Nicanor Parra nasceu em 1914 em San Fabián de Alico, próximo a Chillán. Em 1933 ingressa na Universidade do Chile, onde cursa matemática e física. Em 1937 publica seu primeiro livro de poemas, Cancionero sin nombre, ainda sob a influência de García Lorca. Em 1943, viaja para os Estados Unidos para fazer pós-graduação na Universidade Brown, onde estuda mecânica avançada, e a partir de 1945 passa a lecionar na Universidade do Chile. Entre 1949 e 1952 frequenta cursos em Oxford, quando trava contato com a poesia inglesa. Em 1954, de volta ao Chile, publica seu segundo livro, Poemas y antipoemas, até hoje considerado um marco da poesia sul-americana. A partir daí torna-se um dos poetas mais prolíficos do século XX, com uma obra que se estende por cerca de oitenta anos e compreende mais de vinte livros de poemas, como Versos de salón (1962) e Sermones y prédicas del Cristo de Elqui (1977), e uma série de antologias, exposições visuais, traduções e colaborações artísticas. Em 1969 publica Obra gruesa, reunião de todos os seus poemas escritos até então, e em 1972 lança Artefactos, uma caixa com os poemas-objeto que vinha desenvolvendo desde os anos 1960. Em 1985, época em passa a morar no balneário de Las Cruces, publica Hojas de Parra, com poemas escritos a partir de 1969. Em 2011 é agraciado com o Prêmio Cervantes, e em 2017 surge seu derradeiro livro, a coletânea El último apaga la luz. Faleceu em 23 de janeiro de 2018, aos 103 anos, na casa da família Parra em La Reina.
Os dois poemas abaixo foram tirados de Só para maiores de cem anos é a primeira grande antologia de Nicanor Parra a ser publicada no Brasil, com 75 poemas selecionados e traduzidos por Joana Barossi e Cide Piquet, pela Editora 34.
Joana Barossi é professora, editora e poeta. Estudou Jornalismo, Arquitetura e História da Arte, e é mestranda pela FAU-USP. Trabalhou com desenho de exposições e curadoria e escreveu textos críticos para artistas como Héctor Zamora, Marcelo Cipis, Lina Kim, Guga Szabson e Pablo Saborido. Contribuiu com as revistas Gagarin (Bélgica), Letras Libres (México) e Fórum Permanente (Brasil), entre outras. Foi editora do Projeto Contracondutas (2016), coordenadora editorial da 11ª Bienal de Arquitetura de São Paulo e professora convidada no workshop Travel School da Rhode Island School of Design. Atualmente leciona Arte e Arquitetura na Escola da Cidade, em São Paulo.
Cide Piquet nasceu em Salvador em 1977 e estudou Letras na USP. É editor, tradutor e poeta. Trabalha desde 1999 na Editora 34, atuando nas coleções de poesia e literatura estrangeira. Ministrou cursos sobre edição e tradução na Casa Guilherme de Almeida, na Universidade do Livro e no Curso de Editoração da ECA-USP, entre outros. É autor do livro de poesia malditos sapatos (2013) e da plaquete Poemas e traduções (2017). Publicou traduções de ensaios e poemas em antologias e revistas literárias, e traduziu os livros Histórias para brincar, de Gianni Rodari (2007), e Esta vida: poemas escolhidos, de Raymond Carver (2017, volume em que assina a organização).
* * *
Manifesto
Senhoras e senhores Esta é nossa última palavra — Nossa primeira e última palavra —: Os poetas baixaram do Olimpo.
Para os mais velhos A poesia foi um objeto de luxo Mas para nós É um artigo de primeira necessidade: Não podemos viver sem poesia.
Diferentemente dos mais velhos — E digo isso com todo respeito — Nós sustentamos Que o poeta não é um alquimista O poeta é um homem qualquer Um pedreiro que constrói seu muro: Um construtor de portas e janelas.
Nós conversamos Na linguagem do dia a dia Não acreditamos em signos cabalísticos.
E tem mais: O poeta está aí Para que a árvore não cresça torta.
Esta é a nossa mensagem. Nós denunciamos o poeta demiurgo O poeta Barata O poeta Rato de Biblioteca.
Todos esses senhores — E digo isso com muito respeito — Devem ser processados e julgados Por construir castelos no ar Por desperdiçar espaço e tempo Escrevendo sonetos à lua Por agrupar palavras ao acaso À última moda de Paris. Para nós, não: O pensamento não nasce na boca Nasce no coração do coração.
Nós repudiamos A poesia de óculos escuros A poesia de capa e espada A poesia de chapéu de aba larga. Por outro lado, propiciamos A poesia de olhos abertos A poesia de peito aberto A poesia de cabeça descoberta.
Não acreditamos em ninfas nem tritões. A poesia tem que ser isto: Uma garota rodeada de espigas Ou não ser absolutamente nada.
