
O trabalho de Almandrade (1953, Salvador, Bahia) é, no contexto da poesia e artes visuais brasileiras, singular. Influenciado, de modo claro, pelo movimento de Poesia Concreta e sobretudo pelo Poema/Processo, Almandrade fez inúmeras peças que combinam vários modos de expressão literário-artística. Desde dos poemas visuais, publicados e expostos a partir dos anos 70, à pintura ou às peças escultóricas mais recentes, a sua voz interdisciplinar e, além do mais, descentralizada — e com isto me refiro à distância com que trabalha do eixo São Paulo-Rio de Janeiro — estende, independentiza-se e atualiza, de modo absolutamente original, os projetos sintético-ideogramáticos das vanguardas brasileiras do século passado. Deve ser, no entanto, analisada de dentro das vanguardas do século passado para fora; como, de resto, deverá ser lido qualquer poeta brasileiro(a) que, ao defender a ideia de poesia como totalidade ou união de todas ou quase todas as expressões artísticas, produz, apoiando-o ou rejeitando-o, desde do rasgo linguístico dos anos 20 e do poema pluridimensional das décadas seguintes.
Salvador, Brasil
Março 2018
Patrícia Lino
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Patrícia Lino: Pau Brasil (1925) de Oswald de Andrade é um dos primeiros livros de poesia brasileira a combinar texto e ilustração no mesmo suporte material. Diria que tal empreitada modernista foi fundamental para o seu trabalho?
Almandrade: Eu diria que foi fundamental ou exerceu alguma influência em iniciativas ou experimentações literárias posteriores que possibilitaram o desencadear do meu trabalho. O trabalho de um artista é resultado de um debruçar sobre trabalhos alheios, que outros realizaram e deixaram como legado para as gerações seguintes.
PL: Quando tomou conhecimento dos trabalhos do grupo Noigandres? Teve ou não impacto o movimento da Poesia Concreta no teu trabalho criativo? Se sim, em que medida?
Almandrade: No começo dos anos de 1970, entre 72 e 73. Para mim, que iniciava o curso de arquitetura, dividido entre a poesia e as artes visuais, a poesia concreta foi um achado. Foi um ponto de partida para encontrar uma opção estética. Da Poesia Concreta, me aproximei do Concretismo, Neoconcretismo, Poema/ Processo e Arte Conceitual.
PL: Foram vários os níveis de resistência que a Poesia Concreta teve, ao longo de várias décadas , de enfrentar. Como explicaria você isto?
Almandrade: Primeiramente a Poesia Concreta ficou restrita a São Paulo, influenciou a publicidade, o design e os sectores da música popular. Chegou mais tarde à academia. Nos últimos anos, ela vem-se destacando no mercado de arte e nas dissertações acadêmicas.
PL: Qual é a sua opinião sobre as tentativas neoconcretas mais experimentais (estou a pensar especificamente nos projetos mais arrojados de Ferreira Gullar; como, por exemplo, os seus livros-poema ou O Poema Enterrado)?
Almandrade: Depois do lançamento do Concretismo e da Poesia Concreta em 1956/57, surgiram duas tendências que divergiam do grupo paulista: Ferreira Gullar, que inaugurou com um grupo de artistas o Neoconcretismo. A experiência de Gullar é exemplar, aproximando mais ainda a poesia das artes plásticas. A outra tendência partiu de Wlademir Dias-Pino, em direção do Poema/ Processo.
PL: Pode contar-nos mais sobre a sua relação com o movimento do Poema/Processo? Como começou? Em que medida é fundamental até hoje para o seu trabalho criativo? Entre os trabalhos mais importantes do movimento, houve algum que o tenha marcado ou influenciado mais do que os restantes? Por que razão? Há, além disso, alguma divisão maior entre o que você fez naquela época e o que você faz agora?
Almandrade: Também no início de 70 tomei conhecimento do Poema/Processo e entrei em contato com o grupo, logo após a parada tática como movimento. Por ser um grupo mais aberto, estabelecemos um circuito de informações, via mail arte, participamos da corrente internacional. Nossos trabalhos circulavam e discutíamos nossos projetos.
A Ave [1953-56] de Dias–Pino foi sem dúvida o trabalho que mais chamou a atenção de todos nós, pelo seu investimento conceitual. Por assumir o poema como coisa física, a leitura depende do manuseio.
Entre o que fiz e faço hoje não há divisões, há desdobramentos, obsessões. Entre a poesia e as artes visuais, utilizo vários suportes obedecendo às suas possibilidades: poesia visual, desenho, pintura, objeto, instalação e escultura, mantendo sempre a singularidade de elementos plásticos e expressivos.
PL: No seguimento da pergunta anterior: encara o objeto poético como o esqueleto da matéria semiótica? É exigido ao leitor que participe ativamente, quase de modo performático, nos seus objetos poéticos?
Almandrade: O objeto poético é a base para desencadear um programa semiótico. A participação do leitor, primeiramente é cerebral, depois em alguns casos a intervenção física, a manipulação a exemplo do livro objeto.
