XANTO | Sem juízo nenhum: dívidas, vidas culpadas e a poesia de Lucas Matos, por Rafael Zacca

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Texto com pequenas modificações,
apresentado no simpósio
“Poesia contra polícia”,
organizado por Gustavo Silveira Riberiro
e Tiago Guilherme pinheiro,
na XV ABRALIC, em 2017.

 

A literatura se depara frequentemente com o problema da produção ou da exposição de uma vida. Isso diz respeito, inclusive, às artes verbais clássicas, entre as quais a épica se perguntava pelo valor de uma vida, a tragédia pelo destino de uma vida e a lírica pelo sentido de uma vida. Na indecisão entre produção e exposição, fica implícito o problema da relação da literatura com a vida mesma: escrever produz um corpo (isto é, presentifica uma vida) ou re-apresenta o seu valor, o seu destino, o seu sentido (isto é, aponta para a sua distância)?

É curioso notar como as práticas detetivescas, as artes verbais policiais, apostam na união das duas atitudes. A atitude investigativa aponta a distância de uma vida ao procurar e apresentar seus indícios (os do criminoso ou os da vítima) ao mesmo tempo que produz, com o mesmo gesto, essa vida: de forma suave, com a prática do retrato falado, por exemplo (cada vez mais realista e mais precisa com a ajuda das ferramentas de reconhecimento facial), e que tem no relato a distância e a produção de um rosto; ou violenta, com a prática do interrogatório e da tortura. O que é o mesmo que dizer que a polícia opera perseguindo indícios, uma operação que produz uma vida culpada.

De volta ao problema fundamental da exposição ou da produção de uma vida na literatura, o fato é que ele remete ao problema mais amplo da aparência e da essência, ou ainda, do corpo e da alma. Na poética da presença, a produção de um corpo, de uma materialidade qualquer, é valorizada, enquanto na poética dos indícios, a distância do mundo material aponta para a sua ausência na língua, e para a presença, nela, de seus valores. O seguinte poema, de Lucas Matos, atesta uma revolta contra o valor:

 

Depois de ler um livro sobre aprender a se amar e a se dar valor

me odeio às segundas
porque não sou magra
e me odeio às quartas
porque nunca tem
dinheiro para o aluguel
aos domingos me odeio
porque tenho preguiça
posso me odiar
nas noites de sábado
por muitos motivos

me odeio dormindo
me odeio desperta
me odeio tomando café
me odeio enquanto escovo
dentes cabelos pelos
da minha gata

me odeio muito
quando tenho cólica
me odeio na sala
na cozinha no quarto
já me odiei na cama
no sofá em cima da mesa
no lustre eu já me odiei
em todos os cantos da casa

às vezes me odeio por ler
livros sobre aprender
a se amar e se dar
valor se eu soubesse
me amar e me dar
valor eu não lia
eu me amava
eu me dava valor

 

O poema integra “A história de Marianne K.”, a primeira de três séries do livro Três semblantes. Trata-se da vida de Marianne K., uma mulher endividada, dividida entre momentos de estupefação e extrema lucidez, e que tem a sua história narrada a partir de poemas que misturam os registros épico, dramático e lírico. No entanto, Marianne K. mesma, seu corpo ou sua alma, sua aparência ou sua essência, não se apresentam. No poema “Perguntas que podem ser feitas por para ou sobre Marianne K.”, o leitor que procurar o caráter da personagem sairá de mãos vazias. Encontrará apenas perguntas como: “marianne k. nasceu no brasil? se sim que língua ela fala? ela fala? / marianne k. sabe distinguir as frases: ‘vou te mandar a real’ e ‘vou te mandar uns reais’? você pode explicar a distinção entre elas? / o rei pelé reina onde? o rei roberto? marianne é a rainha dos baixinhos? / mairanne k. se chama marianne k. porque antes dela vieram: marianne a., marianne b., marianne c., assim por diante?” O jogo cômico de chistes, como a brincadeira entre “o real” e “a real”, estabelece um espaço virtual entre o dinheiro e o juízo em que um defeito comunicativo se insurge contra a condição devedora ou culpada. Um jogo de semelhanças dos significantes aponta para a farsa dos significados.

