Ugarit foi uma cidade portuária do Oriente Próximo localizada nos arredores de onde hoje se situa Ras Shamra, no norte da Síria, perto do monte Hérmon e da ilha de Chipre. Ela foi destruída por volta do final da Era do Bronze e, num dos grandes achados arqueológicos do século XX (ainda mais impressionante pelo fato de ter ocorrido por completo acidente), só veio a ser redescoberta em 1928. Situada numa posição excelente para o comércio, num ponto de encontro entre quase todos os povos da região, Ugarit floresceu cultural e financeiramente, tornando-se um dos grandes centros cosmopolitas do mundo antigo.
A cidade tinha o seu próprio idioma, o ugarítico, uma língua semítica cananeia, parente do fenício, do aramaico e do hebraico. Diferente dessas línguas, porém, o ugarítico não utilizava um sistema de escrita derivado do fenício. O hebraico, por exemplo, utilizava um abjad (esse tipo de alfabeto comum no Oriente Próximo e Médio que, diferente dos alfabetos completos, não marca as vogais ou as marca só com diacríticos) descendente do fenício, o chamado alfabeto paleo-hebraico, até cerca do século V a.C., quando foi substituído por um alfabeto diferente derivado do aramaico – só os samaritanos, porém, que são um outro povo semítico que disputa com os judeus o título de herdeiros da tradição israelita e que hoje são uma minoria, mantiveram o paleo-hebraico. Já o ugarítico desenvolveu o seu próprio sistema de escrita com base no cuneiforme. O cuneiforme, como se sabe, é o sistema que utiliza uma cunha para traçar os caracteres numa tabuleta de argila e que, até onde se tem registro, foi inventado e utilizado pelos sumérios desde pelo menos por volta do terceiro milênio antes de Cristo. Nos diz a assirióloga Marie-Louise Thomsen, em seu The Sumerian Language: an Introduction, que a escrita do sumério se desenvolveu não como uma forma de representação da fala, mas como um auxílio mnemônico, o que é um motivo pelo qual as tabuletas sumérias mais antigas são de uma extrema dificuldade para serem decifradas (não por acaso, os textos que formam corpus que a autora usa para tratar da gramática da língua datam de entre 2600 e 900 a.C.). Com o tempo, a escrita foi se tornando mais complexa e passou a representar, mais ou menos, frases inteiras, o que se tornou muito importante para a sobrevivência da língua por escrito do período neossumério (2200 a 2000 a.C.) em diante, em que ela deixou de ser falada na mesopotâmia, mas continuou a ser utilizada em textos de natureza burocrática, literária e religiosa.
A unidade do cuneiforme sumério era um grafema chamado de logograma: AN, por exemplo, era o símbolo para “deus”, “acima” ou “céu”. Combinado com A (“água”… mas também “sêmen”), forma a palavra “chuva” (na imagem ao lado), A.AN, transliterada “šeĝ” (“sheg”, mas a pronúncia exata é desconhecida e incognoscível). É bem complicado e não convém agora entrar nos pormenores, que envolvem ainda questões de homofonia e variações e tudo o mais, mas é interessante apontar que esse sistema foi repassado aos acádios, um povo semita como os ugaríticos (diferente dos sumérios, que não eram semitas e cuja língua é considerada uma língua isolada), e sua cultura e língua se desenvolveram lado a lado com a suméria – diz-se dos dois que linguisticamente formam um Sprachbund, de modo que é difícil dizer quais palavras e construções (incluindo a ordem das palavras na frase) do sumério são originalmente sumérias e quais são empréstimos do acádio, e vice-versa. Uma narrativa como o Épico de Gilgamesh, tal como o reconhecemos hoje, parte de fontes acádias, mas a mitologia em torno da figura de Gilgameš, rei de Uruk, tem origem numa tradição anterior de tabuletas sumérias.
