tal nitzán é uma poeta, editora & tradutora (sobretudo de literatura hispânica para o hebraico) israelense nascida em jafa; já viveu em buenos aires, bogotá & nova york, para então se estabelecer em tel aviv. até o momento, lançou 5 livros de poesia: Doméstica (2002, prêmio do ministério da cultura para livro de estreia), Uma noite comum (2006, prêmio da associação de editores de israel), Café soleil bleu (2007), A primeira a esquecer (2009, venceu o concurso da sociedade de artistas e escritores) e Olhar a mesma nuvem duas vezes (2012). sua poesia já foi traduzida para mais de 20 idiomas, tais como castelhano, francês, italiano, lituano, português &c.
o pequeno livro O ponto da ternura (2013, lumme & artes vertentes) uma antologia de 40 poemas tirados de 4 livros da autora, foi majoritariamente traduzido por moacir amancio, mas também conta com versões realizadas por maria teresa mota, flavio britto, maria joão cantinho, luiz gustavo carvalho, lucar argel & a própria tal nitzán (sempre como parceira de algum lusófono). claro que não sou capaz de contrastar original & tradução, mas, como vocês podem conferir logo abaixo, elas têm impacto, a poesia de nitzán nos atinge em português. comento aqui os 4 poemas que selecionei para o post.
penso que a força da poesia de tal nitzán reside no estreitamento entre o espaço público & o privado, principalmente porque ela escreve no & para o contexto em que vive, com os constantes conflitos entre judeus & palestinos — & a desigualdade óbvia de forças entre esses dois povos. essa potência crítica está clara já em títulos de poemas como “khan yunis” (um subúrbio de gaza), ou no desenvolvimento de “tishrê” (trata-se do primeiro mês do calendário hebraico, quando se realiza o Iom haQipurim, dia do perdão).
em “História curta”, a espera pela redenção — expressa pela angústia que aperta traqueia e peito — se perde diante dos retornos infinitos do mal, numa espécie de ciclo de carmas representados pelo cotidiano de formigas, queimaduras & cortes de faca na cozinha (a banalidade do cotidiano, inversamente, atinge o cerne do mal). na última estrofe, com dois símiles, atinge o ponto: o lixo da construção num monte de detritos soa como a chuva; os gemidos soa como gemido; em resumo, o segundo símile não é símile de nada — o gemido não se compara a outra coisa que o alivie como imagem, mas nos fere diretamente. daí o desejo de uma desgraça para acabar com todas as desgraças, porque o ciclo da violência não terminará num declínio suave em nome do bem.
no entanto, em poemas como ”Graça”, a fusão entre vida pública & privada é ainda mais violenta: vemos o fracasso de um tu (o leitor, a poeta, o estado – não há clareza) em sanar a fome do pobre, as desgraças contínuas de uma vida de guerras (reparem como os imperativos negativos evocam os dez mandamentos agora pelo viés da impotência diante do mal), que assim só pode retornar ao lar — na estrofe de um só verso, ponto de virada do poema — em busca do afeto possível, representado na imagem de um gato amarelo, que é o dono da casa. esse retorno ao afeto possível, entretanto, não é mero fracasso, porque é talvez ali que se inicie um ponto de ternura que reverta a lógica do massacre.
é provável que essa esperança no amor/afeto, como máquina de reversão/compensação do mal histórico & cotidiano. é bem o que lemos em “Assim”, quando em contraposição à alegria de um gato ou de crianças (incapazes de saber “como a dor ataca”), surge a figura da poeta que permanece como fiel aluna de piano, “pela música, ou pela fragilidade”, alguém que assim preserva o amor em tempos de alienação & guerra: há um clima de persistência na derrota, como o de alguém que se apega a isso como a uma tábua de salvação (se lembramos de “Alguns gostam de poesia”, da polonesa wislawa szymborska): é preciso preservar o amor, mesmo morto.
