O erótico, a sexualidade e o amor na escrita de Cheryl Clarke, por Thamires Zabotto

(Thamires Zabotto é tradutora e já deu as caras aqui no escamandro anteriormente, com sua tradução e comentário dos poemas de influência iorubá de Audre Lorde (clique aqui))

Chery-Clarke

Cheryl Clarke (1947 –) é poeta, educadora, teórica, ativista feminista negra e lésbica. Estudou na Universidade Howard e fez mestrado e doutorado em Inglês na Universidade Rutgers, onde lecionou desde 1970. Participou do Departamento de Mulheres e Estudos de Gênero; foi diretora-fundadora do Instituto de Educação, Justiça Social e Comunidades LGBT em 2004 e reitora dos estudantes do campus Livingston da Universidade Rutgers de 2009 a 2013, onde se aposentou, após 41 anos de trabalho.

É autora de vários livros de poesia, entre eles Narratives: Poems in Tradition of Black Women (1981), Living as a Lesbian (1986), Humid Pitch (1989) e Experimental Love (1993), e Corridors of Nostalgia: the poems of Cheryl Clarke (2007); do texto crítico After Mecca – Women Poets and the Black Arts Movement (2006) – o primeiro estudo sobre poesia feminina negra e seu movimento artístico, que tornou as contribuições de mulheres negras à poesia mais visível num campo que, tradicionalmente, reconhece mais homens negros – e Days of Good Looks: Prose and Poetry, 1980 – 2005 (2006), uma coleção que reúne 25 anos de seus escritos já publicados.

Clarke também escreveu para o extinto Conditions, famoso coletivo editorial lésbico que publicou muitas antologias e revistas, entre elas Home Girls, The Callaloo Journal e Black Scholar.

O erótico, a sexualidade e o amor

Em seu artigo “New Notes on Lesbianism”, Clarke diz:

Eu me nomeei “lésbica” porque esta cultura as oprime, silencia e destrói mesmo lésbicas que não se chamam de “lésbicas”. Eu me nomeei “lésbica” porque quero me tornar visível para outras lésbicas negras. Eu me nomeei “lésbica” porque não concordo com a heterossexualidade predatória e institucionalizada. Eu me nomeei lésbica porque quero estar com outras mulheres (e elas nem precisam se nomear “lésbicas”). Eu me nomeei “lésbica” porque é parte da minha visão. Eu me nomeei lésbica porque me identificar como mulher me manteve sã. Eu me chamo de “Negra” também, porque o negro é o meu ponto de vista, minha estética, minha política, minha visão, minha sanidade. (CLARKE, 2006b, p. 81, tradução minha)

Adrienne Rich (1993) diz que todo poema quebra um silêncio que precisa ser superado. Liz Yorke (1994) diz que a sexualidade lésbica é um dos silêncios mais ensurdecedores da história e, mesmo agora, quando é falada em alto e bom tom e celebrada, simplesmente não é ouvida. Yorke também acredita que o corpo sexual lésbico, a relação sensual-emocional, a geografia material do prazer feminino em termos positivos se torna uma estratégia política – a poetisa luta por gerar um modo celebratório de escrita no qual essa significação empoderadora possa ser encontrada.

Podemos ver tudo isso na poesia de Cheryl Clarke. Para ela, o “sexo lésbico é, em si mesmo, poesia” (2006b, p. 142). Como a energia do erótico faz parte de sua vida cotidiana, Clarke diz que a fonte do erótico em sua vida está no lesbianismo; que, desde muito nova, decidiu estar em companhia de mulheres, e então começaram seus sonhos de ser amante de mulheres, e esses sonhos se tornaram poesia. Ela também assume uma poética política: “[…] politicamente, minha poesia tem que ser por um suporte para a poesia sexual do lesbianismo” (2006a, p. 232)

Seus poemas de amor seguem refutando a ideia de que poemas devem ser delicados, bonitos, que poesia é uma forma de arte reservada para cânticos de louvor. Não são só poemas voltados para o amor: sua poesia é provocadora, não pede permissão para se fazer ouvir e seus poemas não se importam em incomodar. Na verdade, poucos escritores têm abordado questões polêmicas sobre raça e sexualidade com tanta força e/ou humor como Clarke.

