde fiquei,
lembrando o seu olhar. Bolo de figos
e de mel, conchas de som – mas não é
Salomão que eu sinto em sonhos
nesse corredor, mas Salomé, a outra
a mesma que aqui está. E o seu olhar:
amputado de mim não pela espada,
mas por gume maior: o tempo
a insistir que eu nunca fui: multiplicada
pela sua íris. Agora, saí: é largo o corredor,
está certo o quarto, e eu decerto fiz bem.
Tão brilhante e tão quente. Como
sabe a vermelho este café —
A VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA
Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual à Samotrácia.
Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia em direção ao sul,
mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha de horizonte:
qualquer linha, por onde os astros morressem
e nascessem, outra feita e fio de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.
Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?
O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente o joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas —
A CERIMÔNIA
Sagrei-os, aos meus filhos.
Fiz o que era esperado de mim,
mas a minha lembrança era do avesso,
para o futuro,
e estava toda nas rosas
que o tempo haveria de trazer,
em forma das guerras do meu país.
Dessas guerras me lembro,
mas nunca cheguei a ver a guerra
que a ambição e os sonhos lhes doaram.
Sagrei-os na minha mente,
antecipando o gesto de outra
que teria o meu nome.
Nesse dia, de manhã cedo,
era ainda escuro, e no quarto,
mesmo descerradas as cortinas,
quase não entrava a luz.
As aias ajudaram-me a vestir, e eu,
como sempre acontecia depois de acordar
e enquanto não chegavam as horas do dever,
lembrei-me do meu pai, do meu país,
dos seus campos muito verdes atravessados
por rebanhos, da chuva do meu país,
tão contínua como as minhas saudades.
Quando acabei as recordações
e o choro de silêncio,
chamei-os na minha mente.
A todos ofereci prendas.
Ao primeiro dei um ceptro
enfeitado de papel e de palavras,
ao segundo, uma espada
de aço brilhante,
ao terceiro, o gosto pelo mundo,
e ao último contei-lhe o caminho de
água verde e espuma alta
por onde eu tinha chegado;
mostrei-lhe o mar,
ao longo das muitas tardes
em que eu própria sonhava
com as margens que havia deixado
para trás.
Se pudesse sentar-me novamente
junto àquela janela,
a espada brilhante que dei a esse meu segundo filho
tê-la-ia transformado em arado,
ou em pequena lamparina,
porque, ao dar-lhe a espada,
dei-lhe também o resto de matar e de morrer.
Antes lhe tivesse dito vezes sem conta como é belo o mundo
e poder falar dentro dele.
Ou antes lhe tivesse mostrado só o mar,
como fiz com esse filho
junto de quem me cansava
das saudades da minha terra.
Uma prenda, porém, me é boa na memória:
a do papel e das palavras. Dispensaria o ceptro,
mas era ele que segurava palavras e papel.
Dessa prenda não me arrependo,
e quase me regozijo um pouco
por aquilo que fiz nessa manhã fria e escura
em que os chamei aos quatro
para junto da minha mente
e do meu coração.
Mas o que fizeram de mim,
naquele dia há tantos anos, quando, quase menina,
me ajudaram a subir para o bote
e depois para o navio
que me haveria de levar a uma terra que eu não conhecia,
a uma língua que não era a minha língua?
Onde ficaram as minhas tardes molhadas de chuva?
E a memória que de mim ficou,
porque não fala ela dos meus campos verdes
e das sombras dos rebanhos que os atravessavam?
Porque me nega essa memória
as rosas que, em futuro,
e ditas como guerra,
haveriam de dizimar tanta da minha gente?
Por que outra noite trocaram
o meu escuro?
vozes
Eterno é este instante, o dia claro,
as cores das casas desenhadas em aguada rasa,
castanhos e vermelhos quase em declive,
as janelas limpíssimas, de vidros muito honestos.
Este instante que foi e já não é, mal pousei a caneta
no papel: eterno
Sonhei contigo, acordei a pensar
que ainda eras, como é esta janela,
como o corpo obedece a este vento quente, e é ágil,
mas tudo: tão confuso como são os sonhos
Agora, neste instante, recordo a sensação
de estares, o toque.
Não distinguo os contornos do meu sonho, não sei
se era uma casa, ou um pedaço de ar.
A memória limpíssima é de ti
e cobriu tudo, e trouxe azul e sol a esta praça
onde me sento, organizada a esquadro,
como as casas
E agora, o teu andar
acabou de passar mesmo ao meu lado, igual,
e agora multiplica-se nas mesas e cadeiras
que cobrem rua e praça,
e eu vejo-te no vidro à minha frente,
mais real que este instante, e se Bruegel te visse,
pintava-te, exatíssima e aqui.
E serias: mais perto de um eterno
(Eu, que nada mais sei, só o fulgor do breve,
eu dava-te palavras —
(poemas de Ana Luísa Amaral)
bakana