Apresentação de “9 traduções de I am vertical, de Sylvia Plath”
A tradução coloca, no limite que ela é, em questão a questão do outro. O autor do texto traduzido é também outro autor, o tradutor, mesmo que, antes de o texto ser traduzido, o autor dele já fosse outro de si mesmo, ao menos durante o texto. Se não há, para os textos, o que não seja tradução, o que Rafael Zacca realiza na série de traduções para um mesmo poema de Sylvia Plath, “I am vertical”, é escrever versos como quem desenha linhas de fronteira num território conflagrado, fazendo da tradução, enquanto ela houver, o luto do original, enquanto ele houver. Uma poética da tradução, como essa, risca o texto, o território de autoria, enquanto ele resistir, até o fim, é um fim para o poema.
Assim é que na tradução as autorias e as línguas distintas não são experimentadas e formalizadas nos poemas como diferenças uma em relação à outra (o inglês e o português, Sylvia Plath e Rafael Zacca), mas cada uma como diferenças em si. Por isso a tradução para o português se coloca ao lado da tradução para o português-inglês, ou seja, para uma língua menor, de vocabulário e estrutura em português que, no entanto, mimetizam irônica e ludicamente o inglês: “Then the sky and I are in open conversation” transforma-se, em português, em “Assim, o céu e eu conversamos sem segredos” que se transforma, em português-inglês, em “Então o céu e eu estamos em aberta conversação”. E por isso se traduz o poema de Plath para, entre outras línguas menores ou mínimas, línguas como: a lei antiterrorismo brasileira, a carta de suicídio de Torquato Neto, o português-vogais, ou mesmo novamente o inglês, devolvendo à língua de origem um poema retraduzido.
E não é à toa que o poema traduzido em série seja um para o qual estar na posição horizontal – a do verso ou a do morto – se torna um modo de conversar sem segredos ou de estar em aberta conversação com o céu. Para traduzir o céu, suas constelações e galáxias, seria preciso deitar-se, e se, ao se deitar, não se compreende mais a diferença, no poema de Sylvia Plath, entre a horizontalidade do verso ou a horizontalidade do corpo morto que cai, então traduzir (o céu ou o poema) são um modo de demorar na língua. O texto se torna a dúvida entre morrer em versos ou matar o poema. Para o tradutor, morrer nos versos traduzidos ou matar o poema original. Como demorar nessa dúvida?
Quem, entre outros, pensou a questão foi Haroldo de Campos. No ensaio que como que inaugura a sua teoria, “Da tradução como criação e como crítica” (1962), Haroldo propõe, à guisa de conclusão e utopia, e naqueles tempos brasileiros de mobilização social pela cultura, o projeto de um Laboratório de Textos no qual alunos e professores de línguas e literaturas se reunissem para, através da confrontação tradutória coletiva com os textos literários, assim realizassem um projeto de crítica literária e de ensino da literatura que fizesse justiça ao texto. A lida com a materialidade do texto, e com essa materialidade experimentada como diferença (de uma língua a outra) e não como um monumento autorreferente, sugere à proposta de Haroldo as suas dimensões ética (a do texto como “concreção”) e política (a dos materialismos do texto, do laboratório, do ensino). Nem preciso lembrar que Rafael Zacca promove, como poeta, oficinas de poesia, a partir do seu trabalho no coletivo Oficina Experimental de Poesia, e estuda a obra de Walter Benjamin, para quem “a tradução é uma forma”. Ou seja.
Para mim, há alguma implicação entre essas traduções que agora se publicam – a poética da tradução desenhada nelas –, o jogo entre o verso e a morte no poema de Sylvia Plath, e a lida coletiva nas oficinas de poesia. Traduzir, morrer, reunir sejam, talvez, verbos para que o poema seja, hoje, conjugado sob a força da invenção de ritos sacrificiais da cultura, sob a força daquilo que, tamanha a urgência por convivermos, só podíamos ter feito até ontem, antes de morrer.
Luiz Guilherme Barbosa
* * *
9 TRADUÇÕES DE I AM VERTICAL, DE SYLVIA PLATH
por Rafael Zacca
Uma coisa que me pega de jeito no Hölderlin tradutor,
no Francis Bacon pintor, e, da mesma forma,
na Joana D’Arc soldada de Deus
é o alto nível de consciência-de-si
presente em suas respectivas manipulações
da catástrofe.