Acontece, porém, que, por conta de questões fonológicas, essa forma de escrita não era bem adequada ao acádio (e isso talvez tenha pesado na hora de manter o sumério como língua burocrática, mesmo após o acádio se tornar a língua oficial das sucessões de impérios babilônicos). Os escribas de Ugarit, então, resolveram o problema desenvolvendo o seu próximo alfabeto: a escrita do ugarítico é cuneiforme, visto que também se faz com uma cunha sobre uma tabuleta de argila, mas, diferente da do sumério e do acádio, ela consiste num abjad com uma letra para cada consoante (com algumas duplicadas, como ocorre também com o hebraico). Esse sistema também foi utilizado para escrever textos em acádio, tal como atestam alguns documentos escavados em Ugarit.
Ugarit tinha ainda sua própria religião e mitologia, e a sua descoberta serviu para iluminar algumas questões importantes para os estudos bíblicos. A religião ugarítica, ainda que tenha alguns deuses menores, se concentra basicamente sobre o casal principal de divindades, El, pai dos deuses, e sua esposa Asherah, a Rainha dos Céus. O casal tem três filhos, Hadad (também chamado Baal, “Senhor”), Yamm e Mot. Hadad, deus das tempestades, governa sobre os céus, Yamm, sobre os mares, e Mot, sobre o mundo dos mortos, numa relação que parece muito próxima da espelhada pelos deuses gregos Zeus, Posêidon e Hades, respectivamente (já Crono, pai de Zeus, não seria um bom equivalente para El, e o paralelo meio que termina aí). El, que é o nome próprio da divindade, mas também um termo genérico para “deus”, provavelmente deriva de Ilu, termo acádio para “deus” que traduz o An ou Anu sumério, e o nome, como se sabe, é usado com frequência na Bíblia para se referir a YHWH, o deus dos israelitas, presente tanto em construções como “El Shaddai” (“Deus Poderoso”) quanto em palavras como “Israel” (“o que lutou com Deus”). De fato, nas últimas décadas, diversos autores, como Raphael Patai e Frank Moore Cross, têm traçado paralelos entre El e YHWH, e é muito provável que os dois fossem adorados como a mesma divindade na região, com frequência junto de Asherah, que, se a hipótese de Patai estiver correta, acabou eliminada da Bíblia e dos cultos após o Primeiro Templo ser derrubado e a elite religiosa israelita fechar o cerco contra o politeísmo. Há cartas em aramaico da região, datando de pelo menos 500 a.C., em que os autores usam certas expressões equivalentes a um “deus te abençoe” que indicam o culto a YHWH lado a lado com outros deuses, como Ptah, Khnum e Asherah (mais sobre isso no livro Ancient Aramaic and Hebrew Letters, editado por James M. Lindenberger & Kent Harold Richards). Há outros resquícios de referências a deuses pagãos ainda no hebraico que podem ser encontrados inclusive no texto biblico: Shamash/Utu era o deus acádio/sumério do sol, e “shemesh” (שמש) é “sol” em hebraico. Mot (m.t.), o deus do submundo, lembra “mawet” (מות), nome utilizado para personificação da morte no texto bíblico, ao passo que “met” (מת), sem o vav no meio (o caractere hebraico para o som de “v”, que é uma mater lectionis e também funciona para marcar as vogais “o” e “u”), significa “morto”. E assim por diante.
Muitos textos oficiais (a principal função da escrita, em sua origem, era provavelmente burocrática) e alguns literários foram recuperados em Ugarit. Os mais longos de que se tem notícia foram analisados e traduzidos no volume Ugaritic Narrative Poetry, organizado por Simon B. Parker (tradutores: Mark S. Smith, Simon B. Parker, Edward L. Greenstein, Theodore J. Lewis e David Marcus), que são os épicos Kirta, Aqhat e Baal. O volume, de que me vali para fazer este post, também acompanha 10 outros poemas mais curtos, dos quais um eu selecionei para traduzir para o português a partir da tradução inglesa de Theodore J. Lewis.
