Sîn-lēqi-unnini, Ele o abismo viu, série de Gilgámesh, tabuinha 6 – Tradução de Jacyntho Lins Brandão

gilgamesh-tabuinha

 

A sexta tabuinha da versão clássica do poema de Gilgámesh (cerca de 1200 a. C.) traz um episódio completo: após vencer e eliminar Húmbaba, o guardião da floresta de cedros, Gilgámesh reveste-se com sua glória e desperta o desejo da deusa Ishtar, que o assedia; a resposta do herói é incisiva, desrespeitosa e irônica ao ponto de ser cômica; ofendida, a deusa solicita que seus pais lhe deem o Touro-do-Céu, com o qual devasta a terra em vingança; Gilgámesh e o sempre fiel amigo Enkídu matam o touro e festejam mais este trabalho heroico. A tabuinha se fecha com referência ao sonho com maus presságios de Enkídu, o qual introduz a narrativa de sua morte, assunto da tabuinha seguinte.

A tradução abaixo segue a edição crítica de A. R. George, The Babylonian Gilgamesh Epic: introduction, critical edition and cuneiform texts, Oxford: Clarendon Press, 2003.

O texto está relativamente bem conservado, embora haja passagens irremediavelmente corrompidas (as lacunas são assinaladas com ….). Os títulos das partes não pertencem ao original, apenas pretendem, nesta tradução, servir de auxílio à compreensão do leitor.

A glória de Gilgámesh

[1] Lavou-se da sujeira, limpou as armas,
Sacudiu os cachos sobre as costas,
[3] Tirou a roupa imunda, pôs outra limpa,
Com uma túnica revestiu-se, cingiu a faixa:
Gilgámesh com sua coroa se cobriu.

A paixão de Ishtar

[6] À beleza de Gilgámesh ergueu os olhos a rainha Ishtar:
Vem, Gilgámesh, meu marido sejas tu!
[8] Teu fruto dá a mim, dá-me!
Sejas tu o esposo, tua consorte seja eu!

[10] Farei atrelar-te carro de lápis-lazúli e ouro,
As suas rodas de ouro, de âmbar os seus chifres:
[12] Terás atrelados leões, grandes mulas!
Em nossa casa perfumada de cedro entra!

[14] Em nossa casa quando entres,
O umbral e o requinte beijem teus pés!
[16] Ajoelhem-se sob ti reis, potentados e nobres,
O melhor da montanha e do vale te seja dado em tributo!

[18] Tuas cabras a triplos, tuas ovelhas a gêmeos deem cria,
Teu potro com carga à mula ultrapasse,
[20] Teu cavalo no carro majestoso corra,
Teu boi sob o jugo não tenha rival!

A recusa de Gilgámesh

[22] Gilgámesh abriu a boca para falar,
Disse à rainha Ishtar:
[24] Se eu contigo casar,
…. o corpo e a roupa?

[26] …. o alimento e o sustento?
Far-me-ás comer comida própria de deuses?
[28] Cerveja dar-me-ás própria de reis?
….

[30] …. empilhe
…. vestuário
[32] Quem …. contigo casará?
Tu …. que petrificas o gelo,

[34] Porta pela metade que o vento não detém,
Palácio que esmaga …. dos guerreiros,
[36] Elefante …. sua cobertura,
Betume que emporca quem o carrega,

[38] Odre que vaza em quem o carrega,
Bloco de cal que …. o muro de pedra,
[40] Aríete que destrói o muro da terra inimiga,
Calçado que morde os pés de seu dono.

[42] Qual esposo teu resistiu para sempre?
Qual valente teu aos céus subiu?
[44] Vem, deixa-me contar teus amantes:
Aquele da festa …. seu braço;

[46] A Dúmuzi, o esposo de ti moça,
Ano a ano chorar sem termo deste;
[48] Ao colorido rolieiro amaste,
Nele bateste e lhe quebraste a asa:
Agora fica na floresta a piar: asaminha!;

[51] Amaste o leão, cheio de força:
Cavaste-lhe sete mais sete covas;
[53] Amaste o cavalo, leal na batalha:
Chicote com esporas e açoite lhe deste,

[55] Sete léguas correr lhe deste,
Sujar a água e bebê-la lhe deste,
[57] E a sua mãe Silíli chorar lhe deste;
Amaste o pastor, o vaqueiro, o capataz,

[59] Que sempre brasas para ti amontoava,
Todo dia te matava cabritinhas:
[61] Nele bateste e em lobo o mudaste,
Expulsam-no seus próprios ajudantes
E seus cães a coxa lhe mordem;

[64] Amaste Ishullánu, jardineiro de teu pai,
Que sempre cesto de tâmaras te trazia,
[66] Todo dia tua mesa abrilhantava:
Nele os olhos puseste e a ele foste:

[68] Ishullánu meu, tua força testemos,
Tua mão levanta e abre nossa vulva!
[70] Ishullánu te disse:
Eu? Que queres de mim?

[72] Minha mãe não assou? Eu não comi?
Sou alguém que come pão de afronta e maldição,
[74] Alguém de quem no inverno a relva é o abrigo? –
Ouviste o que ele te disse,

[76] Nele bateste e em sapo o mudaste,
Puseste-o no meio do jardim,
[78] Não pode subir a …., não pode mover-se a …. .
E queres amar-me e como a eles mudar-me!