Uma das influências mais fortes em seu trabalho – tanto poético quanto acadêmico – foi  Audre Lorde, escritora, poeta e ativista norte-americana. O poema “intimacy no luxury” (“intimidade não é luxo”), de Clarke, por exemplo, baseia-se diretamente em “Poetry is Not a Luxury” (ensaio publicado em Sister Outsider: essays and speeches), onde Lorde procura definir a poesia como algo vital e necessário para a atividade de lazer humana – especialmente para as mulheres – em vez de condição. Para Lorde, a poesia é a essência da feminilidade e, sem os sentimentos do que é poesia, não seria fácil expressar como ela é uma conexão com a sociedade antiga. Lorde vê essa conexão como uma espécie de antídoto para os males da vida moderna e também como um passo na formação de ideias, e não a expressão de uma ideia já formada. Clarke usa da disposição de Lorde sobre essa conexão com a sociedade antiga e antídoto para os males da vida moderna quando diz, em “intimacy is no luxury”, que tribadismo – referência explícita ao sexo entre mulheres – é uma panaceia ancestral: na mitologia grega, Panacea (Πανάκεια) era a deusa do remédio universal.

Clarke faz questão de fundir o político e o pessoal com uma ampla visão histórica e da cultura contemporânea. Reflexões históricas e biográficas sobre o Movimento dos Direitos Civis e o Movimento de Libertação Negra estão impregnados em sua poesia como uma complexa teia-de-aranha e tais complexidades são, por vezes, escritas em poucas linhas, encapsulando os humores e as lutas políticas de uma época inteira, como, por exemplo, em “an exile i have loved” (“uma exilada que amei”). O intertexto da cultura negra americana está presente em todos os lugares em sua obra. No geral, a produção poética de Clarke é rica e diversificada, militante, disciplinada e apaixonada.

Abaixo traduzidos estão quatro poemas com que mesclam os temas erótico, sexualidade e amor que foram retirados, respectivamente, de seus livros Living as a Lesbian (1986) e Days of Good Looks: Prose and Poetry, 1980 – 2005 (2006).

an exile I have loved

an exile I have loved tells me she’s going home.
Smug I say:
      ‘Back to the city?’
      ‘No. First to Zambia. Then Zimbabwe.
       Finally Transvaal. Home,’ she answers sad.
We sleep and wake to voices of men in the hallway
asking through doors of faces that are changed
and names that have not been spoken since.
I hold her to me
and remember the gold in my ears
ask for a way to stay in touch with her
tell her she’s got a home as long as I got mine.
Hold her to me until she must push away
and slip from the room.

 

uma exilada que amei

uma exilada que amei me diz que está voltando para casa.
Arrogante, perguntei:
      “De volta à cidade?”
      “Não. Primeiro para Zâmbia. Depois Zimbábue.
      Por fim Transvaal. Casa”, ela respondeu, triste.
Nós dormimos e acordamos com vozes de homens no corredor
perguntando, de porta em porta, sobre rostos que foram mudados
e nomes que não foram ditos desde então.
Eu a abracei
e lembrei dos brincos de ouro em minhas orelhas
perguntei uma maneira de manter contato
disse-lhe que ela tem um lar, desde que eu tenha o meu.
Segurá-la perto de mim até que ela me largue
e saia do quarto.

 

intimacy no luxury

Intimacy no luxury here.
Telephones cannot be left off the hook
or lines too long engaged
or conversations censored any longer.
No time to stare at our hands
afraid to extend them
or once held
afraid to let go.
We are here.
After years of separation
women take their time
dispose of old animosities.
Tribadism is an ancient panacea and cost efficient
an ancient panacea and cost efficient.

 

intimidade não é luxo

Intimidade não é luxo aqui.
Telefones não podem ser tirados do gancho
ou linhas muito tempo ocupadas
ou conversas censuradas.
Sem tempo para contemplar nossas mãos
com medo de estendê-las
ou, depois de dá-las
temendo soltar.
Estamos aqui.
Após anos de separação
mulheres aproveitam seu tempo,
dispensam velhas animosidades.
Tribadismo é uma panaceia ancestral e vale a pena
uma panaceia ancestral e vale a pena.

