Vinícius Nicastro Honesko (Arapongas-PR, 1981) é doutor em Teoria Literária pela UFSC e professor adjunto no Departamento de História da UFPR. Também traduz e, dentre seus autores, estão Jean-Luc Nancy, Pasolini, e Giorgio Agamben. Deste último traduziu O que é o contemporâneo? e outros ensaios (Argos, 2009), Categorias Italianas (UFSC, 2014) e Bartleby, ou da contingência (Autêntica, 2015) e mais alguns esparsos publicados em revistas acadêmicas. É autor de O paradigma do tempo. Walter Benjamin e messianismo em Giorgio Agamben (Vida e consciência, 2009).
* * *
Cartografias mínimas
I
Diz-se que o ar é uma espécie de livro da vida onde qualquer sopro, por mais recôndito e obtuso que se queira, registra uma linha numa história impossível de ser contada em seus detalhes. Suspiros de cães moribundos, brisa de revoada de pássaros, tilintar de guizos de víboras, coaxar de sapos, folhas aos ventos do sul, trovões nervosos em noites escuras e, só por último, o mais vil dos sons, nossas palavras, entram nesse livro como que a compor uma língua cujo registro nos escapa por completo. Pensamos, nós, esses bichos que creem possuir ‘a’ linguagem, um domínio, mas nos danamos nos nossos tribunais fictícios: a razão, a memória. Uma linha balbuciada nesse livro, sondamos nosso lugar de caput enquanto o ar nos ignora, peremptoriamente nos ignora. Ulisses, um de nossos loquazes irmãos, sai ao mundo e, parado à beira-mar, chora ciente de que, também ele composto de humores, há de voltar ao grande alfabeto da natureza: somos já poeira, somos já sal. E assim nos tornamos um verso borrado e esquecido na imensidão das estrofes desse livro a nós de todo ilegível.
II
Li, numa bela e secreta história, que o maior problema dos mapas é que eles não resistem à ação do tempo. E, por não gravarem o tempo, são gravados de infâmia: os mapas circulam no universo do entretenimento, são os rabiscos de uma busca que, colocando-se diante de um olhar ansioso por movimento, tenta dar, num mundo sem bússolas ou rosa dos ventos, as marcas da mão divina. Mas o que é entreter-se defronte a um mapa? Como tenho-me entre um mapa? Porque talvez a única forma possível de estar entre seja mesmo um mapa que, com simplicidade, alguém poderia dizer que nada mais é que uma carta sempre a caminho de olhos outros. Os mapas podem assim ser folhas passíveis ao vento dos tempos. Certa vez, em algumas notas que se tornaram uma carta aos destinatários impossíveis do futuro, Fernando Pessoa gravou: “Toda a gente é a caricatura d’uma única pessôa que não existe. Nenhum de nós poderia figurar n’um romance realista. Somos todos falsos, inteiramente irreaes.” A infâmia com a qual as cartas são gravadas é também o ônus que carregamos pela nossa irrealidade, por sucumbirmos, também nós, ao tempo. Falamos (mapeamos, cartografamos) porque certa vez acreditamos em nossa realidade e, desde então, tentamos escapar ao tempo e à nossa condenação: a linguagem (nosso lápis à mesa de desenho). Aliás, resta-nos o contentamento de simplesmente poder dizer: somos irreais à medida em que falamos; somos irreais desde o momento em que, colocados diante da criação, a ela atribuímos nomes; somos irreais porque insistimos em cartografar um mundo; somos irreais pois a realidade é muito pouco para poder ser dita. Estamos sempre entre a mão que endereça cartas e os olhos que nestas lerão apenas a distância que tentamos preencher, cartografar, com nosso toque de irrealidade: nossa linguagem – mais que feita carne, como num delírio divino – feita carta.