A fúria de Ishtar

[80] Ishtar isso quando ouviu,
Ishtar furiosa aos céus subiu,
[82] Foi Ishtar à face de Ánu, seu pai, chorava,
À face de Ántum, sua mãe, corriam-lhe as lágrimas:

[84] Pai, Gilgámesh me tem insultado,
Gilgámesh tem contado minhas afrontas,
[86] Minhas afrontas e maldições.
Ánu abriu a boca para falar,

[88] Disse à rainha Ishtar:
O quê? Não foste tu que provocaste o rei Gilgámesh,
[90] E Gilgámesh contou tuas afrontas,
Tuas afrontas e maldições?

[92] Ishtar abriu a boca para falar,
Disse a Ánu, seu pai:
[94] Pai, o Touro-do-Céu dá-me,
A Gilgámesh matarei em sua sede!

[96] Se o Touro não me dás,
Golpearei o submundo agora, sua sede,
[98] Mandarei aplainá-lo até o chão
E subirei os mortos para comer os vivos:
Aos vivos superarão os mortos!

[101] Ánu abriu a boca para falar,
Disse à rainha Ishtar:
[103] Se o Touro me pedes,
As viúvas de Úruk sete anos feno ajuntem,
Os lavradores de Úruk façam crescer o pasto.

[106] Ishtar abriu a boca para falar,
Disse a Ánu, seu pai:
[108] …. já guardado,
…. já cultivado,

[110] As viúvas de Úruk sete anos feno juntaram,
Os lavradores de Úruk fizeram crescer o pasto.
[112] Com a ira do Touro eu vou …. .
Ouviu Ánu ao dito por Ishtar,
E a corda do Touro em suas mãos pôs.

O Touro-do-Céu

[115] …. e conduzia-o Ishtar.
À terra de Úruk quando ele chegou,
[117] Secou árvores, charcos e caniços,
Desceu ao rio, sete côvados o rio baixou.

[119] Ao bufar o Touro a terra fendeu-se,
Uma centena de moços de Úruk caíram-lhe no coração;
[121] Ao segundo bufar a terra fendeu-se,
Duas centenas de moços de Úruk;

[123] Ao terceiro bufar a terra fendeu-se,
Enkídu caiu-lhe dentro até a cintura:
[125] E saltou Enkídu, ao Touro agarrou pelos chifres,
O Touro, em sua face, cuspiu baba,
Com a espessura de sua cauda …. .

[128] Enkídu abriu a boca para falar,
Disse a Gilgámesh:
[130] Amigo meu, ufanávamos …. em nossa cidade.
Como responderemos a toda essa gente?

[132] Amigo meu, testei o poder do Touro
E sua força, aprendi sua missão ….
[134] Voltarei a testar o poder do Touro,
Eu atrás do Touro ….

[136] Agarrá-lo-ei pela espessura da cauda,
Porei meu pé atrás de seu jarrete,
[138] Em …. seu,
E tu, como açougueiro valente e hábil,

[140] Entre o dorso dos chifres e o lugar do abate teu punhal enfia!
Voltou Enkídu para trás do Touro,
[142] Agarrou-o pela espessura da cauda,
Pôs o pé atrás de seu jarrete,

[144] Em …. seu,
E Gilgámesh, como açougueiro valente e hábil,
[146] Entre o dorso dos chifres e o lugar do abate seu punhal enfiou!
Após o Touro matarem,

[148] Seu coração arrancaram e em face de Shámash puseram,
Retrocederam e em face de Shámash puseram-se:
[150] Assentaram-se ambos juntos.
Chegou Ishtar sobre o muro de Uruk, o redil,

[152] Dançou em luto, proferiu um lamento:
Este é Gilgámesh, que me insultou, o Touro matou!
[154] E ouviu Enkídu o que disse Ishtar,
Rasgou a anca do Touro e em face dela a pôs:

[156] E a ti, se pudera, como a ele faria:
Suas tripas prendesse eu em teus braços!
[158] Reuniu Ishtar as hierodulas, prostitutas e meretrizes,
Sobre a anca do Touro em luto a carpir.

A celebração da vitória

[160] Chamou Gilgámesh os artesãos, os operários todos,
A espessura dos cornos observaram os filhos dos artesãos:
[162] Trinta minas de lápis-lazúli de cada um o peso,
Duas minas de cada um a borda,

[164] Seis medidas de óleo a capacidade de cada;
À unção de seu deus, Lugalbanda, os dedicou,
[166] Levou-os e pendurou em sua câmara real.
No Eufrates lavaram suas mãos,

[168] E abraçaram-se para partir.
Pela rua de Úruk cavalgavam,
[170] Reunido estava o povo de Úruk para os ver.
Gilgámesh às servas de sua casa estas palavras disse:

[172] Quem o melhor dentre os moços?
Quem ilustre dentre os varões?
[174] Gilgámesh o melhor dentre os moços,
Gilgámesh ilustre dentre os varões!

[176] …. a quem conhecemos em nossa fúria,
…. na rua quem o insulte não há,
[178] …. caminho que …. seu.
Gilgámesh em seu palácio fez uma festa:

[180] Deitados estão os moços, que nos leitos à noite dormem,
Deitado está Enkídu, um sonho vê;
[182] Levanta-se Enkídu para o sonho resolver.
Diz ao amigo seu:

[7, 1] Amigo meu, por que discutiam em conselho os grandes deuses?

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