“O diálogo do pessimismo” é um poema babilônico que fazia um tempo que eu queria traduzir. Também chamado de arad mitanguranni (o primeiro verso do poema no original: “vem servir-me, escravo” ou “escuta, escravo”) ou “O diálogo de um senhor e seu escravo”, por motivos óbvios, ele consiste nisso mesmo. São 10 ou 11 estrofes, cada uma com uma estrutura bastante simples, mas eficaz: elas começam com o chamado do senhor e a resposta do escravo. Então o senhor diz que quer fazer alguma coisa (ir ao palácio, jantar, fazer um sacrifício ao seu deus) e o escravo responde comentando as vantagens disso que ele deseja fazer. Depois o senhor muda de ideia, e o escravo comenta as vantagens de não fazê-lo. A literatura chamada sapiencial era um gênero respeitável na Mesopotâmia e muito popular entre a classe de escribas, que treinavam seu ofício com provérbios e consideravam secreto o conhecimento que registravam nas tabuletas, algo só para a pequena elite capaz de ler a complexa escrita cuneiforme do sumério e do acádio – os iniciados. Há algo de literatura sapiencial no poema, e durante algum tempo (até 1954, como comenta Lambert) os pesquisadores o incluíram como parte do gênero. De fato, nota-se um verniz de profundidade nas falas do escravo: “Comer alegra o coração”, “Quem ama uma mulher esquece toda dor e tristeza”, “o cão de rua sempre encontra o osso”. São versos que têm toda a carinha de provérbios e frases de efeito (e suas subversões resultam em versos poderosos como “Terra nua é o leito do onagro”, “olha as caveiras dos nobres e da plebe, / quais foram vilões e quais os benfeitores?”). Há citações e alusões a um poema religioso chamado “Hino a Šamaš” (o deus do sol) e ao Épico de Gilgámeš. Esse movimento argumentativo que oscila entre o desejo da ação e da inação também já levou os estudiosos a compará-lo com o livro do Eclesiastes.
No entanto, como já apontou Frye sobre o gênero cômico, uma das origens do efeito cômico é a repetição, e é isso o que temos aqui. Se, ao lermos suas estrofes separadamente, fica a impressão de que o tom dos versos poderia ser tido como mais pura e seriamente filosófico, é inevitável, conforme avançamos, a sensação de que o autor não está sendo de todo sério. A cada repetição, o escravo parece menos um sábio e mais um bajulador tentando a todo custo obter os favores do seu mestre (e, né, na situação dele, quem pode culpá-lo?), o que lembra muito o estereótipo da comédia latina (uma invenção, porém, muito posterior) do seruus currens, o escravo ardiloso de comédia que vemos em Plauto e Terêncio. O próprio texto parece reconhecer isso, e caminha num crescendo – que leva à comparação ridícula e blasfema entre os deuses e cachorros e ao desespero da relatividade moral da penúltima estrofe – até culminar na piada de humor negro que encerra o poema, que eu não consigo ler sem pensar nas discussões de suicídio de Esperando Godot (no ato 1 eles pensam as possibilidades de se enforcarem no galho, aparentemente frágil, da única árvore no palco. Gogo comenta que Didi é mais pesado, então se ele se enforcar antes e o galho quebrar, Gogo vai ficar sozinho e sem galho para poder se enforcar também). E tudo isso é ancorado num problema que talvez não seja tanto diretamente ético, mas mais linguístico, na medida em que a linguagem nos dá a capacidade de justificar qualquer ação ou inação. Ainda há discussão entre estudiosos sobre qual o tom exato do poema, se solene, cínico, fanfarrão ou de fato pessimista. Em todo caso, fica a impressão do quanto é tênue a fronteira entre a sabedoria e o cômico.
