Um cântico de Inana e Dumuzid

inana-e-dumuzid
Inana/Ištar e Dumuzid/Tâmuz, em detalhe de cerâmica suméria

Bem, por sorte eu já falei bastante longamente sobre a deusa Inana, divindade suméria do amor, do sexo, da fertilidade e da guerra (conhecida como Ištar entre os babilônios e possível origem da deusa Afrodite no panteão grego) e seu esposo Dumuzid (ou Tâmuz), num momento anterior aqui no blogue, quando apresentei o poema “A descida de Inana ao mundo dos mortos” (e um outro post que fala da deusa também é o do Bernardo com a tradução da tabuleta 6 do Épico de Gilgámeš), por isso acredito que agora eu posso ser um pouco mais breve nesta introdução. Para ser realmente brevíssimo, o tema deste post agora é um poema sumério de diálogo erótico entre o casal de deuses. Pois é.

O livro do Cântico dos Cânticos é a nossa referência mais óbvia para o gênero, acredito, com suas referências sexuais algo explícitas e seu jogo de vozes entre o rei Salomão, a jovem que é desposada por ele ao longo do poema e uma outra voz que funciona mais ou menos como um coro grego, ainda que isso não esteja explícito na maioria das edições bíblicas. O gênero do poema dialógico parece ser um velho conhecido já da literatura mesopotâmica, vide “O diálogo do pessimismo”, que já vimos aqui também, apesar de que é difícil dizer se, assim como os poemas sumérios, “O diálogo do pessimismo” era um poema musicado que transcrito na argila, ou se era uma criação original de um escriba para circular só entre escribas. São mais raros, no entanto, os exemplos de poemas com o mesmo teor que o famoso poema bíblico, que, apesar de sua atribuição ao rei Salomão, estima-se que tenha sido composto mais ou menos durante o chamado período persa da cultura de Judá, i.e. nos séculos logo após o retorno do exílio na Babilônia em 536 a.C., o que faz com que ele seja muito recente na história do Oriente Médio. E é por isso que encontrar um poema sumério – composto no máximo até 1600 a.C., portanto – com essa mesma configuração é nada menos que fascinante (pelo menos tanto quanto a perspectiva de dizer aos amigos que você está lendo pornografia suméria).

Como é normal na literatura suméria, o tal poema em questão não tem nome de autor e tampouco tem título, com exceção da classificação dada pelo Electronic Corpus of Sumerian Literature como Dumuzid-Inana P e a sua descrição dúbia como um possível balbale (um gênero poético sumério, ao qual pertence a “Canção de Amor de Šu-Sin”, já traduzida aqui também). O original transcrito do poema e a sua tradução para  o inglês podem ser verificados no ETCSL clicando aqui, que, por sua vez, reproduz o poema com base no volume Love songs in Sumerian literature: critical edition of the Dumuzi-Inanna songs, de Yitschak Sefati, publicado em 1998 pela Bar-Ilan University Press. Infelizmente, como vocês podem averiguar, o poema está fragmentado, o que atrapalha muito a fruição e é um pesadelo para qualquer tradutor, mas bem, a gente faz o que dá para fazer. A descoberta de um poema desses, em todo caso, é bom demais para deixar passar por causa de um detalhe como falta de integridade física.

Eu poderia me demorar mais comentando coisas como a franqueza da linguagem sexual do poema, que é típica da falta de pudor dos sumérios (benza Inana) ou ainda o que podemos reconhecer como um lirismo surpreendentemente próximo do nosso, apesar da distância temporal, em algumas imagens como a da vulva de Inana como uma nau celeste (eu disse que eles eram francos) ou bela como a jovem lua crescente. Mas acredito que o poema fale por si mesmo. Sem mais delongas, portanto, segue a minha tradução. Operando do mesmo modo que as anteriores (com contato direto com o original, mas norteado também pela tradução inglesa), ela contempla as partes mais legíveis dos segmentos A e B do poema tal como disponibilizado pelo ETCSL.

 

Um cântico de Inana e Dumuzid

(…)

Inana
sobre povos numerosos pousei meu olhar
e a Dumuzid apontei por deidade da terra
a Dumuzid, o amado de Enlil,
exaltei o nome, decretei o destino,
minha mãe muito o estima
meu pai o elogia

eu me banhei e lavei-me com espuma
banhando-me em pé sobre a tina
minhas vestes, como as dos justos, foram passadas
meu vestido soberbo foi ajustado

(…)

o poeta entoa um cântico
meu esposo celebra comigo
Dumuzid, o touro selvagem, celebra comigo

Coro
…o desejo em tons de louvor
a senhora das terras todas…
que faz subir as preces em Nibru…
que faz descer as preces…
a senhora louva a si própria;
o gala[1]… em canto
Inana louva…
seu sexo em canto

Inana
este sexo, …
como um chifre, um grande coche…
esta minha Nau Celeste ancorada
que traja a beleza como a jovem lua crescente
este ermo na estepe…
estes prados de cairinas onde pousam minhas cairinas
estes prados altos e bem molhados
meu sexo, um morro aberto e bem molhado
quem será seu lavrador?
meu sexo, um morro aberto e bem molhado
quem levará o touro a ele?

Dumuzid
senhora, o rei virá lavrá-los para ti
Dumuzid, o rei, virá lavrá-los para ti

Inana
lavra meu sexo, homem do meu coração

Coro
…ela banha seus divinos quadris

 

[1] gala é como se chama um tipo de sacerdote ou cantor ritual, de natureza sexualmente ambígua, devoto de Inana. Por conta da especificidade da função, achei que seria melhor deixá-lo no original.

(tradução e comentário de Adriano Scandolara)

Um comentário sobre “Um cântico de Inana e Dumuzid

  1. Iniciar o ano nos inícios da poesia. É sempre uma boa maneira de iniciar… Muito bonito o poema. Gostei muito, por exemplo, de coisas como: “meu sexo, um morro aberto e bem molhado / quem será seu lavrador?” A indústria pornô perde tempo demais com entregadores de pizza e versões milionárias de Star Wars.

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