III
Há um desperdício de vida em cada instante, disse, mais ou menos assim, uma poeta. Mas o que de uso, de aproveitável é a vida, ou melhor, o que não se perde na vida? Dou alguns passos e chego numa avenida movimentada, um emaranhado de carros e fumaça, barulhos e gente incrustada em latas como mariscos num canto de pedra junto ao mar. Tento não pensar muito e desvio o olhar para as acácias que nestes tempos esbanjam um amarelo que Van Gogh talvez um dia aspirou pintar. Quando criança, tomava as pétalas das flores de acácia para brincar. Eram dias incautos que corriam soltos e todas as cores brilhavam com algum sentido de liberdade: havia vida num mundo por vir, havia amarelos desperdiçados com alegria. Mas isso é bobagem que agora penso e que outrora sequer podia ter qualquer chance de ser pensada já que se perdia com a vida. O cruzamento continua movimentado: por mim passa uma menina com fones de ouvido, no carro parado no semáforo alguém discute pelo telefone, o ônibus está abarrotado de gente, o sol começa a se esconder, buzinam os motoristas nervosos. E se todos tivessem uma alma, esta não estaria perdida à flor do dia ou mesmo antes de ter nascido? Mas escuto ecos de vozes: “isso é coisa de poeta à toa, o mundo real é duro como as latas das quais agora você desvia o olhar.” E qual o porquê destas palavras se a vida é desperdício? As folhas em branco poderiam por acaso ser tingidas pelo amarelo das acácias? É porventura possível seguir pela cidade sem imaginar que tudo, neste dia, já está gasto e perdido? Nossa sorte não é obra do acaso, do inescrutável acaso? A vida, qualquer vida, não é um tecido de citações perdidas e, por isso, justamente desperdício? Consigo, por fim, atravessar o cruzamento e começo a caminhar pela rua que me conduz ao trabalho: e tudo parece já ter sido dito, e a confusão dos barulhos agora soa normal, e a constância das horas parece ritmada, e a fragilidade dos projetos parece ter sentido, e as coisas à toa podem ser apagadas, e as acácias já não têm nenhum amarelo, e a náusea me parece ser o único sentido compartilhado enquanto esperamos a redenção da catástrofe que já aconteceu.
IV
Ao terminar, quase com uma formule de politesse, a carta que escreve a Roberto Assumpção, de Roma, em 05/03/1960, o poeta Murilo Mendes assim se despede do amigo diplomata: “Desculpe-me a extensão desta. Estou habituado a escrever poemas curtos, mas em matéria de carta, sou às vezes torrencial, o que de resto me chateia, porque receio chatear os amigos.” Dezessete anos antes, tuberculoso e internado num sanatório em Correias, distrito de Petrópolis, Murilo remetia sua primeira carta ao amigo, e, na linha de abertura desta, pedia desculpas por escrever a lápis, pois a caneta tinteiro havia quebrado. O poeta pede desculpas: por como as letras chegam, pela chateação que, talvez, uma longa carta pode causar, por não controlar a torrente de palavras que por vezes aparece na redação de uma carta – logo, de um mapa – a outrem. Há, nessas palavras de Murilo, uma possível chateação pelo fluxo das palavras, pela onda que constrói uma carta descontrolada e tomada pela ânsia comunicativa. Porém, nessa ânsia é que algo da linguagem comunicativa se perde em traços embaraçosos para o remetente. Mas de que se trata em tal embaraço? Por que essas “desculpas” por “atrapalhar a comunicação” – pelo excesso de palavras ou pelas palavras borradas e ilegíveis, aliás, tão comuns em cartas -, que seria o componente preciso de uma carta? Por que, quando escrevemos a outrem, parece que somos assolados por uma culpa qualquer que, como numa irrupção vulcânica, nos coloca uma quase “obrigação” das desculpas (mesmo que estas, por vezes, venham veladas)? Não seria essa culpa apenas o fato de falarmos, à distância, a alguém que, como nós, também nos fala desde seu silêncio ou de sua resposta? O poeta é então culpado por não poder refrear sua ânsia de dizer, seu desejo, por vezes inconsciente, de fazer da palavra outra coisa que não mero instrumento de dizer; as desculpas são, de algum modo, pelo simples fato de falar. “A linguagem é a pena. Nela todas as coisas devem entrar e nela devem perecer segundo a medida de sua culpa”, diz a poeta Ingeborg Bachmann. Numa carta, portanto, entramos numa relação silenciosa em que a distância nos lança todas as sombras dessa culpa, a culpa por excelência dos animais que falam. Desse espaço não encontramos nenhuma redenção e, como que fadigados por tanto dizer, insistimos nessas desculpas para preencher com a tinta do tempo o espaço que nos separa da pessoa que nos lerá.
V
“Qualquer que seja o Deus a ter entre suas incumbências velar pela correspondência dos terrestres, parece que os fios da nossa escaparam das suas mãos e caíram no poder de algum demônio do silêncio.
