
PIVA (1937 – 2010)
Para ele, estar apaixonado era praticamente uma condição necessária para escrever, “a poesia é uma consequência da vida, um epifenômeno dela. É o que sobrou da paixão, é o que sobrou da orgia.” (PIVA, 2009, p.60). Ele certamente teria muito o que conversar com Leminski, que comenta que “Os hindus acreditam que os deuses criam este mundo por um excesso de ser. O que é um bom modelo para nossa humana e terrestre criatividade. Só por excessos se cria. Por uma exuberância.”
Uma experiência muito marcante na vida do escritor, que inclusive permeia toda sua obra e vai ganhando mais espaço nos livros posteriores, foi o primeiro contato que teve com uma prática de cunho xamanista, a piromancia. Conta ele que, aos 12 anos de idade, por meio de Irineu, um mestiço de índio com negro, experimentou pela primeira vez uma das formas do êxtase ao contemplar fixamente uma fogueira na fazendo do pai em Analândia, perto de Rio Claro, no interior de São Paulo. Estimulado por Irineu, Piva encarava o fogo até enxergar imagens e espectros fugazes. Já aos 24, em 1961, dois anos antes da publicação de Paranoia, Piva adquire o livro O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase (1951), escrito por Mircea Eliade, e com a sua leitura é “beneficiado pelo inconsciente coletivo que permeia a humanidade. Isso é a origem da poesia xamânica. É a origem da própria poesia na visão de Cortázar, Artaud, Octavio Paz, Mircea Eliade” (Ibid., p.149).
PARANOIA
Paranoia é um livro instilado de paixão transgressora, uma carta de amor virulento cujo destinatário é a cidade de São Paulo, ou seja, um poema do urbano contra o urbano. Falar sobre Paranoia é equacionar amor, êxtase, analogia, ritmo, correspondência. O ritmo da poesia de Piva é, eu acredito, da mesma ordem do movimento conforme descrito em “O Anus Solar” (1931), ensaio de Bataille, ou seja, existe em função de uma atração implacável, de uma paixão amorosa. Trata-se do ritmo amoroso.Os dois movimentos principais são o rotativo e o sexual, de combinação expressa
numa locomotiva de pistões e rodas.
Dois movimentos que se transformam um no outro, reciprocamente.
Assim notamos que a terra a dar voltas faz coitar animais e homens (e, como
aquilo que resulta também é a causa que o provoca), animais e homens quando
coitam fazem dar voltas à terra.
(…)
Um guarda-chuva, uma sexagenária, um seminarista, o cheiro de ovos podres, os
olhos cegos de um juiz, são raízes por onde o amor se alimenta.
Um cão que devora um estômago de pato, uma mulher bêbeda que vomita, um
guarda-livros que soluça, um frasco de mostarda, representa a confusão que veicula
o amor.
(1985, p. 12-13)
Tendo isso em vista, seguiremos com Bachelard “um método que nos parece decisivo na fenomenologia das imagens, e que consiste em designar a imagem como um excesso da imaginação”, onde “acentuamos as dialéticas do grande e do pequeno, do oculto e do manifesto, do plácido e do ofensivo, do fraco e do vigoroso” (1993, p.123). Ou seja, Paranoia, enquanto resíduo e “excesso da imaginação”, está menos para uma sequência de peripécias mirabolantes vividas e testemunhadas poeticamente sob a égide da noite, e mais para um desregramento da própria linguagem em associações inusitadas que explodem vigorosamente a partir do detalhe. Tal abordagem está no centro do programa do livro, a versificação enquanto forma de organização sistematicamente caótica não é nada menos do que o emprego pessoal de Piva da atividade crítico-paranoica de Dali.
Em 1929 Dali pesquisa os mecanismos internos dos fenômenos paranóicos, encarando a possibilidade de um método experimental baseado no poder imediato das associações sistemáticas próprias à paranóia; esse método iria tornar-se, em seguida, a sintese delirante crítica que tem o nome de “atividade crítico-paranóica”. Paranóica: delírio da associação interpretativa, comportando uma estrutura sistemática – Atividade crítico-paranóica: método espontâneo de conhecimento irracional baseado na associação crítico-interpretativa dos fenômenos delirantes. (1974, p.18-19)
Assim, o efeito que se pretende criar na versificação de Paranoia é do desocultamento infinito daquilo que transborda. Por meio do exercício da espontaneidade e das associações desregradas, a ideia obcecante entra em cena sem recorrer à linguagem linear e ao significado racional, fazendo o mundo do delírio passar para o plano da realidade através do processo de ressignificação do mundo e seus objetos.
