Luís Pedroso (Lisboa, 1977) é licenciado em arquitectura e vive em Lisboa. Publicou os livros Princesas Dianas & Anti-Heróis (ed. do autor, Lisboa, 2009), Romance ou Falência (Artefacto, Lisboa, 2014) e Importunar o Tempo à Fisga (Língua Morta, Lisboa, 2018). Os poemas abaixo são inéditos.
* * *
Edição especial
Ao retirar da caixa postal o auto de contra-ordenação
pergunto-me se estarei perante edição rara,
fac-similada e com exclusivo capítulo-extra
da morrinha oficiosa que paga imposto sobre o sal –
a misteriosa gabela
Neste desvalido zerocento,
serão outras as formas de se morrer insulso,
pois dá-se a bizarria de os negreiros agora se dizerem,
co’a breca!,
liberais
Do Sol – trezentos dias por ano, exultai,
só nos chega um (augusto, conceda-se)
sucedâneo
A fome é fortuna, dizem eles.
Também diziam que o trabalho liberta –
houve um homem que se afogou
ao beber um copo de água
Ar, água, sal e poesia –
para tocar, ainda que ao de leve
estes algarismos fundamentais da vida,
um destes dias
o mal-nascido nem pagando
§
Uma terra que mana leite e mel
Esta promessa revelou-se o isco decisivo
capaz de convencer todo um povo
à literal travessia, gerações afora,
do deserto
Hoje, num súbito relampejo
o meu olhar descrente encontrou nas alturas
a recompensa divina – na prateleira de cima,
shower gel de leite & mel
(embalagem grande)
À mísera distância de uma moeda,
tudo o que foi prometido
a quem um dia partiu
para Canaã
§
Paragem de autocarro
Em qualquer aldeia,
há sempre alguém que morreu
num acidente de mota ou samba de seringa
e alguém que chora sempre que vê
meia dúzia de minutos do Easy rider
E há a noção de que se está num fundilho,
cercania condenada a ser visitada
pelos autocarros mais velhos
que se desfazem em corrosão e vandalismos,
aqui à laia de Martim Moniz
de biqueira metida nas portas
de uma lambisgóia Lisboa
O importante é ter a clareza e a lata
e num futuro distante
defronte da Ronda da Noite
meter conversa e dizer
— Senhor Hopper, é você?
§
Onde o país encontra o futuro
Para o descrente lúcido
avaliar esta espécie de Shangri-lá ou Atlântida
resume-se a uma questão de janelas
Se aqui observamos o saltarico,
uma trágica alegria de potros,
acolá registamos o consolo da destruição,
a beleza de ir tudo raso
O luxo de ajustar a tela a pedido
e uma itinerante gratidão pelas mazelas
que acontecem sempre aos outros
E assim há quem opte
pela clareza de um quarto interior,
há quem veja a luz do mundo
através de um colar cervical
§
A armada invencível
Não por minha culpa, mas de meu cavalo,
aqui me vedes estendido
Cervantes
Assim, por letra de lei alheia
a quem foi dado sem olhar o dente
está encontrado o culpado
de todo o crime, cárie que enegrece
da raiz à coroa o bom-costume
e o insólito de estar dormindo
nas valetas da triste figura,
numa dulce beira de estrada
Os derribados e amadores
lembram-se de erguer o punho
e começar a cuspir a poeira
alojada numa vida de pulmões, amam
a derrota o desperdício enfim o coice
agarram-se como carraça
mas quando a montada desobedece
e estaca
são projectados campo afora
para o verso e rede-
moinho de uma morte certa,
são invencíveis
e por isso a aceitam sorrindo
§
Pouca-terra
Pouca terra ou muita muita,
quase toda transformada num enxugo,
agora só pó e pedra,
sobra de espiga ou erva seca
tudo tudo
Escrevo uma carta
endereçada a nomes vagos, os expulsos,
coloco-a em marco imaginário
e deixo o futuro cair
no restolho
Pouca terra: a memória de uma vida
colectiva atingindo velocidade máxima
em precipício
Que fazer, quando todas as solipas
estiverem feitas mesinha-do-café,
soalho rústico, bibelô?
§
Loja de ferragens
Os amputados sabem
descrever a dor fantasma
melhor que qualquer livro
e só eles podem confirmar
se sentiram frio
enquanto o membro repousava
em leito de escuro e gelo
Os despejados,
quinquilharia arremessada
para pastagens menos verdes,
sabem dizer
quando à casa chegou lume
e preferiam que não fosse metafórica
a sensação de orelha a arder
A fatal certeza
de nos faltar um bocado
assume muitas formas.
Talvez a melhor
seja a de uns tantos
parafusos
§
The misfits, 1961
Existe um tempo ausente, imensurável,
de quem está sentado de viés
ao seu posto de sempre na mesa,
olhando o silêncio, evocando o fugaz
e o tempo do que aguarda na culatra
Existe um tempo longo mas tão curto,
ocupado no arremesso de objectos
e apontamentos biográficos
para fora da vida e o tempo-instante
do esquecimento que é para sempre.
E um tempo ínfimo, esticado e repuxado –
descobriram, novinhos-a-estrear,
quarenta e cinco segundos de Marilyn nua,
provando que nunca se acaba
de despir um cadáver