Naturalmente, admito que o poderio desse diabo não me é de todo estranho, à medida que o meu próprio mundo interior lhe serve de cenário.” Essas palavras de Walter Benjamin, dirigidas ao amigo Gershom Scholem numa carta de 29 de março de 1936, ressoam pelo tempo e, ainda que destinadas ao amigo, hoje se abrem a este leitor qualquer que agora as cita. Mas essa intimidade – e toda intimidade é, tal como Agostinho em suas interpelações a deus, interior intimo meo, o mais profundo de mim que é atravessado por esse fora, pelo completamente outro – da amizade encontra, em cada carta que escrevemos, seu ponto de máxima combustão. Quando em nosso cenário interior demônios-atores – e, para os gregos, o demoníaco (daimonion) estava sempre em relação com a felicidade (eudaimonia); ou seja, feliz é quem está na companhia de um “bom demônio” – atuam numa peça que a nós é sempre desconhecida, começamos a escrever um mapa, uma carta, a alguém que jamais o compreenderá de todo. Qualquer carta, portanto, não é senão um fragmento para dominar esses demônios silenciosos, uma tentativa de atribuir papeis a esses seres que nos fazem lançar palavras a outrem, e, desse modo, com as folhas preenchidas e com o mundo interior esvaziado, permanecemos, caneta em mãos, no recôndito de nosso silêncio.
VI
Da decisão sobre escrever uma carta não há voltas e, assim, o mundo, palimpsesto amarelado de mapas do destino sem volta das palavras, é despejado em minhas mãos. Talvez, mesmo este parágrafo obtuso não seja mais do que uma carta endereçada a alguém que nunca o lerá. Todas as palavras são um desperdício quando escritas, mas, ao mesmo tempo, são também a única possibilidade de vida que nos resta, o meio angustiante de tentar cartografar os passos pela existência. As gotas de tinta que outrora manchavam minhas mãos a cada folha preenchida, agora penetram minha carne, invadem meu sangue e deglutem minhas esperanças e suspiros de ler as respostas que nunca tive e tampouco terei. Com a carta à metade, sinto o mundo se esvaindo a cada nova palavra, como quando leio alguns poemas hipnóticos que me perturbam o dia. E a tinta continua a invadir-me com fúria, e agora rompe minhas entranhas e me coloca em êxtase diante do impossível: dizer a quem quer que seja, ou que não seja, meu desejo de dizer. Nenhuma carta jamais o dirá e, talvez por isso, todas até agora escritas já o disseram.
VII
A R.A.
À parte todos os sonhos do mundo, a lucidez, como que a me colocar no ponto em que a morte poderia chegar insuspeita, inebria a visão. Soam os sinos do tempo, e Nietzsche, perdido no olhar do animal – quase sem lembrança e feliz -, grita o esquecimento. Álvaro de Campos, só quero morder um pedaço de chocolate e, com a mesma verdade com que o fez aquela moça, afundar-me no que há de mais metafísico na existência: o esquecimento – ou, de fato, tudo talvez não seja senão a consequência de estar indisposto. As horas desfilam para mim como essas manequins sem vida, repletas das matérias do consumo (mais uma vez, a metafísica vulgar, esperada, desejada). Folheio o livro sobre a discrição heroica e toda matéria, tudo em que toco, respira meu corpo que evapora. Por que não volto ao chocolate? Olho para o mar e espero notícias de mim mesmo. Mas, hoje, nesta espera – e enquanto escrevo cartas jamais enviadas -, talvez não me sobre nada mais do que este chocolate que começa a derreter no bolso há pouco cheio de memória.
VIII
A J.F.
Um poeta português disse, certa vez, que a missão das folhas é definir o vento. Para qualquer lado que sopre, o vento, esse vento inscrito nas folhas, só pode ser dito na poesia. Os antepassados do poeta, em sinal de total submissão à poesia, deixaram-se guiar pelo vento e, atentos à missão das folhas, gravaram em cartas – essas folhas às vezes com destinatário, às vezes voltadas ao futuro – seus desejos pelo desconhecido. Os mapas, agora ilimitados e sem o taxativo non plus ultra de outrora, passaram então a ser o desenho do desejo por essa aventura naquilo que era então o indizível, o silêncio do além dos limites do mundo. Os portugueses eram assim iniciados no silêncio do oeste e, tal como Ulisses chorando à beira-mar – diante desse grande deserto de sal -, tomaram ciência da impossibilidade de uma cartografia geral, de uma escrita desse silêncio que se exige enquanto tal, para além de todo esboço e de todo desenho. Eles se deram conta de que esse silêncio, por mais que sempre paire sobre toda fala, exige permanecer desconhecido, como o absolutamente outro, o ponto a partir do qual definir, a cada vez, o vento. Hoje, do convés de minha embarcação, olho ao horizonte e percebo o azul do céu tomar do mar os limites aos desejos. Tendo em mãos velhos mapas de portugueses, leio que “ler é sonhar pela mão de outrem” e, talvez, quando este pequeno mapa for lido, meu silêncio possa de algum modo permanecer um sonho possível. Mas porventura esta pequena carta não diga mais do que aquilo que cantava um outro navegante, não dos mares, mas dos morros, o velho Cartola: agora, olhando para esse horizonte, meus olhos falam o que não veem, mas neles você compreende o que quero dizer.