herberto helder morreu & não sentiremos sua falta, não faremos elogios, não soaremos solenes em necrológios. poeta que foi de vida & morte, de peso das ausências, de canto & rasgo, por certo, morto, não faz falta; falta foi, felizmente, o que nos deu enquanto vivo, falta firme & incômoda & incontornável cristalizada em linguagem. nada de canção do eterno, nada de imortalidades: a vida crua, nua, a carne, tudo que finda.
por ele vão dois trechos arrancados ao léu de ofício cantante, onde teimou de abrir.: 1. pp. 267-8, parte de “os brancos arquipélagos”‘2. pp. 196-8 “a menstruação quando na cidade passava”. o que fica do que falta.
escamandro
ps: foi também um tradutor enorme, não se esqueçam.
* * *
massas implacáveis, tensas florações químicas, fortemente
maduras, na alvorada que aparece
atrás, mortas, e no lençol de gelo
manchas bloqueadas, cortes, negras estrias,
o som, sangue, tubos de sangue, sangue
tubular, som tubular, gemem,
rudimentares, assoberbados,
os pulmões, folhagem quente,
perfura o som no ar a traquéia eruptiva,
respiração, cacho a arder nas redes finas,
jorro de lâminas,
e a morosa manhã renascente, compreendida,
rarefeita
de folhas, tumulto branco,
cancro, precipitação em brasa,
uma abertura interior latente,
barcos levam todo o álcool
lívido
sobre águas fotografadas explodindo,
a lentidão consome a carne, formigas incrustadas,
uma gota de veneno na cabeça
transparente, antenas de ouro, o doce povoamento
carnívoro, bruscamente o sono
exalta
as apuradas linhas do esquecimento, ao fundo,
batem, pulsam paisagens de uma canção
irregular, clara, onde
se treme, levemente alto, crivado
de imagens implacáveis, os pés tocando a folhagem
negra, a cabeça degolada por um esplendor obsessivo
§
A menstruação quando na cidade passava
A menstruação quando na cidade passava
o ar. As raparigas respirando,
comendo figos -e a menstruação quando na cidade
corria o tempo pelo ar.
Eram cravos na neve. As raparigas
riam, gritavam -e as figueiras soprando de dentro
os figos, com seus pulmões de esponja
branca. E as raparigas
comiam cravos pelo ar.
E elas riam na neve e gritavam: era
o tempo da menstruação.
As maçãs resvalavam na casa.
Alguém falava: neve. A noite vinha
partir a cabeça das estátuas, e as maçãs
resvalavam no telhado -alguém
falava: sangue.
Na casa, elas riam -e a menstruação
corria pelas cavernas brancas das esponjas,
e partiam-se as cabeças das estátuas.
Cravos -era alguém que falava assim.
E as raparigas respirando, comendo
figos na neve.
Alguém falava: maçãs. E era o tempo.
O sangue escorria dos pescoços de granito,
a criança abatia a boca negra
sobre a neve nos figos -e elas gritavam
na sombra da casa.
Alguém falava: sangue, tempo.
As figueiras sopravam no ar que
corria, as máquinas amavam. E um peixe
percorrendo, como uma antiga palavra
sensível, a página desse amor.
E alguém falava: é a neve.
As raparigas riam dentro da menstruação,
comendo neve. As cabeças das
estátuas estavam cheias de cravos,
e as crianças abatiam a boca negra sobre
os gritos. A noite vinha pelo ar,
na sombra resvalavam as maçãs.
E era o tempo.
E elas riam no ar, comendo
a noite,
alimentando-se de figos e de neve.
E alguém falava: crianças.
E a menstruação escorria em silêncio
-na noite, na neve-
espremida das esponjas brancas, lá na noite
das raparigas
que riam na sombra da casa, resvalando,
comendo cravos. E alguém falava:
é um peixe percorrendo a página de um amor
antigo. E as raparigas
gritavam.
As vacas então espreitando,
e nos focinhos consumia-se o lume em silêncio.
Pelas janelas os violinos
passavam pelo ar. E a menstruação nas raparigas
escorria pela sombra, e elas
gritavam e comiam areia. Alguém falava:
fogo. E as vacas passavam pelos violinos.
E as janelas em silêncio escorriam
o seu fogo. E as admiráveis
raparigas cantavam a sua canção, como
uma palavra antiga escorrendo
numa página pela neve,
coroada de figos. E no fogo as crianças
eram tocadas pelo tempo da menstruação.
Alimentavam-se apenas de figos e de areia.
E pelo tempo fora,
riam -e a neve cobria a sua página de tempo,
e as vacas resvalavam na sombra.
Em silêncio o seu lume escorria das esponjas.
Partiam-se as cabeças dos violinos.
As raparigas, cantando as suas crianças,
comiam figos.
A noite comia areia.
E eram cravos nas cavernas brancas.
Menstruação -falava alguém. O ar passava
-e pela noite, em silêncio,
a menstruação escorria pela neve.
Herberto, a mim, nunca me morrerá, com ele comi poesia, senti-a no sexo, fiz dela corpo e grito.
Muito, mas muito bom mesmo! Magnifico e eu nao o conhecia!