A TRANSVISCERAÇÃO
A transvisceração é mais um processo do que um método, trata-se de cultivar gradualmente no próprio corpo a poesia, o corpo se torna poético ao se deixar atravessar por um corpo de poemas, neste caso, o livro de Roberto Piva e Wesley Duke Lee, Paranoia (1963). Assim, mergulhei profundamente no devaneio de cada imagem, poema a poema, deixando o punctum barthesiano das fotografias alucinadas de Lee me assombrar também, palavras animadas com meu próprio sangue, reverberando nas minhas entranhas e pulsando no ritmo de minhas vísceras comovidas, imprimindo cada poema no meu inconsciente e povoando meu imaginário com sonhos de andanças desvairadas pela noite; só então, pude recriar os poemas no idioma do meu próprio corpo. A transvisceração trata-se, portanto, de uma abordagem tradutória que privilegia antes de mais nada, o sensorial e o intuitivo em detrimento do racional, que privilegia a continuidade da palavra em relação ao corpo, pensando no poema como uma extensão da vida, uma secreção do corpo produzida por um excesso de vivência, mais especificamente, no caso de Piva, por um êxtase amoroso. Colocando a linguagem como evidência também, enquanto máquina desejante, máquina de estabelecer correspondências e analogias novas, de potencialidade tradutória, de ressignificação de símbolos e da realidade, de transformação da própria vida através do exercício imaginativo da visualização e performance. O poema de que falo é uma meditação que altera e expande a sensibilidade do eu, que faz esse eu sonhar e que faz a própria linguagem sonhar.
Por isso mesmo, a tradução de um poema como esse, também precisa passar invariavelmente por um movimento de êxtase antes de se fazer existente, brotando diretamente das vísceras, do âmago desse eu e tomando forma na medida em que se faz transbordar. A criação dos poemas de Paranoia foi esse transbordamento mental e é assim que deveria ser a sua tradução poética ao meu ver: linguagem viva que brota do corpo e mancha o papel revelando um abismo que se condensa em palavra, em canto, em visão, imagem e analogia. O poema é a ritualização da vida, é a imaginação agindo sobre a realidade, é o ato mágico que tem por finalidade orientar uma força oculta no sentido de uma ação determinada. A força oculta é o poder intuitivo e criativo; e a ação determinada, nesse caso, é o estímulo, a provocação e a comoção das vísceras a partir da própria palavra. É como se o poema tentasse devolver para a vida o que tirou dela para se fazer e se criar, a partir de sua própria substância: o desejo, o impulso violento, o movimento e o ritmo. Faço das seguintes palavras de Bachelard, as minhas próprias: “Quanto a mim, acolho a imagem do poeta como uma pequena loucura experimental, como um grão de haxixe virtual, sem cuja ajuda não podemos entrar no reino da imaginação” (2001, p.222).
PARA REPARO DE VÍSCERAS
A tradução de Paranoia deve engendrar, na minha opinião, uma espécie de inciação, a busca delirante por “aquilo que de fato sou”, busca que o livro de Piva representa de maneira tão singular. Nas palavras de Davi Arrigucci:
O delírio que acompanha o êxtase é a tentativa de ver mais claro, no cerne da noite, aquilo que de fato sou e quem sabe possa vir à luz. No fundo da sua própria obscuridade, o poeta, “incorrigível demônio”, caminha sem rumo pela cidade imaginária em busca de revelar o segredo que traz consigo mesmo. (2009, p.29)
Cabe aqui justificar e apontar a origem da minha proposta de tradução como reparo de vísceras: na minha analogia, a ossada, sendo o símbolo da fonte última da vida, a porção mais resiliente tanto do homem quanto do animal, seria a matéria a partir da qual a vida, ou seja, as vísceras, poderiam se reconstituir. A poesia é palavra encantatória que excita a carne pois roça o cerne do ser e é na medula óssea que são produzidas e renovadas as células do sangue, ou seja, o DNA, que contém nossa assinatura genética. O sangue, líquido quintessencial da vida que circula pelas vísceras, se produz e renova graças a medula óssea. Assim como os poemas se renovam com as traduções, e as línguas em estado elevado nos deixam vislumbrar a “língua pura”. Haroldo de Campos resgata o que Walter Benjamin havia dito sobre a tarefa do tradutor, ela consiste em “libertar na sua própria aquela língua pura, que está desterrada na língua estranha; libertar através da transpoetização, aquela língua que está cativa na obra” (2013, p.98). Em outras palavras, enquanto tradutor, devo libertar da língua que está contida no poema de partida, o esqueleto, a armação do ser do poema que delimita sua existência e justifica sua razão de ser.