 

nothing

nothing I wouldn’t do for the woman I sleep with
when nobody satisfy me the way she do.
kiss her in public places
win the lottery
take her in the ass
in a train lavatory
sleep three in a single bed
have a baby
to keep her wanting me.
wear leather underwear
remember my dreams
make plans and schemes
go down on her in front of her
other lover
give my jewelry away
to keep her wanting me.
sell my car
tie her to the bed post and
spank her
lie to my mother
let her watch me fuck my other lover
miss my only sister’s wedding
to keep her wanting me.
buy her cocaine
show her the pleasure in danger
bargain
let her dress me in colorful costumes
of low cleavage and slit to the crotch
giving easy access
to keep her wanting me.
Nothing I wouldn’t do for the woman I sleep with when nobody satisfy me the way she do.

 

não há nada

não há nada que eu não faria pela mulher com quem durmo
quando ninguém me satisfaz como ela.
beijá-la em lugares públicos
ganhar na loteria
comer-lhe o cu
no banheiro do trem
dormir três pessoas numa cama de solteiro
ter um filho
para que ela continue me querendo
usar calcinha de couro
lembrar dos meus sonhos
fazer planos e esquemas
chupá-la na frente da sua
outra amante
dar minhas joias embora
para que ela continue me querendo
vender meu carro
amarrá-la ao pé da cama e
espancá-la
mentir para minha mãe
deixá-la ver eu comer minha outra amante
perder o casamento da minha única irmã
para que ela continue me querendo
comprar-lhe cocaína
mostrar-lhe o prazer no perigo
barganhar
deixá-la me vestir com roupas coloridas
com decotes e fendas até a virilha
dar-lhe faço acesso
para que ela continue me querendo.

Não há nada que eu não faria pela mulher com quem durmo quando ninguém me satisfaz como ela.

 

Sexual preference

I’m a queer lesbian.
Please don’t go down on me yet.
I do not prefer cunnilingus.
(There’s room for me in the movement.)
Your tongue does not have to prove its prowess
there
to me
now
or even on the first night.
Your mouth all over my body
then there.

 

Preferência sexual

Sou uma lésbica queer.
Por favor, não me chupe ainda.
Eu não prefiro cunnilingus.
(Há lugar para mim no movimento).
Sua língua não tem de provar o seu talento

pra mim
agora
ou até mesmo na primeira noite.
Sua língua por todo meu corpo
depois lá.

 

Bibliografia
CLARKE, Cheryl. an exile I have loved. In: Living as a Lesbian: Poetry. Ithaca, NY: Firebrand Books, 1986.
______. The everyday life of black lesbian sexuality. In: The days of good looks: the prose and poetry of Cheryl Clarke, 1980 to 2005. Nova York: Da Capo Press, 2006a. p. 225-236.
______. Saying the least said, telling the least told: the voices of black lesbian writers. In:  The days of good looks: the prose and poetry of Cheryl Clarke, 1980 to 2005. Nova York: Da Capo Press, 2006b. p. 133-144.
______. Experimental Love: Poems. Ithaca, NY: Firebrand Books, 1993.
______. Humid Pitch: Narrative Poetry by Cheryl Clarke. Ithaca, NY: Firebrand Books, 1989.
______. New Notes on Lesbianism. The days of good looks: the prose and poetry of Cheryl Clarke, 1980 to 2005. Nova York: Da Capo Press, 2006b.
______. The Days of Good Looks: Prose and Poetry, 1980-2005. Nova York: Carroll and Graf, 2006.
______. nothing. In: The days of good looks: the prose and poetry of Cheryl Clarke, 1980 to 2005. Nova York: Da Capo Press, 2006b.
______. Sexual Preference. In: The days of good looks: the prose and poetry of Cheryl Clarke, 1980 to 2005. Nova York: Da Capo Press, 2006b.
RICH, Adrienne. Someone is Writing a Poem. In: What Is Found There: Notebooks on Poetry and Politics.  W. W. Norton & Company; Expanded Edition. 2003.
SANTOS, Tatiana Nascimento dos. BOTELHO, Denise. Sinais de luta, sinais de triunfo: traduzindo a poesia negra lésbica de Cheryl Clarke. Revista Língua & Literatura. Rio Grande do Sul. v. 15, n. 24 (2013): MINORIAS, MARGENS, MOBILIDADES. INSSne ISSN 1984-381X.
YORKE, Liz. Primary intensities: lesbian poetry and the reading off difference. In: GIBBS, Liz. Daring to dissent: lesbian culture from margin to mainstream. Nova York: Cassel, 1994.

(poemas de Cheryl Clarke, tradução e comentário de Thamires Zabotto)

2 comentários sobre “O erótico, a sexualidade e o amor na escrita de Cheryl Clarke, por Thamires Zabotto

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