PL: Pode o seu trabalho ser pensado à luz da seguinte afirmação? “O poema define-se como a união de todas as dimensões — bidimensional e tridimensional — e formas de expressão. A linguagem poética é interdisciplinar; além de verbal, ela é visual, escultórica, performática e sonora”.
Almandrade: O verbal e o visual surgem no plano ou no espaço, existem interações e complementações. Na união ou não de todas as dimensões busca-se alternativas de manifestação de uma poética.
PL: Em poemas como “SOL”, de 1974, exposto recentemente na Biblioteca Mário de Andrade (SP) pela Galeria Superfície, assistimos à transformação do discurso verbal (SOL — significante) em imagem (SOL — significante). É por termos acesso à palavra SOL que acompanhamos, sem questionar, a metamorfose inter-semiótica de um discurso no outro. Pergunta: é forçoso, pela indispensabilidade do código alfabético, ter acesso à palavra de modo a entender a imagem? Ou pode o código visual sobreviver por si e em si? O Almandrade tem trabalhos em que uma e outra opções são exploradas.
Almandrade: A leitura da visualidade deve sobreviver por si. Cabe ao espectador/ leitor através de seu repertório fazer a leitura ou interpretação que lhes parece conveniente. O autor tem suas referências e o espectador tem as suas.
No caso do poema SOL, a palavra sol (digital) cede lugar para o ideograma (analógico) e deste para o código icônico. Uma inter-semioticidade, a passagem de um código para outro. Claro que é possível outras leituras.

PL: Participou na exposição “Histórias da Sexualidade” (MASP, 2017, São Paulo) com duas peças, “HomeMulher” (poema visual de 1974) e “SEXOS” (poema visual de 1975). Pode falar-nos um pouco mais delas? Há uma relação direta entre ambas? O que o levou a produzi-las?
Almandrade: Em ambos são os opostos que se unem no plano do código, da linguagem.
Homem terminar com M e mulher começar com M possibilita essa experiência visual que provoca outras interpretações no campo do “real”, social, sexual…
“Sexos” é o X do problema que une, separa e divide, é o elemento significante de se e os. Foram pensados no contexto dos anos de 1970. O que me levou a produzi-las foi, em primeiro lugar, realizar um fazer no interior da linguagem.


PL: Como encara, no contexto do seu trabalho criativo, a performance e/ou a instalação?
Almandrade: Eu sempre trabalhei com diversos suportes, desde o final dos anos 70 que faço projetos de instalação, alguns realizados. Acho importante saber tirar partido do suporte e manter uma coerência em termos de linguagem artística.
PL: A escultura é fundamental para você. Parece-me que os objetos de pequenas dimensões (como aquele em que uma lâmina de barbear está suspensa por um fio dentro de um frasco e que a Hélio Oiticica pareceu “genial” [1979]), bem como os objetos de grandes dimensões (como a escultura incluída no acervo da Baró Galeria em São Paulo) partilham a linguagem estética dos seus poemas bidimensionais. Estou certa? A nível do processo criativo, quais são as semelhanças e as diferenças entre ambos?
Almandrade: A escultura é fundamental para mim até pela minha formação de arquiteto, trabalhar com o espaço é criar uma poética. Com relação aos poemas, são soluções ou problemas diferentes que têm pontos de convergência, o construtivo e o conceitual dialogam entre si. A diferença diz respeito às especificidades. Na escultura, entre o plano, o espaço e a cor, o corte e o encaixe são os estruturadores da tridimensionalidade.
Almandrade (Antônio Luiz M. Andrade)
Artista plástico, arquiteto, mestre em desenho urbano, poeta e professor de teoria da arte das oficinas de arte do Museu de Arte Moderna da Bahia. Participou de várias mostras coletivas, entre elas: XII, XIII e XVI Bienal de São Paulo; “Em Busca da Essência” — mostra especial da XIX Bienal de São Paulo; IV Salão Nacional; Universo do Futebol (MAM/Rio); Feira Nacional (S. Paulo); II Salão Paulista, I Exposição Internacional de Escultura Efêmeras (Fortaleza); I Salão Baiano; II Salão Nacional; Menção honrosa no I Salão Estudantil em 1972. Integrou coletivas de poemas visuais, multimeios e projetos de instalações no Brasil e exterior. Um dos criadores do Grupo de Estudos de Linguagem da Bahia que editou a revista “Semiótica” em 1974. Realizou mais de trinta exposições individuais em Salvador, Recife, Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo entre 1975 e 2018. Tem trabalhos em vários acervos particulares e públicos, como: Museu de Arte Moderna da Bahia, Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro), Museu da Cidade (Salvador), Museu Afro (são Paulo), Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Porto Alegre), Museu de Arte Contemporânea de Chicago ou Pinacoteca Municipal de São Paulo.
Patrícia Lino
Professora, poeta e artista visual portuguesa. É finalista do doutorado em Literatura Brasileira e Artes Visuais na University of California, Santa Barbara. Apresentou e publicou ensaios, artigos, poemas e ilustrações em Portugal, no Brasil, em Espanha, no México e nos Estados Unidos.