Em Sangria, a poeta Luiza Romão, busca revisitar a história do Brasil sob a ótica de um útero. Para isso, o livro é dividido em 28 poemas/28 dias, como um ciclo menstrual. Alternando entre experiências pessoais e episódios históricos, a poeta costura uma narrativa labiríntica, a fim de decifrar a identidade brasileira. A história é conduzida pelo ponto de vista do corpo feminino. Os ciclos econômicos (borracha, café, ouro) se misturam com os ciclos biológicos e as fases do útero (ovulação, menstruação, concepção); o “país do futuro” se sintetiza numa gestação impossível (sempre interrompida por golpes de Estado ou “pílulas do dia seguinte”); a figura do patriarca é contraposta com as “mães solteiras” e as mulheres “para lida, para farra, para fotografias oficiais”. Com linguajar urbano, os poemas carregam fortes marcas de oralidade.
A edição é bilíngue (português e espanhol) e o prefácio foi escrito pela estudiosa Heloisa Buarque de Hollanda. O livro tem um formato quadrado (20x20cm) e abre para cima, retomando a forma de um calendário.
Além disso, cada poema é acompanhado por uma fotografia em preto, branco e vermelho. Como procedimento, o fotógrafo Sérgio Silva registrou partes do corpo de Luiza: seios, pernas, mãos, punhos, pescoço, boca, olhos, umbigo. Cada uma das 28 fotos foi impressa em tamanho 30×30 e costurada à mão pela artista. Materiais metálicos (correntes, talheres, fechaduras, pregos, espelhos) e barbante vermelho criam uma nova tessitura para as imagens em preto e branco. A anatomia é reinventada e o corpo se torna suporte de uma denúncia histórica.
SÉRIE DE VIDEOPERFORMANCE
É impossível desvincular a poesia de Luiza Romão da oralidade. Vinda de uma tradição de spoken word, sua escrita se completa na fala, no encontro com o público e com a cena. A fim de manter os ritmos, variações melódicas e intensidades vocais, sua obra navega constantemente entre publicações físicas (livros e antologias) e vídeo-poemas.
Em Sangria, essa pesquisa se radicalizou através da produção de uma série inédita de 28 vídeos-performances: todos os poemas do livro foram gravados em estúdio, e, posteriormente, um duo de baixo acústico (Vânia Ornelas) e percussão (Juba Carvalho) os musicou.
Além disso, o projeto convidou 28 mulheres de diferentes áreas artísticas (grafite, pintura, xilogravura, circo, dança, tecido acrobático, teatro de bonecos, bordado, teatro, intervenção urbana, linguagem de sinais, música) para participar: cada uma das artistas escolheu um dos textos e propôs uma performance. Durantes meses, essas intervenções foram criadas e filmadas, tendo como balizador estético a fricção entre campos do saber.
Dessa forma, Sangria se torna mais do que um livro de poemas ou uma iniciativa individual. É um trabalho coletivo e inédito, com mais de 50 mulheres envolvidas.
PREFÁCIO
[Por Heloisa Buarque de Hollanda]
Luiza Romão avisa logo de início: não purifiquem o meu sangue, não quero que limpem minhas veias. Minha sangria, eu mesma produzo.
Bem, estamos diante de uma poeta que quer atuar no limite. Melhor, no limite máximo. Da política, da linguagem, da performance subjetiva. Voltarei a esses pontos mais à frente.
Agora, quero falar sobre minha primeira sensação diante de Luiza e de sua poesia. Sinto Luiza como uma expressão absolutamente contemporânea da história e da cultura indignada e comprometida com a política estética desta segunda década do século XXI.
Luiza escreve e intervém hoje, sobre hoje. Atua com força e também com disfarçada delicadeza.
São várias as formas como este trabalho pode ser lido e sentido. Escolho o de uma estética militante, inovadora e radical. Em jogo, estão o corpo, a história e seus intérpretes e a falta de ar, num dos mais complexos momentos políticos do país. No fundo, um agitado jogo de sombras que projetam formas de colonização violentas e opressoras, perpetuando-se num eterno fluxo e refluxo.
O ritmo deste trabalho se cumpre a partir da lógica de um calendário que descreve, com diferentes intensidades narrativas, os 28 dias do ciclo menstrual que conduzem o óvulo a suas fases decisivas para a reprodução da vida: a gravidez ou a menstruação. É mais ou menos este o caminho de Sangria, que desliza em direção a um final incerto, que tanto poderá ser de construção ou de perda.
Foi assim que atravessei os poemas de Sangria.
A hipótese do projeto é perigosa. Difícil. Pode não dar certo.
Nas palavras da autora, “com este trabalho, procuro desvendar como a colonização, seus mecanismos exploratórios, repressões e golpes de estado, construíram sentidos do feminino, absolutamente silenciados e apagados”.
O caminho eleito foi o de ativar um processo de tecer contínuo (à moda das mulheres bordadeiras e tecelãs), entre o ciclo menstrual, ou seja, o organismo feminino a partir de sua potência reprodutiva e a revisita a episódios opressores da história brasileira. São 28 poemas/dias, revelações, ritos de passagem, insights políticos/históricos, dores, sangue. Sangria.
Já que sublinhei a forte presença do ethos político do período pós junho de 2013 correndo nas veias dessa poesia, alguns procedimentos se destacam. Inicialmente, chamo atenção para o trabalho artístico que utiliza prioritariamente o organismo/corpo da mulher, locus, por excelência, da manifestação e criação dessa nova geração feminista.