“O festim divino de El” (tabuleta 19.CAT1.114) é um poema bastante curioso, porque, apesar da linguagem cujas fórmulas e epítetos remetem à épica e à poesia mais solene, retrata o venerável pai dos deuses numa situação, digamos, comprometedora (ainda mais se pensarmos na relação El-YHWH): El prepara um banquete (um churrasco, a bem dizer, cena comum da épica da região), se farta de carne (servida por Yarikh, deus da lua e aparentemente um bom churrasqueiro) e vinho e talvez sexo (ah, essas lacunas do texto), depois volta cambaleante para casa, escorado por divindades menores, desmaia e dorme sobre os próprios excrementos. Athtartu (Asherah) e Anat, uma deusa adolescente que aparece também no ciclo de Baal, então vão buscar uma cura para a sua ressaca, que envolve uma planta desconhecida chamada de pqq (lembrando que o ugarítico, como o hebraico, só marca as consoantes, então, ppq poderia ser paqaqa, paqaqe, paqeqe, etc, etc), que teria essas capacidades milagrosas. Infelizmente, apesar de termos ainda uma quantidade substancial de texto, a tabuleta está danificada e com lacunas, atiçando eternamente a nossa curiosidade sobre o que mais teria nesse poema, que já é por si só lacônico e parece deixar o melhor para a imaginação. Obviamente, eu o selecionei para postar aqui hoje não só por causa do clima generalizado de ressaca de fim de ano (apesar de que isso influenciou também, é claro), mas por este ser um desses raros poemas de escopo menor – se haveria uma tradição de poesia mítica cômica na região, desconhecemos – em que a representação dos deuses é muito próxima, desbragadamente próxima, do humano, e, por isso, dotada talvez de maior curiosidade e interesse imediato para nós do que as narrativas sobre grandes reis e suas linhagens.
Adriano Scandolara
O festim divino de El
El abate a caça em sua morada,
Mata as bestas em seu palácio,
Aponta aos deuses os cortes da carne
Os deuses comem e bebem
Bebem do vinho até que baste,
Da vindima até que fiquem bêbados.
Yarikh grelha o lombo como um [ ].
Agarra a sobrecoxa sob as mesas.
Para o deus que conhece,
Grelha um banquete para que se farte;
Para os deuses que desconhece,
Dá pauladas sob a mesa.
Ele se aproxima de Athtartu e Anat,
Athtartu lhe grelha um filé,
Anat assa uma costela.
O porteiro da morada de El o censura,
Que não grelhe filé para um cão,
Que não asse costela para um viralata.
Ele censura a El, seu pai, também.
El se senta…
El se assenta ao bacanal.
El bebe do vinho até que baste,
Da vindima até que fique bêbado.
El vai cambaleante até sua morada,
Tropeçando adentra seu pátio.
Thukamuna e Shunama o carregam,
Habayu então esbraveja com ele,
O dos dois chifres e um rabo.
Ele escorrega em seu esterco e urina,
El cai como um morto
El como os que descem à Terra.
Athtartu e Anat seguem para uma caçada
…
Athtartu e Anat…
E com elas trouxeram…
Como se sara quando se rejuvenesce.
Sobre seu cenho se deve pousar:
– pelos de cão
– a copa da planta pqq e sua haste
Misturar com o sumo de azeite virgem.
El’s divine feast
El slaughers game in his house,
Butchers beasts in his palace,
Bids gods to the cuts of beef.
The gods eat and drink,
Drink wine till sated,
Vintage till inebriated.
Yarikh grills the haunch like a [ ].
Grabs the hind-quarter beneath the tables.
As for the god whom he knows,
He grills fare for him to feast;
As for the god he does not know,
He strikes with sticks beneath the table.
He nears Athtartu and Anat,
Athtartu grills a steak for him,
Anat roasts a rack of ribs.
The porter of El’s house chides them,
Not to grill a steak for a dog,
Not to roast a rib for a cur.
He chides El, his father, too.
El sits…
El settles into his bacchanal.
El drinks wine till sated,
Vintage till inebriated.
El staggers into his house,
Stumbles in to his court.
Thukamuna and Shumana carry him.
Habayu then berates him,
He of two horns and a tail.
He slips into his dung and urine,
El collapses like one dead
El like those who descend to Earth.
Athtartu and Anat march off to hunt
…
Athtartu and Anat…
And with them they brought back…
As when one heals to return to youth.
On his brow one should put:
– hairs of a dog
– the top of a pqq-plant and its stem
Mix it with the juice of virgin oil.
(poema ugarítico anônimo, tradução de Adriano Scandolara sobre a tradução inglesa de Theodore J. Lewis)