Anne Carson, Nay Rather
A tradução não se vê como a obra literária, mergulhada, por assim dizer, no interior da mata da linguagem, mas vê-se fora dela, diante dela e, sem penetrá-la, chama o original para que adentre aquele único lugar, no qual, a cada vez, o eco é capaz de reproduzir na própria língua a ressonância de uma obra da língua estrangeira. (…) Pois é o grande tema da integração das várias línguas.
Walter Benjamin, A tarefa do tradutor (trad. Susana Kampff Lages)
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I am vertical traduzido para o inglês por Sylvia Plath
1.
I am vertical
But I would rather be horizontal.
I am not a tree with my root in the soil
Sucking up minerals and motherly love
So that each March I may gleam into leaf,
Nor am I the beauty of a garden bed
Attracting my share of Ahs and spectacularly painted,
Unknowing I must soon unpetal.
Compared with me, a tree is immortal
And a flower-head not tall, but more startling,
And I want the one’s longevity and the other’s daring.
Tonight, in the infinitesimal light of the stars,
The trees and the flowers have been strewing their cool odors.
I walk among them, but none of them are noticing.
Sometimes I think that when I am sleeping
I must most perfectly resemble them —
Thoughts gone dim.
It is more natural to me, lying down.
Then the sky and I are in open conversation,
And I shall be useful when I lie down finally:
Then the trees may touch me for once, and the flowers have time for me.
§
I am vertical traduzido para o português
2.
Eu estou de pé
Mas preferia estar deitada.
Não sou uma árvore de raízes fincadas
Sugando minerais e amor maternal
Para que a cada março eu resplandeça em folhas,
Nem sou a flor mais bela dos canteiros
Delicados, atraindo meu quinhão de “Ais”
Antes do iminente despetalar.
Comparadas a mim, uma árvore é imortal
E uma flor, conquanto pequena, é mais espantosa –
Invejo a longevidade de uma e a ousadia da outra.
Hoje, à luz infinitesimal das estrelas,
As árvores e as flores espalharam seus odores na noite fresca.
Caminho entre elas, mas não me notam.
Às vezes imagino que, dormindo,
Sou sua semelhante –
Penso obscura.
É mais natural se estou deitada;
Assim, o céu e eu conversamos sem segredos.
Serei útil quando estiver enfim deitada:
Aí as árvores serão mãos para mim, e, as flores, demora.
§
I am vertical traduzido para o português-inglês
3.
Eu estossou vertical
Mas eu preferia muito estassar horizontal.
Eu não sou uma árvore com minhas raízes em o solo
Chupando cima minerais e maternal amor
Então que cada Março eu talvez brilhe dentro folha,
Nem sou eu a belezura de um jardim cama
Atraindo minha divisa de “Ais” e espetacularmente pintado,
Dessabido eu devo logo despetalar.
Comparadas com mim, uma árvore é imortal
E a flor-cabeça não maior, mas mais surpreendente,
E eu quero o da uma longevidade e o da outra ousadia.
Nhoitje, em a infinitesimal luz de as estrelas,
As árvores e as flores tem estado espalhando seus frescos odores
Eu ando entre elas, mas nenhuma de elas estão notando.
Algezes eu penso que quando eu estou dormindo
Eu devo mais perfeitamente assemelhá-las
Pensamentos vão turvos.
Isso é mais natural pra mim, deitada baixo.
Então o céu e eu estamos em aberta conversação,
E eu devo ser útil quando eu fimenticar finalmente:
Então as árvores talvez toquem-me depra vez, e as flores terão tempo pra mim.
§
§
Eu estou de pé traduzido para a
Lei Nº 13.620, de 16 de março de 2016, a lei antiterrorismo brasileira
5.
Eu é um ou mais prejuízo da tipificação penal
Consiste em hipótese em eu investigar ameaçar usar gases tóxicos.
Eu não é agente de reclusão cinco a oito anos
A receber ou fornecer treinamento contra a vida ou a integridade física de pessoa,
Para que cada eventual crime seja previsto fora ou dentro de instalações militares,
Não é também o mais único dos parágrafos
Com a finalidade de provocar terror social
Antes das instituições bancárias.
Distinto de eu, um agente de reclusão de cinco a oito anos é total
E o parágrafo, ainda que vetado, promove mais destruição em massa.
Hipótese de paz armada em um, de razões de discriminação no outro.