O leitor não tem sorte, portanto, ao procurar o caráter de Marianne K.; também não encontrará qualquer coisa como um corpo. Na “Breve descrição de Marianne K.”, verá sentenças como: “se fosse um lugar no rio de janeiro se entrava em marianne / dobrando à esquerda no final do rio comprido / quando encontrar marianne diga oi piscando o olho esquerdo / aos sábados prefira o direito / marianne estudou direito dois meses na federal / se fosse uma droga diriam que marianne leva a outras mais pesadas”, etc. Marianne K., assim como as outras personagens do livro de Lucas, não nos é apresentada, não se aproxima do texto, nem é apontada por ele, de longe. O que se produz nesses poemas são “semblantes”, vagas e vazias fisionomias, cujos traços não podiam se distanciar mais do que chamamos de retrato falado; são, antes, falas retratadas, formas verbais em estado de enunciação.

Marianne K. não é uma personagem, é um semblante. Ela não nasce de uma caracterização, da construção, mais ou menos harmoniosa, de indícios que se comunicam em uma unidade. Ela se origina de um descontrole dos mecanismos de dívida e de culpa, que se comunicam na diversidade que produzem por meio do deslizamento dos significados nos significantes, por meio dos chistes, das piadas e das analogias. Não poderíamos inventar uma biografia de Marianne K., descobrir pai e mãe. Quando muito, podemos apontar qualquer parentesco com Kafka, não apenas pela cifra de seu sobrenome, mas também em sua condição de réu e em sua situação de fracasso.

 

Os correios

olha eu não sei te dizer como
olha eu não sei como te dizer
nos últimos meses eu recebi cartas
não eram postais não vinham
escritas a mão com dizeres como
aqui no porto a vida real
não é bonita
cartas não muito sucintas
cartas não muito extensas
os meses passando
nos últimos meses eu recebi cartas
uma atrás da outra
todas as cartas eu guardei

todas as quartas antes do café
acordo e digo
dia de botar ordem na vida
dia de botar essas cartas em dia (…)

eu e eu e não devia te dizer
os bancos não me amam mais
os bancos não me amam mais
eles não têm mais sorrisos
palavras polidas pra mim
se você visse o jeito
como os gerentes me olham

eu tenho quatro cartões
de crédito também
de plástico duro os cartões
com chips modernos
eu gosto de cartões de plástico
duro com chips modernos
eles são fáceis de usar
para comprar roupas
eles são fáceis de usar
para comprar comida e cigarros (…)

 

Em seus ensaios sobre Charles Baudelaire, Walter Benjamin expôs a relação entre punitivismo e a fixação dos traços que a fotografia proporcionou: “Para a ciência criminal, a invenção da fotografia foi um passo tão importante como a invenção da imprensa para a literatura. A fotografia permite, pela primeira vez, fixar os vestígios de uma pessoa de forma inequívoca e definitiva. O romance policial nasce no momento em que essa conquista acaba com o estatuto incógnito do ser humano. Desde então, não se sabe até onde poderão ir os esforços de prendê-lo às suas ações e palavras.” Podemos dizer que Lucas Matos produz uma antifotografia, que desprende os vestígios de um semblante, produzindo equívoco e sentenças contestáveis.

Com isso, rompe-se a condição de possibilidade das “evidências sensíveis”, isto é, a possibilidade de percepção homogênea do real. Os sentidos ficam livres para novas ficções: não é por acaso que todo o mundo de Marianne K. é construído sob o signo da dívida. Marianne chega mesmo a produzir teses, no livro, sobre a relação entre dívida e vida social, literatura, linguagem e mesmo cinema. Um acontecimento que é mero evento entre outros em uma vida ordinária – uma dívida com o banco, por exemplo – torna-se, na poética do semblante, o traço único de sua existência. Com isso, toda a vida passa a ser significada por um evento singular. Na história de Marianne K., o maior dos amores é construído a partir de relações de crédito:

 

Une chanson (Alô? Está me ouvindo?)

