Distúrbios do sono, de Vinicius Ferreira Barth

capa

VINICIUS F. BARTH nasceu em Curitiba em 1986. Mestre em Literatura pela UFPR, traduziu a poesia de Homero, García Lorca, Konstantínos Kaváfis, Alejandra Pizarnik e outros para o nosso blog, além de ter participado da tradução coletiva da primeira versão brasileira do Paraíso Reconquistado, de John Milton (Editora de Cultura, 2014). É editor-chefe da revista virtual de arte e cultura R.Nott Magazine e vem se dedicando também à fotografia. Razões do agir do bicho humano, onde está o conto abaixo, é seu livro de estreia.

* * *

DISTÚRBIOS DO SONO

Lucy, sem ter se dado conta do distúrbio do qual padecia, dormiu por toda uma noite e um dia e acordou na terça, sabendo que essa não era uma segunda como todas as outras.

Teve uma boa manhã, como devem ser as manhãs de quem finalmente alcança a aurora das grandes expectativas. Teve uma noite longa, como são as noites de quem espera. Ensaiou consigo as palavras, as ideias, olhou no espelho e contou de si mesma e do que fazia. Repassou mentalmente o catálogo das roupas do armário. Essa manhã, se não espetacular, trazia ao menos um pouco do velho gosto da meninice que Lucy acreditava não mais possuir. As manhãs seguintes poderiam ser melhores. Muito melhores. A expectativa é capaz de nos fazer fantasiar até os mínimos detalhes do nosso cenário cotidiano. Lucy convidava-o para o café, para sentar-se, para o pãozinho. Ensaiava roteiros de afeto e dicções de amor. Tudo o mais n’importe pas no more. Podia crer que o tempo nunca foi perdido, apenas adiado. Não dava atenção a nada ao seu redor, não se dava conta das falas e dos risos, não acreditava em materialidade que não a do toque nem em forma que não a da fortuna. Lucy arrumava-se com ele e para ele. Depilava-se, elegia calcinhas. As ruas e os caminhos do mundo resumiam-se a uma direção. Lucy receava ter perdido o jeito, até mesmo a pegada. Imaginava-o dando lições, conduzindo como em danças. Sabia que tudo poderia começar ali, hoje mesmo. Queria o momento agora, o jantar, a forma de sua ansiedade tomando forma, a forma com que se encontrariam, tudo, a fonte de horas de conhecer-se, avançar o tempo até o tê-lo e dali nunca mais sair, nunca mais o relógio andar. Revestir-se em luz e vinho e água tônica e ver-se em reflexos de suor e fazer no mais ínfimo gesto de amor uma chave que abre as trancas de um céu e de si mesma. Lucy resumia-se a um só sentimento, e há quem afirme ter visto naquele dia a foto da moça na entrada do dicionário em que se encontra o verbete “expectativa”. Lucy não sabia o que almoçar nem o que almoçou. Lucy entrou no trabalho com ois de mentira e olhares de vidro. Lucy servia os clientes com pedidos certos e gestos errantes. Suas palavras iam e vinham procurando o caminho daquele que era digno de recebê-las. Lucy naquele dia servia cafés bem mais fortes e tortas bem mais salgadas. Chovia lá fora, mas disso nunca ninguém ficou sabendo. No fim do dia só um cliente restava no café, alimentando-se apenas dos próprios papéis. Tudo lá fora brilhava um pouco mais, talvez fosse a chuva, talvez um não sei o quê. O interior do café era madeira e amarelo, mas especialmente naquele dia alguém o diria dourado. Um cliente. Lucy atrás do balcão em cabelos fogosos secando copos e mantendo seus olhos fugidios na via das gentes passando. Lucy e falta uma hora, Lucy e falta meia. Lucy e quase. Lucy in the sky, cravejada de joias, com olhos crivados nos passos. Lucy no templo fulgente de vênus e cinco minutos e quatro. Também para o bem vêm as segundas-feiras, que abrigam inícios de regimes e de romances. A única segunda-feira da vida de Lucy.

Só que era terça.

© de Razões do agir de um bicho humano, Vinicius F. Barth – Confraria do Vento, 2015

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