16 de março de 2016, contra qualquer constituição da liberdade
Os agentes de reclusão cinco a oito anos e os parágrafos são conceito de organização
[terrorista.
Eu ameaça municiar indivíduos, não investigam.
De modo temporário eu decreta explosivos nucleares
Eu é Estado.
Eu é Subchefia para Assuntos Jurídicos.
É mais natureza se eu ameaça usar gases tóxicos;
Regulamenta sem investigações
Será mecanismo quando ameaçar usar gases tóxicos.
Então os agentes de reclusão de cinco a oito anos serão levados ao conhecimento do
[Ministério Público, e os parágrafos, à Polícia Federal.
§
Eu estou de pé traduzido para a carta de suicídio de Torquato Neto
6.
De modo Q FICO
Ou não consigo acompanhar a marcha do progresso
Não sou uma múmia de saudades
Louca disparada com véu e grinalda
Para acordar e me contorcer em dores
Não peço amor de palhaços mesmo
Vivos, com o cacho de banana
Os cariocas do tempo de começar a ver
A múmia é SANTA
E os palhaços o favor de acordar
Chega de contorcer, chega de banana
FICO, ao sacudirem demais o Thiago,
As múmias e os palhaços feito a minha mulher
Guia de cegos
Vou ficando sossegado
O amor pode acordar
Pra mim chega!
De modo Q FICO
Não acredito em guia de palhaços
Empacotado enquanto dure
Ana e Thiago começaram a ver as dores do progresso.
§
Eu estou de pé traduzido para os itens “Cuidados gerais” e “Instruções de Uso”
do Guia do Usuário do fogão Esmaltec elétrico, 4 bocas, branco
7.
A criança dentro do fogão quebra por choque térmico
Mas deveria queimar a casa.
Não é metal pesado de cabos tensionados
Alimentando-se de mundo e solvente
Para a cada queimadura chamuscar a tampa de vidro
E também não é gás incolor
Fósforo branco, detalhando a espuma sobre a mangueira
A poucos passos da explosão.
Atrás da criança, o metal é todo acidente
E o gás, ainda que vazado, é mais manipulado –
A criança precisa ser uma mangueira metálica.
Cuidados gerais, instruções de uso,
O metal e o gás se instalaram à mesa.
A criança segue sem advertências.
Se a criança enfia a boca no alumínio, autorizada,
Encontrará a abertura –
A criança é um pano úmido.
É mais seguro se ela tem perigo
E os interruptores e os fósforos se comprometem.
A criança pressiona o botão do acendimento automático:
O metal prepara um choque, e o gás, a chama.
§
Eu estou de pé traduzido para verbete “Joanad’Arc”
de Homens e Mulheres da Idade Média
organizado por Jacques Le Goff, (trad. Nícia Adan Bonatti)
8.
Iletrada linguagem é tristeza
Mas ilumina estar sobressalto.
Não é um vilarejo inocente bom cristão
Mergulhado em Deus e armas sobrenaturais
Para que a cada guerra iletrada linguagem vença em Chinon
Não é o mais aflorado profeta
Desencorajado, aconselhado por maus espíritos
Antes da cura mitômana.
Contraste com iletrada linguagem, o vilarejo são vozes
E um profeta, mesmo desesperado, é mais cético,
Iletrada linguagem quer conselhos de um e desespero de outro.
1431, no cerco das nações,
Vilarejo e profetas espalharam seus arcanjos por todo o tribunal.
Não notam que julgam iletrada linguagem que fala.
Distúrbio papel mental natura a inação:
um naufrágio do desigual –
marionete do demônio.
É mais natural se iletrada linguagem está sobressalto;
Assim a iletrada e a miraculosa linguagem encontram mensageiro.
Iletrada linguagem será urgência se estiver sobressalto:
O vilarejo será arcanjo Miguel e o profeta catedral de Reims.
§
I am vertical traduzido para português-vogais
9.
Ae__eiau
â…aiuou…a.e…i…oiõau
ai.eóaee…ui.ai.uu.ieoiu
âiu…aieaue…óeiâ
oéiea.ai.eiiea…iuiea
pieai.eieâi.óaaeé
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eaiuaeuõ…oeií.â.e.óe.ai
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eíieeaue.éeii.eui.ei.uuoo
aiuauaoe…âoeoéaôii
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Um comentário sobre “I am vertical, de Sylvia Plath, em multitradução de Rafael Zacca”