ninguém vai te amar
tanto quanto o seu credor
nem o pai nem a mãe
e os filhos se você tiver
vão te amar menos
vão amar sempre menos
ninguém vai te amar
tanto quanto o seu credor

a mãe está no hospital
e é para você que ele
liga no sábado de manhã
ninguém vai te amar
tanto quanto a esposa
mandou uma carta
para a amante tudo
parece ir para as
cucuias e é o teu
email que ele procura

ninguém vai te amar
tanto quanto o seu credor (…)

 

Trata-se de uma poesia política? A pergunta é insuficiente. Se por poesia política quisermos designar recursos de linguagem que denunciam uma injustiça social evidente, chegaremos à conclusão de que a poesia de Lucas Matos não é política. Suas enunciações não partem de qualquer evidência, mesmo que a propósito de injustiças. Trata-se, antes, de uma poesia que interfere diretamente em nosso sistema de evidências – e aí se encontra o seu coeficiente político. Sua ação não aponta para um mundo que os leitores não enxergam, mas desarticulam as estruturas de visibilidade e invisibilidade social, propondo uma interferência no que Jacques Rancière chamou de partilha do sensível.

Para Rancière, o estado policial se constrói juntamente com o consenso: polícia não é apenas a repressão armada, mas também a ficção de que existe uma continuidade entre os diferentes modos de percepção de um conjunto de pessoas. A ficção que prepara o consenso precisa homogeneizar a percepção coletiva, inventar a sua unidade, ignorar a descontinuidade entre os diferentes corpos que percebem os eventos, e, com isso, apontar para a evidência de determinados dados irrefutáveis do real. Uma poesia que quisesse, portanto, opor a essa ficção a evidência de injustiças “ignoradas” pelo leitor, apostaria na mesma lógica consensual da polícia – para Rancière, uma anti-política por excelência. A política acontece no rompimento do consenso, quer dizer, na instauração de um espaço de dis-senso, em que novas percepções interferem na ficção do real. É no dissenso que sensibilidades antes ignoradas podem trazer à visibilidade o que socialmente é ignorado pelo consenso.

A poesia de Três semblantes não apenas evita, como fura o “bom senso”, e é essa a função de seus delírios. Lucas não denuncia a injustiça do sistema de dívidas que afunda Marianne K., mas produz, a partir de um descontrole ficcional desse sistema, uma esfera de sensibilidade variada. É o que sugerem as diversas técnicas de equívoco produzidas pelo poema:

 

Delírio branco de Marianne K. (quando o mundo acabar só sobrarão as dívidas e as baratas)

galopo a dívida galopante
devo como se deve e cada vez mais
de modo devido em dívida
já não posso pagar
imposto
já não posso pagar
centavo
já não posso pagar
peitinho
todo meu corpo alguém emprestou
e peço mais e devo mais
mais como se deve dever mais
eles me emprestam mas eles não prestam
me prendem em juros
ninguém aceita juras
ninguém quer amor
em trocas não pago
cigarro – fiados
galopo a dívida galopante
juro a juros de todos por cento
dez mil anos não dava
para saldar
o país mais rico do mundo não bastava
para saldar
as dívidas bonitas
bichinhos que aumentam
de número sem que você perceba
encoste em uma são duas
tente beijar três são dez
as dívidas mais rápidas que meus olhos
tão mais velozes
que minha cabeça
galopo as dívidas galopantes
somos milhões milhões de mil
animais em dívida (…)

 

Se, em Rancière, o dissenso é produzido “por meio da intervenção de uma instância de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns”, na poética do semblante de Lucas Matos, o dissenso surge pela multiplicação do fracasso. Marianne K. está endividada, e mostra um mundo fracassado porque imerso em um sistema de credores e devedores. O fracasso figura como arquitetura do semblante, na mesma medida em que o sucesso é arquiteta do sujeito moderno.

