Ao Kurnúgu, à terra sem retorno
(Descida de Ishtar ao Mundo dos Mortos)
Tradução de Jacyntho Lins Brandão
[1] Ao Kurnúgu, à terra sem retorno,
Ishtar, filha de Sin, seus ouvidos voltou,
E voltou, a filha de Sin, seus ouvidos
[4] À casa trevosa, sede do Irkalla,
À casa onde quem entra não sai,
À jornada da rota sem volta,
[7] À casa dos moradores privados de luz,
Em que pó é seu sustento, barro seu manjar,
Luz não podem ver, na escuridão habitam,
[10] Seus trajes, como de pássaros, vestimentas de penas,
Sobre as portas e ferrolhos camadas de pó.
[12] Ishtar à entrada do Kurnúgu quando chegou,
Ao guardião da entrada estas palavras disse:
Guardião, eia!, abre tua entrada,
Abre tua entrada e entre eu!
[16] Se não abres a entrada, não entro eu,
Golpearei a porta, os ferrolhos quebrarei,
Golpearei o batente e removerei as portas,
[19] Quebrarei o umbral e arrancarei a tranca
E subirei os mortos para comer os vivos:
Aos vivos superar farei os mortos!
[21] O guardião abriu a boca para falar,
Disse à majestosa Ishtar:
Estejas aqui, senhora minha, não derrubes!
Vá eu, teus ditos repita à rainha Eréshkigal.
[25] E entrou o guardião, disse a Eréshkigal:
Eis aqui: tua irmã Ishtar está à porta,
A que detém a grande corda, turba as águas defronte de Ea, o rei.
[28] Eréshkigal isso quando ouviu,
Como tamarisco colhido empalideceu-lhe a face,
Como a orla de um kúninu escureceram-lhe os lábios:
[31] O que traz seu coração a mim? O que moveu sua decisão pra mim?
Eis aqui: com os Anunnákki bebo água?
Em vez de comida, manjar de barro, em vez de cerveja, água turvada?
[34] Chore eu os moços que deixaram suas esposas!
Chore eu as moças que do regaço de seus maridos foram arrancadas!
O débil bebê chore eu, que não em seu dia foi despachado!
[37] Vai, guardião, abre-lhe tua porta!
E faz-lhe como nos ritos antigos.
[39] Foi o guardião, abriu-lhe sua porta:
Entra, senhora minha, Kutha te alegre!
O palácio do Kurnúgu regozije em face de ti!
[42] Uma porta fê-la entrar e, levando-a, ele tirou a grande coroa de sua cabeça:
Por que, guardião, tiraste a grande coroa de minha cabeça?
Entra, senhora minha, da senhora da Érsetu assim são os ritos.
[45] À segunda porta fê-la entrar e, levando-os, tirou os brincos de suas orelhas:
Por que, guardião, tiraste os brincos de minhas orelhas?
Entra, senhora minha, da senhora da Érsetu assim são os ritos.
[48] À terceira porta fê-la entrar e, levando-as, tirou as pedras preciosas de seu pescoço:
Por que, guardião, tiraste as pedras preciosas de meu pescoço?
Entra, senhora minha, da senhora da Érsetu assim são os ritos.
[51] À quarta porta fê-la entrar e, levando-os, tirou os broches de seu peito:
Por que, guardião, tiraste os broches de meu peito?
Entra, senhora minha, da senhora da Érsetu assim são os ritos.
[54] À quinta porta fê-la entrar e, levando-o, tirou o cinto de pedras-de-nascença de sua cintura:
Por que, guardião, tiraste o cinto de pedras-de-nascença de minha cintura?
Entra, senhora minha, da senhora da Érsetu assim são os ritos.
[57] À sexta porta fê-la entrar e, levando-as, tirou as pulseiras de seus braços e pernas:
Por que, guardião, tiraste as pulseiras de meus braços e pernas?
Entra, senhora minha, da senhora da Ersetu assim são os ritos.
[60] À sétima porta fê-la entrar e, levando-a, tirou a venerável veste de seu corpo:
Por que, guardião, tiraste a venerável veste de meu corpo?
Entra, senhora minha, da senhora da Érsetu assim são os ritos.
[63] E tão logo Ishtar ao Kurnúgu desceu,
Eréshkigal viu-a e em face dela tremeu.
Ishtar sem perceber ao lado dela sentou.
