O último livro de Jorge Roque, Tresmalhado (Lisboa: Averno, 2016), mantém a forma do poema em prosa que caracteriza o autor, com o mesmo tipo de sujeito que observa a si mesmo ou aos outros com um tom amargo, na poética descrita em “Som rouco”, de Broto sofro (Lisboa: Averno, 2008, com pinturas de Guilherme Faria): “Ouviu um som rouco que lhe saiu da garganta, espécie de ronco de animal ferido. […] Desligou a música, abriu o caderno, e segurando o lápis, começou a escrever o som medonho que ouviu.”
Tresmalhado confirma também o intercâmbio de imagens entre vidas animais humanas e não humanas. Um animal capturado pode, com empenho e sorte, tresmalhar-se; o homem, se se reconhecer animal, pode fazer o mesmo e escapar? Não neste livro, onde os seres vivos estão cativos:
Não, por este andar não vou lá. E não vejo que outras pernas possa ter, nem que outro chão possa pisar. A cerca está erguida, o animal encurralado. Um quadrado perfeito, traçado a régua e esquadro, as estacas cravadas a intervalos regulares, a rede de malha estreita, devidamente presa e esticada, rigoroso ministério de quem sabe o que faz, sabe o que quer, não admite a falha.
O trecho vem do poema “Ida e volta”, um dos mais irônicos do livro, que trata dos escritores e do sistema literário, ou seja, de bestas que amam o cativeiro. Jorge Roque não dispensa esse tipo de imagem apenas a essa categoria, no entanto, ela é mais abrangente: “rendo-me à evidência, o estado português é um negócio de trocar porcos por chouriços. E como os porcos são escassos, esgotada a ruinosa criação, somos nós que tomamos o seu lugar, trocando vida, trabalho, justiça, por um chouriço.” (“Certificados de aforro”).
Não podemos deixar de lembrar, nesse passo, do livro escrito todo a partir de imagens da mesma espécie animal, Senhor porco (Lisboa: &etc, 2004), com textos de Roque e pinturas de Guilherme Faria, sobre que escrevi uma resenha para o extinto K Jornal de Crítica (disponível aqui). Algo similar à “condição de animal de criação na empresa desses quantos, cujo negócio é precisamente a classe privilegiada de que fazem parte” (“Um exemplar falhado da espécie”, poema de Nu contra nu, publicado pela Averno em 2014).
Entregam-se a destino semelhante os ratos do poema “Tresmalhado” do livro novo: “subterrâneos, diligentes, os despudorados servidores da oportunidade e do medo, comandados, claro está, pelos inescrutáveis senhores”. Tais seres que gozam da ou na servidão não possuem real companhia no cativeiro: a identidade do destino não associa os cativos. O poema “Coelho no tacho”, que alude ao apelido de um político e a um prato da culinária portuguesa, acaba numa fuga discreta, como se o locutor descrito, depois do instantâneo sucesso de sua piada no meio de um café, não fosse digno nem mesmo de pisar o chão depois disso. Nesse sentido, o tresmalhado é aquele que está separado dos outros e, por isso, não tem uma ação política, nem mesmo contra o político que é ironizado.
Hugo Pinto Santos bem escreveu que “Em Tresmalhado, sem se intentar fazer poesia política, a escrita está imersa no mundo. E, se não há um desígnio político, em sentido estrito — é sobretudo de ética que se deveria falar —, os dados da realidade são tematizados por um prisma que é também político.” (“Corpo político”, O Público, 23 jan. 2017, acesso aqui).
De fato, o livro não é bem-sucedido no poema que se apresenta como abertamente político, “Salmo dos novos velhos liberais”, com estas lamentações: “Meu Deus, meu Deus, porque me tiraste emprego, reforma, sistema de saúde e segurança social? São os novos velhos liberais, descobriram uma solução: riqueza para uns poucos, pobreza para quase todos, exclusão para os que estão a mais […]”.
Note-se que esses liberais se apoderaram do poder também no Brasil. Brasileiros, por sinal, poderão rir ou reconhecer-se em outro poema, que satiriza a “filha de pai português e mãe espanhola” que afirma “sou toda Europa, somente nasci no Brasil” (“Queen Margarete”). “Leis da humana física” realiza algo parecido, parodiando o discurso que defende o liberalismo como lei natural. Outro momento que deixa um sorriso encontra-se na primeira parte de “Inferno”, na fala imaginária ao sargento, não na imagem banal do “lasso e venal cu”, mas no fim, na lembrança de que ambos morrerão: “se vivesse a sua vida, como eu tento, como sem dúvida falho, mas falhando, encontro-me, retomo-me”.
Temos nesse ponto algo de mais geral. Na poesia portuguesa, ocorre há tempos o cruzamento entre o fracasso pessoal e o plano coletivo da história de Portugal, fazendo com que imagens do declínio da nação sejam transportadas para outros tipos, particulares ou privados, de malogro. A terceira parte de “Inferno” começa desta forma: “Sempre vivi num reduto, sempre fui uma míngua de terra encostada a um muro. Mas o reduto estreita-se, o muro já mal me deixa mover nesse espaço exíguo que foi quanto me habituei a esperar da vida e era, visto de agora, um lugar feliz, uma cara onde o sorriso cabia.” Se pensarmos no muro como a fronteira espanhola, está aí outra descrição, agora infeliz, do “Jardim da Europa à beira-mar plantado”, segundo o célebre poema de Tomás Ribeiro “A Portugal”.
Quando esse poema oitocentista foi escrito, o declínio de Portugal já era secular, e o Brasil estava independente há décadas. Tomás Ribeiro sabia disso, por isso exortou à “pátria”: “recorda ao mundo ingrato as priscas eras/ em que tu lhe ensinaste a erguer altares./ Mostra-lhe os esqueletos das galeras/ que foram descobrir mundos e mares…” É típico dessa época que o autor, a respeito do antigo colonialismo, lembrasse dos ossos metafóricos dos navios, mas não dos concretos restos mortais das vítimas nas terras invadidas, conquistadas e exploradas a custo de extermínio e escravismo.
Se lermos Roque em paralelo com Ribeiro, não podemos deixar de ver um gesto irônico no poema que segue a “Inferno” e conclui Tresmalhado: “Flash”. O poema recebe o título do nome de um peixe de aquário, “Pequeno e pouco combativo”, cuja comida era roubada pela carpa, e que “teve um AVC ou algo parecido”. Por causa disso, foi escolhido: “inepto, absurdo, votado ao fracasso”, somos “iguais a ele”, pois “O Flash, repito, tenta ainda.”
Do esqueleto das caravelas ao peixinho doente no aquário, quase um século e meio se passaram na história do imaginário poético português. Termino, de forma apropriada, voltando a “Inferno”:
A história perfeita de um falhado. O retrato concreto e exacto de um falhado. Sem o conforto da ironia ou a evasão da gargalhada. Sem tão pouco a consciência tranquila do esforçado trabalho e da pequena conquista, curso honesto de uma vida que, valer-te-ia isso, se valer pudesse, foste. Sem ao menos isso. Sem sequer. Com os olhos postos nesse erro, nessa falta, as órbitas vazias do rosto que falhaste tornado teu.
Pádua Fernandes