Guilherme Rocha Braga de Araujo nasceu em Botucatu, cidade onde reside, no
interior de São Paulo, em 08 de junho de 1988. É autor dos livros de poesia No Olho
do Furacão (2015), Ordinária (2016), O Livro de Lázaro (2016), O Caminho de
Volta (2017), Aqui (2017) e Carrancas (2019).
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PESADELO COM A INOCÊNCIA DAS MÃOS
as mãos, surdas às trombetas do fim,
lavam a louça sob os estalos de tiros.
não há sinais de melhora e, entretanto,
laboriosas, prosseguem as mãos.
compram e vendem o pão,
quebram os ovos, entregam o jornal,
tiram e embalam o leite.
é bem possível acordar de madrugada
surpreendentemente vivo
num continente pouco a pouco devastado
enquanto os mortos são jogados no mar.
§
TREM FANTASMA
o presente, vala clandestina
cheia de cadáveres palpáveis,
de cheiros inconvenientes
e total falta de humor,
o presente, que não deve ser tocado
sob pena de terríveis aflições
nem passa de um delírio atroz
com uma ligeira construção de carne,
o presente, que cada dia insiste
em derramar-se num abrir de olhos,
perpetuar-se após o próprio fim,
comer e incorporar todos os filhos,
o presente, que quando a noite acaba,
detestando o despontar do sol,
acorrenta-o, feito um grão de areia,
à fenomenologia da carência,
o presente, vulto de tantas patas,
teia grávida de tantos rostos, funesta
malha estendida entre toda superfície
ao longo de cada exíguo espaço,
o presente, que é a persistência
do passado, a recusa do futuro,
a depressão, o punhal teleguiado,
a verdade adaptada ao clima,
o presente, perigo real
mas o realismo é uma miragem,
olhos para diante, essa gente sabe ler
e não boia morta nesse rio,
o presente, carcaça pérfida
carregada de vísceras vazias,
de sapatos de crianças mudas
e seios murchos de mulher.
§
ASAS PRETAS
todo santo dia
sou condenado
a comer fígado:
sentir o gosto
da mesma víscera,
ouvir os gemidos
da mesma boca.
sou o maestro
de uma canção
atávica pairando
religiosamente
ignoto num espaço
que não obstante
é obra minha.
entretanto levo eu
crédito algum?
não, o concerto
é de Prometeu,
o abutre é apenas
um elemento
desencadeador.
nunca hei de tirar
de donzela alguma
um único suspiro
de consternação
por minhas penas:
deixo isso a esse
oboé de carne.
deixo isso a essa
tuba de sangue.
compareço sempre
ao mesmo horário
na mesma pedra.
considero isso
a minha função.