Anelise Freitas é poeta. Publicou Vaca contemplativa em terreno baldio (2011), O tal setembro (2013) e Pode ser que eu morra na volta (2015). Atualmente se dedica à produção editorial, docência e a revisão, tradução e preparação de textos. Os poemas abaixo são de Sozé, seu quarto livro e o quarto número da coleção Casa de Barro das Edições Macondo.
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recuperação do território ancestral
para Deborah Damasceno
a terra da gente uma bandeira levantada entre o azul da cor
quente entre o verde da natureza que te habita e o vermelho do sangue
que ora pinga entre as pernas enquanto bebe
o mesmo radical para selvagem e inimigo
a língua é o som da terra a terra
bem e mal contemplando o mesmo corpo
o universo cosmogônico do teu povo
e a tua forma de habitar
meu corpo baixo o teu corpo
e tua cintura desenhando o círculo
naquela posição eu conhecia
vênus em câncer um infinito ao
redescobrir o seio sob o laranja
a tua parte alaranjada que a língua fala
o corredor nos arrasta
a janela aberta
não há exploração
mas há dominação
a terra mexida na fricção avança
a tua boca miúda
§
as meninas
para Thalita Portela e Juliana Giese
faziam uma arma
com a mão
e apontavam para a têmpora
(mas sem disparar)
enquanto riam
as mãos descuidavam
as bocas tocavam
(mas sem disparar)
os dedos em forma
mas sem disparar
§
sunset memorial park
o barulho do teu corpo, ava gardner
a cada golpe ou distração da tua roupa o barulho que ela faz ao
toque dos braços no tecido grosso
editar esse rascunho doloroso
dos dias que passo com a tua voz
na minha cabeça e os
ouvidos interpelando algum sinal
quanto tempo ainda falta eu
me pergunto como o teu pé
levanta a essa altura e as
mãos fazem esse movimento
a negação é só mais uma fase
como quando nos olhamos
passou teu corpo naqueles segundos
como uma casa sem portas
ou um osso quebrado antes do mundial
§
o estudo do ritual em berlim
de Lisboa a Berlim
ainda não entendi por que saio
a casa para escrever
a casa é já bem velha
a imagem da fumaça entre a boca das meninas
como um subterfúgio
um interregno
Berlim com você
em uma tarde de verão
mostrando suas pernas
e os desenhos feitos a agulha
as filhas de Júpiter e Urano
organizando-se como a tempestade oval
com o mesmo diâmetro da Terra
estamos falando do maior planeta do sistema solar
composto de hidrogênio e hélio, Annie Hall
por que ainda falar do barulho
do som ensurdecedor de algum ponta de lança
a buzina, o paradoxo, a metanfetamina
por que ainda falar do barulho
que a língua faz com ela
e na busca pelo oriente ela
não sabe a forma que a especiaria dá
*
sobre sozé
[numa postagem do facebook]
Hoje encontrei este caderno. Eu tinha 12 anos quando Maria Rosa nos pediu um caderno pautado porque teríamos aulas pra escrever poesia. Foi ela e a Tanuse Fonseca, professoras de português da cidade do interior, que me fizeram querer ser também professora e escritora; não foi nenhum professor de universidade, nenhum poeta importante.
Hoje, na casa onde nasci e me criei, na casa onde velamos o corpo morto de meu pai, na casa onde minha mãe me deu as primeiras lições de feminismo, eu percebi que tudo que sou veio de casa, da casa da roça e do interior. Não me deslumbro com a cena cosmopolita de poesia contemporânea porque foi a cena do interior que me formou: as manhãs de aulas com mulheres incríveis, as noites de vinho na pracinha, os poemas lidos na casa da Rosi de Alcantara. Não me deslumbro porque sei que a cena e eu temos concepções distintas do que é
a poesia. Obrigada mulheres que me antecederam, pra vocês eu dedico esse “Sozé”, que nasce desse corpo do interior, desse corpo que escreve desde os 12 anos, desse corpo orgânico que pensa.
[Sozé será lançado na Casa do Desejo – Literatura que desejamos na Flip 2018, às 11h00 no sábado, 28/07.]
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