não é à toa, portanto, que nitzán escreve poemas amorosos (ou que se permitem à leitura como poemas de amor) que revigoram nossa tradição. é o caso, por exemplo, de “Tesouro”. nos primeiros versos, temos uma série de ataques, em crescendo: no inverno, um habitante do jardim (do éden? um simples animal? um palestino?) tem sua pele arrancada, um do grupo “não verá o dia” para dar calor a outro ser; em seguida, numa cena primaveril, vemos molotovs incendiando casas assinaladas (aqui os sentidos são menos equívocos); por fim, surge a poeta buscando se aninhar no corpo amado, “como um menino se abriga no pé de morango”. é uma comparação inusitada: que abrigo um minúsculo pé de morango poderia oferecer, além de seu alimento? trata-se, então, de um abrigo frágil, ameaçado, de quem não quer “ver nuvens de veneno e de ocaso”. ao fim desse cenário de perdas, resta o casal que se deseja a sobrevivência pela pobreza já anunciada, sem pele, sem casas, sem abrigos: ser um tesouro oculto contra a mão deles, contra o saber deles. & quem são eles? não haverá resposta simples.
guilherme gontijo flores
ps: vocês encontram mais poemas de nitzán em português aqui & aqui.
ps 2: convém lembrar que a poeta também é ativista engajada pela paz entre israel & palestina & já organizou a antologia Com caneta de ferro: poesia de protesto israelense 1984 – 2004, reunindo textos contra a invasão de território palestino por israel. há uma entrevista em português sobre o assunto aqui.
ps 3: aqui uma lista de alguns dos autores já traduzidos por nitzán: borges, cortázar, garcía márquez, antonio machado, lorca, onetti, neruda, paz, pavese, pizarnik, vallejo, vargas llosa, &c.
* * *
História curta
Entre nós já não há quem se lembre
há quanto tempo esperamos
pela onda branca e cega que apagará o
que basta lembrar para que volte
e nos apertar o peito de manhã
e a traqueia à noite.
Porque o enxame de formigas repelido
volta a enegrecer a nossa casa, e a água fervente
das xícaras de porcelana atinge nossos rostos,
e facas, enjoadas da carne dos morangos,
agora procuram os dedos.
Quando se acalmarão os pedaços de papel que
circulam pelo ar, se aquietarão
no pó inúteis farrapos de sortilégio?
O que soava como chuva era lixo da construção
jogado num monte de detritos,
o que soava como um gemido era um gemido.
há tempos precisamos de uma nova desgraça
para acabar com o que sobrou da nossa desgraça.
(trad. moacir amancio)
§
Graça
O insulto da fome ao pobre tu não aplacarás
e o desvelo do vingador tu não aclamarás
e a casa a ser demolida tu não protegerás com teu corpo
e o carrinho da bebê impulsionado ao céus por um redemoinho
tu não apanharás nem baixarás suavemente
e o reino do mal tu não expulsarás.
volta-te então para sua casa
para aquele que te ama
para o único que é teu
para o apelo amarelo nos seus olhos estreitos
e enterra o teu rosto em seu pelo.
Uma carícia
para um gato
no mundo
(trad. luca argel & tal nitzán)
§
Tesouro
No inverno os guardas arrancaram o cobertor da
pele dos habitantes do jardim. Um deles não verá o dia.
Na primavera foram lançadas garrafas cegas
nas casas assinaladas, que se incendiaram.
À noite busquei refúgio em teu corpo
como um menino se abriga no pé de morango.
Ouvir somente a tua respiração
apoiar-me em ti da cabeça aos pés e por um instante
não ver nuvens de veneno e de ocaso
acumulando-se pesadas.
Que mais direi.
Que és na minha pobreza o tesouro oculto
que a mão deles não alcançará.
Que eu seja na tua pobreza o tesouro oculto
que o saber deles não alcançará.
(trad. moacir amancio)
§
Assim
O gato escapando em um perfeito arco
sobre a cerca, as crianças, rindo atrás do muro,
não saberão como a dor ataca
como uma voz que incessantemente lamentava,
e de repente é ouvida.
Que brava paciência
teve o frágil professor de piano, como,
quando os demais deixaram um por um,
olhar para baixo, eu permaneci a última
pela música, ou pela fragilidade,
as mãos ainda apertam o livro
quando os olhos se fecham,
assim deve-se preservar o amor
porque, como uma estrela, ele nos abriga nas noites
mesmo morto.
(trad. luiz gustavo carvalho & tal nitzán)
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