[66] Eréshkigal a boca abriu para falar,
A Namtar, seu administrador, estas palavras disse:
Vai, Namtar —-
[69] Solta sessenta doenças na majestosa Ishtar,
Doença dos olhos em seus olhos,
Doença de braços em seus braços,
[72] Doença de pés em seus pés,
Doença do coração em seu coração,
Doença de cabeça em sua cabeça,
Na totalidade dela solta doenças!
[76] Após Ishtar, senhora minha, ao Kurnúgu descer,
À vaca o boi não cobria, o asno à asna não emprenhava,
À moça, na rua, não emprenhava o moço:
[79] Dorme o moço em sua alcova,
Dorme a moça só consigo.
[81] Papsúkkal, administrador dos grandes deuses, curvou a cabeça, a face sombreou,
De luto vestiu-se, emaranhados os cabelos.
Partiu cansado, à face de Sin, seu pai, gritou,
À face de Ea, o rei, corriam-lhe as lágrimas:
[85] Ishtar à Érsetu desceu, não voltou,
E tão logo Ishtar ao Kurnúgu desceu,
À vaca o boi não cobre, o asno à asna não emprenha,
À moça, na rua, não emprenha o moço:
[89] Dorme o moço em sua alcova,
Dorme a moça só consigo.
[91] Ea, em seu sábio coração, concebeu um plano
E criou Asúshu-Námir, um prostituto:
[93] Vai, Asúshu-Námir, para a entrada do Kurnúgu volta a tua face,
As sete portas do Kurnúgu se abram à tua face!
Eréshkigal te veja e à tua face regozije:
[96] Quando o coração dela se acalma, suas entranhas abrandam,
Empenha-a pela vida dos grandes deuses,
Levanta a cabeça, para o odre os ouvidos volta:
[99] Ó senhora minha, o odre me deem, água de seu coração eu beba!
[100] Eréshkigal, quando isso ouviu,
Bateu na coxa e mordeu o dedo:
Fizeste-me um pedido que não devias,
Vem, Asúshu-Námir, amaldiçoar-te-ei com grande maldição:
[104] Pão das valas da cidade seja tua comida,
O esgoto da cidade, teu vaso de bebida,
A sombra da muralha seja o teu posto,
[107] A soleira da porta, o teu domicílio,
O bêbado e o sedento batam-lhe a face!
[109] Eréshkigal abriu a boca para falar,
A Namtar, seu administrador, estas palavras disse:
Vai, Namtar, bate em Egalgina,
[112] As soleiras decora com corais,
Os Anunnákki traze, em tronos de ouro senta-os,
Ishtar com água da vida asperge e põe-na a mim defronte.
[115] Foi Namtar, bateu em Egalgina,
As soleiras decorou com corais,
Os Anunnákki trouxe, em tronos de ouro sentou-os,
Ishtar com água da vida aspergiu e pô-la a ela defronte.
[119] À primeira porta fê-la passar e devolveu-lhe a venerável veste de seu corpo;
À segunda porta fê-la passar e devolveu-lhe as pulseiras de seus braços e pernas;
À terceira porta fê-la passar e devolveu-lhe o cinto de pedras-de-nascença de sua cintura;
[122] À quarta porta fê-la passar e devolveu-lhe os broches de seu peito;
À quinta porta fê-la passar e devolveu-lhe as pedras preciosas de seu pescoço;
À sexta porta fê-la passar e devolveu-lhe os brincos de suas orelhas;
À sétima porta fê-la passar e devolveu-lhe a grande coroa de sua cabeça.
[126] Se ela não te pagar o resgate, traze-a de volta aqui!
A Dúmuzi, esposa dela moça
Lava com água pura, unge com precioso óleo,
[129] Veste-o com vestimenta vermelha e que por ele toque a flauta de lápis-lazúli,
As meretrizes ergam sonoro lamento!
[131] Então Belíli arrancou suas joias,
Seu pescoço estava coberto de pedras preciosas.
Belíli ouviu o lamento por seu irmão, bateu no peito e soltou suas joias,
As pedras preciosas com que a face da vaca selvagem estava coberta:
[135] Não podes privar-me de meu único irmão!
O dia em que Dúmuzi suba e a flauta de lápis-lazúli e o anel de cornalina venham com ele,
Em que carpideiros e carpideiras subam com ele,
O morto suba e aspire o incenso!
Palácio de Assurbanípal, rei do mundo, rei da Assíria,
A quem Nabu e Tashmétum deram amplo entendimento.
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