Por fim, algumas informações bibliográficas: o poema foi escrito por volta de 1000 a.C. (a menção a uma adaga de ferro exclui a possibilidade de ser uma composição mais antiga, do período paleobabilônico) em acádio, a língua do Império Babilônico e principal língua da Mesopotâmia até ser substituída, mais tarde, pelo aramaico como língua franca do antigo Oriente Médio. Esquecido ao longo dos séculos, ele é redescoberto aparentemente no final do século XIX (quando o processo de deciframento da língua estava já em estágio razoavelmente avançado) em cinco manuscritos diferentes, dos quais um está quase completo, de modo que dos 86 versos do poema apenas 15 estão danificados (porém seu possível conteúdo é em parte recuperável pelo contexto). Ele foi transcrito e publicado nos círculos de especialistas por G. Reisner e E. Ebeling entre 1896 e 1919 e desde então tem sido traduzido em diversas edições, uma das mais célebres sendo a de Wilfred G. Lambert, Babylonian Wisdom Literature, de 1960 (pp. 139-149), que conta com uma introdução, transcrição (incluindo das variações) e uma tradução literal. Em 19 de novembro de 1987, saiu uma tradução poética do poema no The New York Review of Books, de autoria de ninguém menos que Joseph Brodsky, com o título ‘Slave, Come to My Service!’, com base na edição de Lambert e de James B. Pritchard. Brodsky se equivoca, porém, ao se referir ao poema como um poema sumério, mas é uma confusão compreensível. Não tinha internet nos anos 80 para esclarecer esse tipo de dúvida em cinco minutos. Neste caso, para a minha tradução, eu me baseei na de Brodsky, porque o poeta eliminou as lacunas (é tão frustrante ler poema com verso faltando) e especialmente porque ela funciona muito bem, que é o critério mais importante. No entanto, onde Brodsky se desvia demais (por exemplo, o que ele traduz como “do some evil” costuma ser interpretado pelos estudiosos como “liderar uma revolução”), eu preferi me aproximar mais das traduções acadêmicas. No tocante ao tom do poema, numa tentativa de fazer jus à sua ambiguidade entre seriedade e humor, eu procurei manter ao mesmo tempo algum grau de poeticidade (com o uso algo arcaizante do “tu”, aliterações, vocabulário) e uma oralidade à brasileira que eu acho que funcionam para esse propósito.
Arad mitanguranni: o Diálogo do Pessimismo
ou: um Senhor e seu Escravo
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Rápido, busca minha carruagem e arreia os cavalos: irei ao palácio!”
“Vai ao palácio, meu senhor. Vai ao palácio.
O rei ficará feliz em te ver e será benevolente”.
“Não, meu escravo. Não irei ao palácio!”
“Não vás, meu senhor. Não vás ao palácio.
Serás mandado pelo rei a alguma missão longínqua,
por estradas estranhas, montanhas hostis;
dia e noite sujeito a mazelas e dor”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Busca a água e derrama-a em minhas mãos: quero jantar”.
“Janta, meu senhor. Janta.
Comer alegra o coração. O jantar de um homem
é o jantar de seu deus, e mãos limpas fisgam o olhar de Šamaš”.
“Não, meu escravo. Não jantarei!”
“Não jantes, senhor. Não jantes.
Bebida e sede, comida e fome
nunca abandonam o homem, nem a si próprias”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Rápido, busca minha carruagem e arreia os cavalos: irei passear pelo campo”
“Isso, meu senhor, isso. Despreocupado, o caçador
tem sempre a barriga cheia, o cão de rua sempre
encontra o osso, a andorinha que migra domina a arte de fazer ninhos
o onagro encontra a relva no mais seco dos desertos”.
“Não, meu escravo, não irei passear pelo campo”.
“Não vás, meu mestre. Não te dês ao trabalho.
É sempre fugaz a sorte do caçador,
o cão de rua perde os dentes. O ninho
da andorinha que migra é enterrado pela argamassa.
Terra nua é o leito do onagro”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Tenho vontade de constituir família, desejo ter filhos”.
“Bem pensado, meu senhor. Isso, tem filhos.
Quem constitui família garante o seu nome, orações póstumas o repetem”.
“Não, meu escravo. Não constituirei família, não terei filhos!”
“Não o faças, meu senhor. Não os tenhas!
Uma família é uma porta torta, sua dobradiça range.
De cada três filhos, só um é sadio; os outros dois, doentes.”
“Mas devo constituir família?” “Não, não o faças.
Quem constitui família desperdiça seu lar ancestral”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Vou ceder aos meus inimigos; calarei diante das acusações no tribunal”.
“Isso, meu senhor, isso. Cede aos inimigos;
guarda teu silêncio, meu senhor, diante das acusações”.
“Não, meu escravo! Não irei calar e não cederei!”
“Não cedas, meu senhor, e não te cales.
Mesmo que não abras a boca
impiedosos teus inimigos serão e cruéis,
além de numerosos”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Desejo liderar uma revolução”.
“Ótimo, meu senhor. Isso, lidera a revolução.
Pois, do contrário, como tu hás de encher tua barriga?
Como poderás vestir o corpo sem revolução?”
“Não, meu escravo. De modo algum serei um revolucionário!”
“Os revolucionários acabam mortos ou cegos e esfolados vivos
ou cegos, esfolados vivos e trancados na masmorra”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Quero amar uma mulher”. “Ama, senhor, ama!”
Quem ama uma mulher esquece toda dor e tristeza”.
“Não, meu escravo. Não quero amar mulher nenhuma!”
“Não ames, meu senhor. Não ames.