Ora, a tarefa iniciatória do xamã é justamente se despir das vísceras, órgãos e toda carne, é preciso desnudar o esqueleto para que a partir da visualização extática da estrutura óssea seja possível, graças ao conhecimento adquirido pela sua contemplação, a reconstrução de um corpo novo e revigorado. Por trás de todo poema há um modo de intencionar, uma forma significante (Ibid., p.99) que suporta a informação estética: essa forma significante funciona exatamente como o esqueleto no ritual xamânico, a partir da nomeação mágica de cada osso na linguagem ritual (língua pura), é possível obter a visão plena do esqueleto, que é a chave para a manutenção da vida e da cura. As vísceras e os demais materiais orgânicos (palavras) se cristalizam ao redor dessa estrutura óssea (modo de intencionar) praticamente invisível para o não iniciado, porém ainda assim detectável.
A tradução nessa analogia é um reparo de vísceras nos dois sentidos do verbo reparar, o primeiro abrange a reconstrução e a recriação do poema por meio da mesma matriz (esqueleto/forma significante) a partir da qual as mentes que “ficaram sonhando” (em êxtase/intuição da língua pura) vão consumar o seu amor delirante na forma de uma “flor de saliva”, por exemplo; o segundo sentido do verbo “reparar” (notar, observar, perceber) está ligado à contemplação e nomeação do esqueleto em si, que é a investigação da forma significante que compõe o poema. Reparar o poema quer dizer significar e perceber seus mecanismos, desvendar sua linguagem, seus artifícios e funcionamentos, não é nada menos do que um exercício de crítica, de se enveredar pelos seus meandros e abrir no poema um caminho próprio, se equilibrando entre a materialidade do texto e a subjetividade daquele que se propõe a decifrá-lo. Foi do “Poema da Eternidade sem Vísceras” que retirei cirurgicamente o título da dissertação: “PARA REPARO DE VÍSCERAS”; pois a metáfora que ilustra meu processo tradutório é essa da transferência da dicção produzida pela persona de Piva que caminha pela noite paulista em Paranoia.
POEM OF ETERNITY WITHOUT VISCERA/POEMA DA ETERNIDADE SEM VÍSCERAS
PRAÇA DA REPÚBLICA OF MY DREAMS/PRAÇA DA REPÚBLICA DOS MEUS SONHOS
Francisco De Matteu entrou na UFPR em 2009. Na monografia estudo a “Canção de Mim Mesmo” (1855), de Walt Whitman com um traço chamado “merge”, que nada mais é do que o estado meditativo de transe induzido no eu-lírico através dessa canção que provoca o êxtase cósmico, assimilando toda uma nação e um continente e gerando as imagens do poema que são a jornada de expansão e fusão do eu lírico.
BIBLIOGRAFIA
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BATAILLE, Georges. O ânus solar. Tradução de Anibal Fernandes. Lisboa: Hiena Editora, 1985.
CAMPOS, Haroldo de. Transcriação. Organização Marcelo Tápia, Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Perspectiva, 2015.
DALI, Salvador. Sim ou a paranóia: método crítico-paranóico e outros textos. Tradução de Denise Vreuls. Rio de Janeiro: Editora Artenova S. A., 1974.
ARRIGUCCI, Davi. O cavaleiro do mundo delirante. In: PIVA, Roberto. Paranoia. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009.
PIVA, Roberto. Paranóia. Fotografado e desenhado por Wesley Duke Lee. São Paulo: Instituto Moreira Salles e Jacarandá, 2000.
____________. Roberto Piva: encontros. Organização Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azogue, 2009.