Três semblantes tem dois outros títulos: “no meio da piada você percebe: ninguém vai achar graça” e “para cada sentença clara há um engano”; os títulos alternativos sinalizam não tanto para uma imagem, quanto para sentenças, cômicas ou sérias, enunciadas. Isso significa que os poemas não se propõem a desenhar retratos falados, mas mostrar falas retratadas, isto é, situações de fala suspensas, na mesma medida em que o semblante é menos um rosto que a situação de um rosto, e é muito mais o movimento das feições suspenso que os traços definitivos de alguém (diz-se, por exemplo, que alguém trazia um semblante severo, ou triste, ou amargo). Dizer isso, no entanto, ainda é dizer pouco: trata-se de falas estranhas, com uma dicção confusa, em outras palavras, um conjunto de enunciações desajuizadas. Trata-se, efetivamente, de uma rebeldia contra o sistema de valoração, e, por isso, uma espécie de crise da faculdade do juízo, que não só tenta atribuir valor como reconhecer distinções (mesmo que se trate de um jogo infinito das faculdades da imaginação e do entendimento, como propõe Kant). Dessa falha, ou mesmo falta, de juízo, nasce uma atitude infantil, na desarticulação sintática, na irrupção de perguntas primárias e no conjunto de pequenas piadas que fazem com que o texto se distraia, de certa forma, dos assuntos propostos pelos próprios poemas.

Todo o livro de Lucas é, de alguma maneira, uma preparação para o seu último poema, que, apesar de longo, vale a citação integral. Ele apresenta a doença do esquecimento personificada em rabino. No Rabi Al’zheimer todas as faculdades do entendimento e da imaginação estão escangalhadas, quebradas. Sem juízo nenhum, o distintivo policial se parte, e já não se pode dizer qual é o lugar de quem, nem apelar para a carteirada do “sabe com quem você está falando?” Sem juízo nenhum, a poesia se torna, mais uma vez, o sonho de uma suspensão do juízo, dos tribunais, da culpa e das dívidas.

 

O discurso do Rabi Al’zheimer a favor da distinção entre meninos e velhos

peço que os loucos se sentem à esquerda e os sãos se sentem à direita de quem sofre de depressão quem é bipolar peço a você caro sol meu bom e velho amigo se deite para que os que têm saúde pisem e mantenham pés secos sapatos limpos peço que os jovens e magros se façam macios para os joelhos gigantes dos velhos obesos pois é preciso separar o joio do trigo o canhoto do destro e se o sobrinho da noiva sentar no mesmo banco da máfia da família do noivo ou se um velho descansar ao lado dos jovens eles o levarão abaixo o mesmo se diz do contrário o menino que brinca entre adultos mais tarde escuta o avô a avó sussurrar no ouvido: você está tão bonito ah se eu fosse dez anos mais nova ah se eu fosse dois dias mais são uma vez deixaram um doido andar entre os de mente saudável e eis que ele logo se foi e se dispersou na multidão duas semanas passadas já não se notava de cara quem ele era estava com um jeito de andar comum as ideias bem postas o olhar poucas vezes mudava e o discurso era sensato exceto que no meio de uma conversa podia perguntar: por que você não me ama? por que você não me olha com os olhos que deita no pôr do sol nos dias de verão? você se lembra da época em que não se achava feio nas fotos? se lembra da época em que não se achava burro? se lembra da época em que não sabia de cor seus defeitos? duas semanas passadas qualquer um podia soltar no meio da conversa: e se eu te pedisse agora um beijo? por isso separar é preciso os loucos se vistam de verde os sãos de pelos de camelo os que desejam ser amados por favor à esquerda à direita os que perderam a razão à esquerda os que babam dormindo ou após arrancar o dente do juízo à direita à esquerda os que não lembram dos filhos à direita os que vão morrer sozinhos os que se sentem sozinhos à direita os tristes de coração à esquerda pois é preciso separar para que a mão esquerda não esteja no braço direito nem o pé direito no meio da coxa no peito da perna errada quando chegar a velhice cada coisa esteja em seu lugar e cada lugar em seu tempo certo como as peças de um grande mosaico em que um pedaço completa o outro e o que está em cima não se confunde com o que está no século quarto e o que está de viés não se confunde com o que está anil e o que está usando um anel não se confunde com o que está aqui vivo bem como as abelhas na colmeia ou as formigas sobre o cadáver de um boi ou um burro morto três tempos depois da morte uma cor dá luz à próxima por isso separar é preciso

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2 comentários sobre “XANTO | Sem juízo nenhum: dívidas, vidas culpadas e a poesia de Lucas Matos, por Rafael Zacca

  1. Adoro Lucas Matos, um poeta gigante, e um traço especial que me fala: ouço quando leio – evoé! **poeta xandu (Ratos Di Versos)

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