Esse mesmo corpo feminino, milenarmente construído e controlado por uma perspectiva e sensibilidade masculinas, que agora volta, vigoroso, como plataforma mais adequada para a expressão e o enfrentamento feministas.
(…)
Sangria não é apenas mais um livro de poemas, Sangria é um projeto literário sobre a História do Brasil vista pelas entranhas de uma feminista contemporânea.
Digo projeto, porque o grito que Sangria faz ecoar não se realiza apenas na páginas impressas deste livro escrito por uma atriz-poeta-performer. Qualquer verso aqui revela o desejo de saltar da página, pede som, pede movimento, pede imagem, pede, sobretudo, ação. Assim como a linguagem, a edição do livro também trouxe demandas de expansão. Temos intervenções, costuras, fotos e uma webnovela.
A poesia em diálogo com a performance e o livro em diálogo com outras mídias é um dos aspectos do que observei como o trabalho em Sangria no limite das linguagens e das categorias. Uma poesia que tira sua força estética de cruzamentos possíveis: a passagem destemida do lírico para a oralidade áspera, do cíclico para o mosaico, da palavra para o movimento, da palavra para a imagem. Contemporâneo. Inadiável.
Enfim, em Sangria, a nova poesia feminista se revela como um de seus melhores momentos.
4 POEMAS DE SANGRIA
DIA 1. NOME COMPLETO
eu queria escrever a palavra br*+^%
a palavra br*+^% queria escrever eu
palavra eu br*+^% escrever queria
BRASIL
eu queria escrever a palavra brasil
aquela em nome da qual
tanto homem se faz bicho
tanto bandido general
aquele em nome de quem
a borracha vira bala
a perversidade qualidade de bem
aquela empunhado em canto
atestada em docs
que esconde pranto
mãe do dops
eu queria escrever a palavra brasil
mas a caneta
num ato de legítima revolta
feito quem se cansa
de narrar sempre a mesma trajetória
me disse “PARA
e VOLTA
pro começo da frase
do livro
da história
volta pra cabral e as cruzes lusitanas
e se pergunte
DA ONDE VEM ESSE NOME?”
palavra-mercadoria
brasil
PAU-BRASIL
o pau-branco hegemônico
enfiado à torto e à direto
suposto direito
de violar mulheres
o pau-a-pique
o pau-de-arara
o pau-de-araque
o pau-de-sebo
o pau-de-selfie
o pau-de-fogo
o pau-de-fita
O PAU
face e orgulho nacional
A COLONIZAÇÃO COMEÇOU PELO ÚTERO
matas virgens
virgens mortas
A COLONIZAÇÃO FOI UM ESTUPRO
pedro ejaculando-se
dom precoce
deodoro metendo a espada
entre as pernas
de uma princesa babel
costa e silva gemendo cinco vezes
AI AI AI AI AI
getúlio juscelino geisel
collor jânio sarney
a decisão parte da cabeça
do membro ereto
de quem é a favor da redução
mas vê vida num feto
é o pau-brasil
multiplicado trinta e três vezes
e enterrado numa só garota
olho pra caneta e tenho certeza
não escreverei mais o nome desse país
enquanto estupro for prática cotidiana
e o modelo de mulher
a mãe gentil
§
DIA 10. 1a MASTURBAÇÃO
o erotismo é só a casca do meu peito
é muita lábia
pra pouco lábio
que oferece água
com três beijos sara
e se eu não quiser casar?
será eterna essa chaga
de carregar o ventre livre
e a carne viva?
mesmo quando intactos os joelhos
há algo que lateja pra além do útero
sei que assusta tanto erotismo envolvido
mas só te peço humanidade
“vem comigo”
deixemos os arcos do triunfo
o céu é suficiente pra quem tem boca
e entre tantas nenhum respiro
(minha saliva não é purpurina)
sou mais seiva do que água
apesar da anemia aparente
são camadas e camadas de células-vivas
camadas e camadas de paetê dourado
e se eu entrar
descalça na igreja
o vestido manchado de suor
celebraremos juntos o pecado de cada dia?
no pescoço
coleciono fraquezas
poemas pra não enforcar
uma corda (vocal) desafina enquanto visto armaduras
não há heroísmo em ser tantas
mulher-origami
sempre metade do esperado
eu rasparia os ossos até virar lança
mas falta gordura sob a pele
comeria blush como quem experimenta terra
mas perdi os dentes-de-leite
sabe
de todas as armas
(brancas ou não)
o espelho é a que mais dói
§
DIA 12. 1a PAIXÃO
você tem a delicadeza
de um açougueiro
que antes de fatiar
separa a carne do osso
sabe que os lábios
é a melhor parte
de uma mulher
que palavras moídas
causam indigestão
e que um coração
dura até dois meses
no congelador
você amacia peitos
e troca em miúdos
como quem esquece
cozinha lento
e me come de
boca fechada
você inteiro
é um pedaço
refolgado
de passado
(mal passado)
sabe de hormônios
em demasia
e assuntos carnais
você é minha
anemia
sangrando
gota-à-gota
na pia
carrega o sonso
de um bife de soja
ou de uma feijoada light
desfiado
te observo
atentamente
e mastigo
com prazer
mais uma cenoura crua
§
DIA 20. FADIGA
/sozinha
penélope desfia
desafia
(abutres, o filho, a multidão)
mas os deuses aplaudem ulisses
***