Estela Rosa é escritora, poeta e caipira, formada em Letras pela UFRJ. Teve poemas publicados na Revista Grampo Canoa, da Luna Parque Edições, na Revista Parêntesis, na iniciativa Mulheres que Escrevem e na Coletânea Prêmio Off Flip de Literatura 2017. Já colaborou também com textos para o Jornal RelevO, Revista Blooks e Ovelha Mag. Desde 2016, faz parte da iniciativa Mulheres que escrevem onde é curadora de textos e organizadora de eventos, realizando encontros mensais sobre mulheres escritoras no Rio de Janeiro.
***
Os figos
Sylvia Plath diz que é preciso
escolher um figo
Mas eu estranho
fico cabreira
Nunca soube escolher figos
Na minha época de pequena
havia a figueira centenária
da minha mãe
Bastava florescer e começava a guerra
A disputa, de início
era eu e minha mãe
verde e maduro
[Antes de madurarem figos viram compotas]
Por meus olhos úmidos
e pela glicose alta
minha mãe desistia dos figos
[Figos nunca foram uma questão de escolha]
E aí mais uma batalha
Os sanhaços
tão azuis, tão bonitos
me carregavam de culpa
Feito pequenas máquinas de devorar
eles escolhiam todos os figos
e eu qualquer figo maduro
Sem poder de escolha
eu defendia os sobreviventes
As armas eram
restos de tecido
retalhos costurados
bicos potentes
lanças na cara
No fim das contas,
as máquinas sempre vencem
e me restava só um figo
O que sobrava.
Então, Sylvia
nunca escolhi meu figo
minha escolha, silenciosa,
sempre foi desistir dos figos.
É que pra alguns, querida,
o que importa mesmo
é a batalha.
§
Um caroço de abóbora japonesa
Aprendi
que se você joga um saco de terra no vaso
é incontrolável que surjam pequenas folhas
plantas sem nome
diria minha mãe
é tudo mato
mas resolvi jogar terra em um vaso
e ali algumas sementes que iam pro lixo
não me preocupei
nada do que planto dá
não tenho interesse em fertilidades
mas aí brotou por entre o lixo
uma folhinha
puxei o mato
mas ele saía do caroço da abóbora japonesa
do purê de semana passada
ela ali crescendo
orientalíssima em meu vaso de lixo orgânico
minha última tentativa de gratidão
com o broto na mão
fiquei pensando nos mestres japoneses
e naqueles samurais de coquezinho
naquelas moças com pés cortados
sapatos de madeira
nos budas de porcelana
e aquela folha ali brotando
então é isso, não dá
não sei lidar com vidas pacientes
com essa folha japonesa
delicada rompendo o lixo
feito um hexagrama de i-ching
me ensinando a brotar
mas não dá
é poesia demais pra mim
logo eu que não sei meditar
§
Chá de Camomila
Quando pequena, existia a tara
por crianças Johnson&Johnson
que exibiam seus cabelos loiros
volumosos
cheios de propaganda na tv
por conta disso, as mandingas para cabelos loiros
me eram constantes
Eu não sabia que era pecado não ser loira
Naquela época
minha mãe exorcizava os piolhos
e o cabelo que escurecia a passos largos
na mandinga,
em cima da cama
ela polvilhava neocid
e depois me lavava com chá de camomila
e depois shampoo Johnson&Johnson para cabelos claros
Abafava os piolhos e meu cabelo acastanhado
Hoje, depois de anos
depois das desilusões com a mandinga
tenho pavor ao loiro e ao chá de camomila
agradecida
só não me queixo dos piolhos
que foram embora cedo
junto com a inocência dos bebês Johnson&Johnson
e meus cabelos loiros
§
Cecília
Não conheci minha avó materna
os laços com as mulheres
da minha família foram criados
entre mãe e filhas
no silêncio da casa
os passos traziam
histórias e copos
com xaropes centenários
para cessar
uma tosse que pedia atenção
as palavras misturadas
às gemadas e leite com açúcar
queimado no peito o chiado
iam se construindo
sussuros
sua vó estudou até a terceira série. gostava de ler. ela estudava com a gente os livros do ginasial. exigia de nós o que ela não pode. lia livros de História como quem lê jornal. e o jornal, ela não podia comprar. mas lia as notícias das folhas que embalavam o peixe do começo do mês. enquanto a panela cozinhava, ela lia aquele jornal que ninguém podia jogar fora.
de que importa o cheiro a quem prefere palavras?
e então, assim
nos sussurros da tosse
acreditei poder embalar a vida
com palavras
e só
mais tarde percebi
laços não precisam de nada
além de memórias
§
Aos 30
Ontem uma amiga me ligou
daquelas amigas que não se vê
há anos, quase parecem 30 anos
e ela me dizia, entrecortando assuntos
que a vida é mesmo uma sobreposição
que só se vê em partes e quando
nos damos conta dos horrores
que somos quando nos damos conta
dos horrores que somos há menos de
20 mil anos com o surgimento do
homo sapiens
sapiens
nos damos conta dos horrores que somos
e dos horrores que ainda seremos
da imensidão que achamos que somos
das perdas inestimáveis, das mudanças
extinções, somos os horrores que somos
porque somos homo sapiens sapiens
há menos de 20 mil anos não éramos
nada mais que coletores nômades
e morríamos na boca dos horrores
e me pergunto se ainda não somos
os horrores nômades que colhem
com a boca pequenas frutas pelo
caminho engolindo alguns sapos
pequenos insetos e desaforos
coletores de traumas humores
desesperos brilhos e horrores
os horrores que somos e nós
que brilhamos tanto que esquecemos
Outro dia uma outra amiga me disse
digitando com seus dedos nos horrores
evolutivos que nos permitem zapzap
poemas reflexões desabafos desolações
na tela de um aparelho feito por mãos
ainda escravizadas em algum lugar
porque somos os horrores que somos
homo sapiens sapiens
ela me dizia eu vou falar uma coisa
meio louca, mas as vezes acho
que só passando pelo o estágio de achar
a vida completamente insignificante
sem sentido, para poder chegar
ao estágio de achá-la significante
com sentido, porque nada importa
quantas frutas ela precisou coletar
ao longo de 20 mil anos para chegar
a essa conclusão? eu não sei
Minha mãe não fala coletar
nem colher, nem pegar,
ela fala apanhar
minha mãe ainda apanha
frutas do pé mesmo sendo
os horrores que somos
homo sapiens sapiens
ainda apanhamos,
pequenos insetos,
e um dia ainda vamos descobrir
que já apanhamos o suficiente
o horror dos coletores nômades
e que já achamos o suficiente
que apanhar era amor.
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Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.