Um descordo de Nuno Eanes Cêrzeo (séc. XIII)

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Pretendo fazer alguns poucos posts sobre poetas galego-portugueses importantes, porém menos lembrados. Claro que são muito bem conhecidos dos medievalistas & que costumam figurar na maior parte das antologias; é certo que não estou fazendo um trabalho filológico. É apenas que não costumam passear fora da área especialista, portanto, acabam ficando sem a devida atenção poética – por parte dos poetas & interessados em poesia contemporânea – que bem merecem no presente, tal como já costumam receber Dom Dinis, Dom Afonso X, Martim Codax & outros poucos.  O primeiro deles é Nuno Eanes Cêrzeo, autor de um descordo & de 10 cantigas de amor que nos chegaram.

“Trovador muito provavelmente galego, membro de uma linhagem sediada em Cêrcio, a norte de Lalín (Pontevedra). Foi Resende de Oliveira quem primeiro referiu documentação, datada de 1272 a 1282, relativa a dois membros da família, Pero Anes e Urraca Anes de Cêrceo, muito provavelmente irmãos do trovador. Na sequência desta hipótese, Souto Cabo localizou, na documentação da catedral de Ourense, uma procuração da mesma Urraca Anes, datada de 1268, onde refere o seu irmão Nuno Anes, no caso, como sendo já falecido nesta data. No documento são ainda referidos dois filhos do trovador, já adultos, Afonso e Gonçalvo Nunez. O mesmo investigador sugere ainda que poderia ser o trovador o Nuno Anes beneficiado nos Repartimentos de Sevilha (1253) e de Jerez de la Frontera (1264). Seja como for, destes dados se conclui que Nuno Anes Cêrzeo deverá ter vivido em inícios e meados do século XIII, falecendo pouco antes de 1268.” [texto tirado do site Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, onde o leitor mais interessado pode se deleitar].

Mais importante que isso tudo é a cantiga Agora me quer’ eu ja espedir, caso único de descordo na poesia galego-portuguesa: o descordo (tradução do provençal descort) é uma composição que não obedece uma regra de isometria, ou seja, que apresenta estrofes variadas & com versos sem regularidade típica da metrificação. certamente o descordo – neste caso, infelizmente, chegou-nos apenas o texto – indica uma peculiaridade da cantiga, seja por apresentar versos diferentes sob a mesma melodia (algo muito similar à poética da canção moderna), seja por apresentar uma variedade melódica, como parece ter sido o caso do gênero na cansó provençal. Aqui, o contraste entre desejo de partir (causado pelo sofrimento) & medo da saudade não se resolve plenamente; mas oferece ao poeta uma chance de fundir o tema da cantiga de amor e do sirventês moral (o sirventês é poesia de crítica, por vezes se aproxima até da sátira). Assim, o desacordo da forma espelha o desacordo interno do eu-lírico, que busca abandonar sua terra & as pessoas dali, embora ao mesmo tempo projete a saudade que virá de tal abandono: se ele termina, é com o canto, no último verso, quando afirma “e meu descord’ acabarei”, indicando a ambiguidade de que juntos terminam cantiga & desacordo interno.

Se considerarmos a sério as implicações de uma poética oral da vocalidade (como pensa Paul Zumthor em Introdução à poesia oral & em A letra e a voz), podemos imaginar a variação melódica nas 4 partes diversas (estrofes 1-4, depois estrofes 5-6 & ainda estrofes 7-8, por fim uma coda), como expressão vocal do desacordo; podemos ainda imaginar a coda como conclusão poética, musical e sentimental do poema, que acaba autoreferencialmente com o verbo “acabarei” & com a assinatura do gênero a que se filia, “descord'”.

guilherme gontijo flores

 * * *

 

Agora me quer’eu já espedir

Agora me quer’eu já espedir
da terra e das gentes que i som,
u mi Deus tanto de pesar mostrou,
e esforçar mui bem meu coraçom
e ar pensar de m’ir alhur guarir;
e a Deus gradesco porque m’en vou.

Ca a meu grad’, u m’eu daqui partir,
com seus desejos nom me veeram
chorar, nem ir triste por bem que eu
nunca presesse; nem me poderám
dizer que eu torto faç’em fogir
daqui, u me Deus tanto pesar deu.

Pero das terras haverei soidade,
de que m’or’hei a partir despagado,
e sempr’i tornará o meu cuidado
por quanto bem vi eu en’elas já;
ca já por al nunca me veerá
nulh’home ir triste nem desconortado.

E bem dig’a Deus, pois m’en vou, verdade:
se eu das gentes algum sabor havia,
ou das terras em que eu guarecia,
por aquest’era tod’e nom por al;
mais ora já nunca me será mal
de me partir delas e m’ir mia via.

Ca sei de mi
quanto sofri
e encobri
en’esta terra de pesar.
Como perdi
e despendi,
vivend’aqui,
meus dias, posso-m’en queixar.

E cuidarei
e pensarei
quant’aguardei
o bem que nunca pud’achar.
E forçar-m’-ei
e prenderei,
como guarrei,
conselh’agor’, a meu cuidar.

Pesar
d’achar
logar
provar
quer’eu veer se poderei;
o sem
d’alguém
ou rem
de bem
me valha, se o em mi hei.

Valer,
poder
saber
dizer,
bem me possa, que eu d’ir hei;
d’haver
poder
prazer
prender
poss’eu, pois esto cobrarei.

Assi querrei
buscar
viver
outra vida, que provarei,
e meu descord’acabarei.

(Nuno  Eanes Cêrzeo)

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