Mulher é cilada, tocaia, fosso sem luz,
o ferro afiado de uma adaga para cortar-te a garganta no escuro”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Rápido, busca água para lavar-me as mãos: farei oferenda ao meu deus”.
“Isso, faz oferenda, faz oferenda.
Quem sacrifica ao seu deus enche o coração de riquezas;
sente-se generoso, abre-se a sua bolsa”.
“Não, meu escravo. Não farei oferenda alguma!”
“Tem razão, meu senhor. Tem toda razão!
Treina teu deus para te seguir como um cãozinho,
com suas carências de servidão, rituais, sacrifícios”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Quero fazer um investimento, vou emprestar com juros”.
“Ah, sim, investe, empresta com juros.
Quem investe preserva o que tem, e seu lucro é enorme”.
“Não, meu escravo, não emprestarei, nem investirei!”
“Não invistas, meu senhor. Não emprestes.
Emprestar é como amar, e receber de volta, gerar maus filhos:
todos maldizem o dono do pão que comem.
Ficarão ressentidos e diminuirão teu lucro”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Desejo fazer uma boa ação pela minha pátria!”
“Muito bom, meu senhor, muito bom. Faz isso!
Quem faz boas ações pela pátria grava seu nome no ouro do anel de Marduk”.
“Não, meu escravo, não farei boa ação alguma pela pátria”.
“Não faças isso, meu senhor. Não te dês o trabalho.
Vai e caminha pelas ruínas antigas,
olha as caveiras dos nobres e da plebe,
quais foram vilões e quais os benfeitores?”
“Vem, meu escravo, vem servir-me!” “Pois não, meu senhor?”
“Se é assim, então o que é bom?”
“Bom mesmo seria se quebrassem o meu e o teu pescoço
e depois fôssemos desovados no rio – isso sim!
Quem é tão alto que alcança os céus?
Tão amplo que abarca os infernos?”
“Se assim for, melhor eu te matar, meu escravo: prefiro que tu vás na frente”.
“E o meu senhor crê que saberias viver três dias sem mim?”
(poema mesopotâmio anônimo, introdução e tradução de Adriano Scandolara com base nas traduções de Brodsky e Lambert)
Nossa! genial, não pensava que os servos e o senhores tinham esse tipo de relação naquela época, certamente foi feita por um escriba meio espirito livre, para julgar dessa forma a sociedade a época. É mais incrível ainda que tenha sobrevivido, o que eu sabia da sociedade egípcia era que ela era extremamente estratificada, mas deixa entrever pelo poema uma sociedade culturalmente florescente, vi um comerciozinho aqui, ali, alguém fazendo pão, outro comerciando azeite. Seria legal se vocês abordassem um pouco esse modo de vida egípcia contassem como era a vida e motivações prováveis para o poema
Obrigado pela visita e pelo comentário, Cassio!
Então, o poema na verdade é mesopotâmico, não egípcio….as duas sociedades, é claro, vão ter semelhanças, pela proximidade, mas é importante não confundir. Pelo que eu entendi, pelo menos até a época de transição entre a idade do bronze e do ferro, o mundo mesopotâmico era mais urbanizado (os sumérios, como eu comentei num post anterior, chegaram a ter uma cidade com população de 60.000 pessoas), tanto que alguns autores se perguntam se é adequado falar em cidades egípcias propriamente, já que o Egito era mais rural. Se você tem interesse pelo estilo de vida egípcio, eu te recomendo um outro poema, este de fato egípcio, que comenta sobre todas as profissões, critica todas e chega à conclusão de que o melhor na vida é ser um escriba ahaha. Você pode lê-lo neste link: http://college.cengage.com/history/primary_sources/world/advice_to_ambitious_young_egyptians.htm
Um abraço!
Sublime. Parece alguns assessores que conheci trabalhando no Legislativo estadual e municipal aqui no RS. Ainda somos os mesmos, guardadas as proporções.
Boa tarde! Muito obrigado por essa traduçao e pelo texto explicativo que a precede, os dois sao excelentes. Como nao sou especialista, nem grande conhecedor da poesia mesopotâmica, gostaria saber se ja existia a ideia de “lucro” naquela época e naquela sociedade?
Opa, Yure! Obrigado pelo comentário e pela pergunta. Então, o comércio era crucial p/ a sociedade mesopotâmica e p/ toda a idade do bronze em geral (produzir bronze no antigo oriente médio era trabalhoso e impossível sem toda uma cadeia de fornecedores). O ePSD inclui uma meia dúzia de palavras de sumério e acádio arcaico p/ “lucro”. Aliás, os babilônios faziam até empréstimos (e com juros, que se diz “mash” em sumério ou “sibtu” em acádio) e tinham até um distrito financeiro.
Republicou isso em Portal E.M.CIORAN/Br.