XANTO | Consciência do cadafalso (sobre ‘Últimos poemas’, de José Miguel Silva), por Pádua Fernandes

Últimos poemas (Lisboa: Averno, 2017) parece fechar um ciclo na obra de José Miguel Silva. Em seu primeiro livro, O sino de areia (Porto: Gilgamesh, 1999), incluiu alguns poemas a partir de filmes, indicando-os nos títulos. Da filmografia japonesa selecionada, interessava ao poeta “O último dos homens” (“Viver – A. Kurosawa”), um “abrigo” “Antes que da noite o lobo venha/ devorar o que nos resta.” (“O intendente Sanshô – K. Mizoguchi”), a volta impossível à pátria daquele “que na guerra/ ergueu uma pá/ para juntar/ a cinza dos vivos/ ao lume dos mortos.” (“A harpa birmanesa – R. Ichikawa”).

Esses poemas foram retomados, com pouca alteração, em Movimentos no escuro (Lisboa: Relógio D’Água, 2005), todo dedicado a esse diálogo com o cinema.

Naqueles poemas do século passado, a questão do tema do fim da sociedade ou do mundo se articulava a uma reflexão sobre a arte. Algo de semelhante ocorre no livro mais recente, Últimos poemas, por tratar de uma consciência do último, do fim: da literatura (a primeira metade) e da civilização industrial e da espécie humana (a segunda).

O título da primeira metade, “Pastéis que sobraram da festa e seria uma pena deitar fora”, indica de pronto que tratará dos restos monumentais da literatura. Autores como Gore Vidal e Proust são tratados com ironia algo condescendente, tom comum em José Miguel Silva; Gide (“o pujante pioneiro”) recebe uma interessantíssima homenagem, Ernst Jünger (“Era um homem para pegar/ num grão de areia e dividi-lo por dez mãos/ exigentes”) e Pound também (“muitas vezes nos deu guarida/ em sua casa”). No entanto, essa literatura não teria mais condições sociais de interessar ao grande público. Lemos em “Musa, sinceramente” este divertido passa-fora para a pobre inspiradora:

 

Pensas que estás no século XIX? Mais,
julgas-te capaz de competir com traficantes
de desejos, decibéis e abraços? […]

 

O autor declara a poesia derrotada de antemão pelos meios de entretenimento de massa.

A segunda parte, “Corredor da morte”, pressupõe a ideia de que a humanidade já está condenada por si mesma, e que “só podíamos seguir/ o planograma do genoma e perecer.” (“Fim”). O interesse de José Miguel Silva por assuntos da genética já passou por esferas mais privadas (“Um deslize do genoma/ soterrou-lhe o coração.”, escreveu em “Na feira do livro II”, de Ulisses já não mora aqui, livro editado originalmente em 2002). Desta vez, trata-se de uma catástrofe coletiva, da espécie. A condenação parece, nesta seção, abranger tanto a ordem biológica quanto a política, o que é reiterado em “Teatro político”, em que o teatro serve de excessivamente convencional metáfora para a mentira. O poema apresenta um rol de decomposições:

 

a bolha esburacada da democracia,

a corrente de facadas e suturas
a que chamamos progresso,
o beco sem saída da evolução.

 

O brilhante “Homem do lixo” imagina um faxineiro, o último a chegar à festa, e que tem o dever de varrer “o subproduto da embriaguez/ organizada”. Os foliões dormem, ele dança com a vassoura, tentando enganar-se que não está desiludido. Imaginamos que seja este o nosso tempo: chegamos para recolher o lixo da festa. No entanto,

 

Findo o trabalho, tem ainda tempo
para se apiedar dos vindouros,
que da festa não terão sequer notícia,
que nunca poderão participar
sequer remotamente em algo
tão aparentado com a felicidade.

 

As próximas gerações estarão ainda mais longe da felicidade, que hoje só pode existir como resíduo, que estamos a jogar fora. Nem os restos persistirão. Um tempo mais desesperançado, pois, do que o concebido por Carlos Drummond de Andrade em “Resíduo”, poema de A rosa do povo: “fica sempre um pouco de tudo./ Às vezes um botão. Às vezes um rato.”

As duas partes não são estanques: na segunda, “Misantropia à parte” é uma denúncia do público que não digere a poesia, público descrito nestes termos pouco lisonjeiros:

 

O aparelho cognitivo do porco não consegue digerir
a pérola. O porco, porque é porco e omnívoro,
come o que lhe dão: abocanha a pérola, engole
a pérola, fá-la viajar nos intestinos, devolvendo-a
depois à luz do dia. Com esse trânsito de merda,
o porco nada ganhou, e a pérola ainda menos.

 

A literatura está morta, este livro vem apenas “alegrar o velório” (“Lamento e exortação”), talvez não passe de “Mais um dia de estrume para roseira nenhuma” (“Parte poética”); o mundo está caminhando para estado semelhante (“não cabe/ mais ninguém na ratoeira do progresso industrial.”, diz em “Fala o director-geral”).

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A catástrofe está próxima, como em poema de Ulisses não mora mais aqui (Lisboa: & etc, 2002), “Estela funerária”, que termina com esta constatação: “caiu para o desastre,/ chegou à nossa frente.”

A dissertação de mestrado de Vitor Bruno Dantas Ramalhosa, Não sei se a culpa é minha ou de ninguém: a poesia política de José Miguel Silva (defendida em 2016 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto [clique aqui]), lembra que José Miguel Silva “prefere, ironicamente, ser um ‘desmancha-prazeres’ (título de um blog seu) que ‘não contribui para aligeirar o déficit na balança cultural’, mas que, ao invés, e tal como Alberto Pimenta, contribui com o que pode ‘para a lixeira cultural’.” Trata-se de uma alta comparação, eis que provavelmente nenhum outro autor português logrou desafinar tanto o coro nacional quanto o autor d’O discurso sobre o filho-da-puta.

Este livro, embora não seja tão dissonante assim, persiste na honrosa vocação de todos descontentes e eu também. Seu desencanto e nostálgico elitismo podem incomodar tanto setores das esquerdas quanto das direitas (veja-se esta gozação: “Como a formiga,/ o diamante, a bactéria, a água é cem por cento/ de direita, não acredita em nada, nem sequer/ no ciclo da água.”, trecho de “Põe os olhos na água”), e é certo que esses dois lados opostos do espectro ideológico podem ter muito em comum na defesa da sociedade da produção industrial, que Últimos poemas critica.

No entanto, o discurso racional e irônico, típico deste autor, tem tudo para agradar os leitores do descontentamento, que esperam, sem culpa, os próximos poemas. Afinal, neste verso de Últimos poemas encontramos uma característica da poesia: “O álibi do mal é fazer-se desejar.”

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