André Capilé é um poeta brasileiro, nascido em Barra Mansa, Rio de Janeiro, em 1978. É graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre em Letras pela PUC-Rio. Doutor em “Literatura, Cultura & Contemporaneidade”, também pela PUC. Publicou rapace [2012 – Editora TextoTerritório] e balaio [2014 – 7Letras]; traduziu, para a Edições Macondo, “The Love Song of J. Alfred Prufrock” na coleção Herbert Richers. Estão no prelo: chabu e troco da passagem — ambos saírão pela editora TextoTerritório. Acabou de publicar muimbu pela Edições Macondo. Tem publicado textos esparsos em revistas e sites de literatura.
* * *
kuzuela
ó pássaro verdadeiro
ó pássaro sincero
papagaio ê!
seja bem vindo
gostamos de recebê-lo
mas não nos garantimos boas novas
os maridos ainda recusam a voz das esposas
os pais renunciam a voz de seus filhos
nossos avós saíram da raiz faz tempo
mas o tronco resiste apesar dos inventos
esta é a terra e o que se tornou
veja
estamos sempre prontos a nos repetir
viemos a esta terra
comemos desse esterco
em um mundo
que não devia ser tão espalhado
em um mundo
que se distrai por trair ser pacífico
em um mundo
que é apenas um lugar de mercado
uê papagaio uê!
será possível que se instale um vau
que se preciso atravessemos juntos?
e o que virá depois do salto, o óbvio?
de um lesa-majestade ouvi a prece
nem todos voltarão pra casa um dia
até que dê ciência a concha ao molde
é o estéril que engravida o caracol
viemos até aqui
agora chamamos de casa
ó há terra para todos
talvez devesse um elogio
que te fizesse mais feliz
ó há terra para todos
e me escutasse o que rezava
e respondesse cada reza
ó há terra para todos
é de lá meu papagaio
uê que espalha o mundo no lajedo
tão grande, tão poderoso
que não pode vencê-lo a calma
a violência de teu silêncio
quem ousar eiá eu vos digo
enxaguará as mãos pra comer terra
quem ousar eiá eu vos digo
entrará pelo duto ó cu dos céus
e quem ousar eiá que aproxime
mil e um passos contados pra trás
hoje não vou ousar ser tão rude com ele
são mais de mil passos à frente do rei
ó colorido com a tintura do açafrão
patrono dos tapetes sem tamanho
esta terra deve ser pacífica
esta terra deve ser prolífica
a terra deve ser boa pra nós
a terra deve nos favorecer
não botamos nossos ovos pra guerra
nós que somos testemunhas do luto
não merecemos castigo
não devemos ser roubados
papagaio ê!
venha ouvir nossas súplicas
papagaio ê!
prestamos homenagens ao senhor
ó pássaro verdadeiro
ó pássaro sincero
seja bem vindo
gostamos de recebê-lo
não ouça amanhã nossos gritos
não nos garantimos boas novas
§
ngana jila kaliban
em colaboração com Luiz Coelho
1
se aqui
há um inferno
duvido
só fui o que criei
2
acesso de todas
as portas
sou de todas
as cruzes
a passagem
3
que importa se
é verdade?
caminho qualquer caminho
4
um de muitos
também me chamam
guardião
5
acordam pra que coma
o que nunca dorme
se aceita a devoração
dos devotos não deixa
que o cariá
vos foda
6
o diabo prometeu
mas sou
quem recebe a oferta
e divide o dízimo
7
a cara
grande não
é maior
a máscara
do boca que tudo engole
os dentes duram
no osso largo que mastiga
8
nessa rua
cheia
algum deus
míngua
o ualuá cheiroso
o beijo
de nenhum deles
não
vale o mijo
da mula que cavalga
a noite
9
cada caveira que lamba
a própria caceta
ao passear os cães
na clavícula da madrugada
10
eu vim
naquela vez
não deu
11
voltei
mas dessa vez
deu ruim
12
virei
novamente
e não vai
ter volta
: vou comer
vocês tudinho
13
que batismo quê
ó dai-me um nome
o balanço dos dias
aqui não faz cadeira
ó boca que tudo engole
há pelo meio um certo?
inventei trabalho
correndo uns cafundós
dos cu de judas
nesses mundos de deus quem
em depois ideei salário
que pelo reto deu um desvio
a quê me serviu?
acorda cadáver
e dê logo paga à feira
essa que serve a qualquer um
§
kuenda
ao través da tradição
das mariinhas as marinhas
de mais uma vez
um arranque de toada a dixisa
tecida fora dos dedos
a divisa de uma penélope mendiga
tocada de sua toca à laia dos cães
e não há dúvida quê
entre sirenas a sombra kianda
extrapole a carne escamada
na espuma de kaiáia
a gambiarra do inútil dizer
que se dá melhor fora aos ouvidos
muimbus da um banda um
rito de muitos muitos à possessão
nós mútuos na música
de máxime muxima
kuxika tundundun
escuma de um carnaval antes da avenida
nessa rua que arrima as passagens
todas as passagens de que fomos
fome & travessia
de um mar que já dito reedite uma sempre
nova maresia da ginga de um kimbanda
que se mandinga muléke língua de dança
a dançar para ficar cá estamos
Um comentário sobre “Muimbu, por André Capilé”