6 poemas inéditos de Júlia de Carvalho Hansen

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Júlia de Carvalho Hansen (São Paulo, 1984) é poeta, astróloga e uma das editoras da Chão da Feira. Estudou literatura na Universidade de São Paulo e na Universidade Nova de Lisboa. Os poemas abaixo são de seu novo livro, ainda sem título. Já apareceu aqui no escamandro com poemas e entrevista.

***

POSSO

Posso te esperar a tarde inteira
atravessar você — o precipício
ou te chamar de Canyon
e colocar uns pássaros voando nele.

Posso te mostrar a parte de dentro
das coisas, da carne — posso me rechear
inteira de cuidados, lanças e perfumes
e desmontar à tarde todas as coisas.

Posso inventar-nos um desfecho
te chamar de ilha, charco, travessia
esquecer eu não posso — posso
dizer que eu irei me lembrar.

Posso perguntar pelo tempo
e assim conversaremos sobre o breu
normativo & inconstitucional desses dias
e de como não seremos derrotados.

Um pelo outro, talvez, não.

§

AMANSAR

Amansar a ideia de vê-lo
é o tecido dos meus dias
e eu me recubro totalmente

com este selo — esta companhia
podemos nos amar na distância
transcender o espírito largo

é o fosso que nos separa
e contigo estou — sempre — a um passo
do abismo escuto o eco dum graveto

quebrando lá embaixo o clique
pros meus ouvidos tão abertos é tão nítido
quanto o teu desejo de ficar comigo.

§

ROSAS

O amor me esquartejou em seis
continentes incapazes de se conter
o modo que eu morri
foi tão de repente

confesso fui eu que puxei seus dentes
antes e durante o entardecer tem rosas
nítidas e supérfluas sobre a mesa
purificando o meu espírito trôpego

foi-me dado um candeeiro um circo
ateando um chicote no lombo do acidente
eu me antecipo cada vez que vejo um poço
teu vitalício laço de fita nó de corda meu amor

a tua língua vale o que vale
teu ricochete, teus meandros
medos, usuras, os prevenidos
armários das famílias

abertos pelo caos nos guiamos
olhos mais longos que os de Lúcifer
moram nas suas coxas
quando me anteveem

marfim, colchão mole
água na boca
no tronco um portão
noite luz.

§

PARDAIS

Acordei com dois pardais dentro do quarto
se debatiam procurando o que não fosse vidro
radical em ser transparente e firme

eu causava sustos ao me aproximar
abri a janela
é o certo a se fazer com o que não se deixa tocar

no quintal caracóis imensos disputam
os restos de mamão que deitei aos passarinhos
bem cedo enquanto pedia beleza

suplicava por favor eu quero escutar
não é a primeira vez que numa ilha
meus ouvidos entopem

meu bisavô sofria do mesmo
não sei se ele escrevia, se visitava as ilhas
se perdeu como se perdem na terra

os homens têm tal mística com o mar
ser instável na sua regularidade
marulho salsugem saudade

entre as palavras que eu sei lembrar.

§

POÇA D’ÁGUA

Olhando bem pra dentro de você
o quanto você é difícil se espraia
dos seus olhos profundos ao buraco negro
seu íntimo me é tão completamente interditado

às vezes eu me pergunto
se aqueles que conheci antes de ti
não estavam a antecipar a estreia
que foi conhecê-lo naquele entreposto da vida

eu já tinha me estrepado o bastante
pra não pular em qualquer poça d’água
achando que era um abismo
eu naquela época andava numa distância

suficientemente segura dos abismos
tanto que já tinha inclusive esquecido
a capacidade do amor nos levar
aos precipícios, as precipitações ativarem

os respeitos, os conflitos, os desmedidos
impróprios imperfeitos instáveis
improváveis e no entanto sempre
perspicazes pertinentes acasos & motivos

de estarmos para sempre forever and ever
juntos de uma maneira jovem
nosso amor adolescente
se curva numa cambalhota

e nos remonta todos os dias
como quem sela o ânimo
e monta o vivo no invisível
atrela sua espora

como quem voltou a andar
a dizer e a concordar
em todos os tempos
o substantivo cavalo.

§

CÍLIOS

Entre nós a dimensão que importa
é o tamanho dos teus cílios
e como eles se curvam
conforme você ri ou se preocupa

eu estudo tanto cada gesto — cada passo
consulto tudo que eu posso
vejo sinais em tanto — colho indícios
contudo espero o instante

em que algo ou tudo pode sair do lugar
alguém quebrar os dois tornozelos
perder o timing do spaghetti
e o macarrão ficar molenga

ou uma abelha zunindo no cabelo
fascinada pelo açúcar no café
num acesso de vertigem
todo eu é ruidoso

porque eu vivo
e você também
e o que é vivo
se descontrola.

*

 

 

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