Agora sim, no plano político Eles, nossos avós imediatos, Nossos bons avós imediatos! Se refrataram e se dispersaram Ao passar pelo prisma de cristal. Uns poucos se tornaram comunistas. Bom, não sei se o foram de fato. Suponhamos que foram comunistas O que sei é o seguinte: Não foram poetas populares Foram veneráveis poetas burgueses.
Há que dizer as coisas como são: Apenas um ou outro Soube chegar ao coração do povo. Cada vez que puderam Se declararam em palavras e ações Contra a poesia engajada Contra a poesia do presente Contra a poesia proletária.
Aceitemos que foram comunistas Mas a poesia foi um desastre Surrealismo de segunda mão Decadentismo de terceira mão Tábuas velhas devolvidas pelo mar. Poesia adjetiva Poesia nasal e gutural Poesia arbitrária Poesia copiada dos livros Poesia baseada Na revolução da palavra Quando deveria se fundar Na revolução das ideias. Poesia de círculo vicioso Para meia dúzia de eleitos: “Liberdade absoluta de expressão”.
Hoje nos persignamos perguntando Para que escreveriam essas coisas — Para assustar o pequeno-burguês? Tempo perdido miseravelmente! O pequeno-burguês não reage Senão quando se trata do estômago.
Como vão assustá-lo com poesias!
A situação é esta: Enquanto eles defendiam Uma poesia do crepúsculo Uma poesia da noite Nós propugnamos A poesia do amanhecer. Esta é a nossa mensagem Os resplendores da poesia Devem chegar a todos igualmente A poesia é bastante para todos.
É isso, companheiros Nós condenamos — E isto, sim, digo com respeito — A poesia de pequeno deus A poesia de vaca sagrada A poesia de touro furioso.
Contra a poesia das nuvens Nós opomos A poesia da terra firme — Cabeça fria, coração quente Somos terrafirmistas convictos — Contra a poesia dos cafés A poesia da natureza Contra a poesia de salão A poesia da praça pública A poesia de protesto social.
Os poetas baixaram do Olimpo.
Manifiesto
Señoras y señores Ésta es nuestra última palabra — Nuestra primera y última palabra —: Los poetas bajaron del Olimpo.
Para nuestros mayores La poesía fue un objeto de lujo Pero para nosotros Es un artículo de primera necesidad: No podemos vivir sin poesía.
A diferencia de nuestros mayores — Y esto lo digo con todo respeto — Nosotros sostenemos Que el poeta no es un alquimista El poeta es un hombre como todos Un albañil que construye su muro: Un constructor de puertas y ventanas. Nosotros conversamos En el lenguaje de todos los días No creemos en signos cabalísticos.
Además una cosa: El poeta está ahí Para que el árbol no crezca torcido.
Este es nuestro mensaje. Nosotros denunciamos al poeta demiurgo Al poeta Barata Al poeta Ratón de Biblioteca.
Todos estos señores — Y esto lo digo con mucho respeto — Deben ser procesados y juzgados Por construir castillos en el aire Por malgastar el espacio y el tiempo Redactando sonetos a la luna Por agrupar palabras al azar A la última moda de París. Para nosotros no: El pensamiento no nace en la boca Nace en el corazón del corazón.
Nosotros repudiamos La poesía de gafas obscuras La poesía de capa y espada La poesía de sombrero alón. Propiciamos en cambio La poesía a ojo desnudo La poesía a pecho descubierto La poesía a cabeza desnuda.
No creemos en ninfas ni tritones. La poesía tiene que ser esto: Una muchacha rodeada de espigas O no ser absolutamente nada.
Ahora bien, en el plano político Ellos, nuestros abuelos inmediatos ¡Nuestros buenos abuelos inmediatos! Se refractaron y se dispersaron Al pasar por el prisma de cristal. Unos pocos se hicieron comunistas. Yo no sé si lo fueron realmente. Supongamos que fueron comunistas Lo que sé es una cosa: Que no fueron poetas populares Fueron unos reverendos poetas burgueses.
Hay que decir las cosas como son: Solo uno que otro Supo llegar al corazón del pueblo. Cada vez que pudieron Se declararon de palabra y de hecho Contra la poesía dirigida Contra la poesía del presente Contra la poesía proletaria.
Aceptemos que fueron comunistas Pero la poesía fue un desastre Surrealismo de segunda mano Decadentismo de tercera mano Tablas viejas devueltas por el mar. Poesía adjetiva Poesía nasal y gutural Poesía arbitraria Poesía copiada de los libros Poesía basada En la revolución de la palabra En circunstancias de que debe fundarse En la revolución de las ideas. Poesía de círculo vicioso Para media docena de elegidos: “Libertad absoluta de expresión”.
Hoy nos hacemos cruces preguntando Para qué escribirían esas cosas ¿Para asustar al pequeño burgués? ¡Tiempo perdido miserablemente! El pequeño burgués no reacciona Sino cuando se trata del estómago.
¡Qué lo van a asustar con poesías!
La situación es ésta: Mientras ellos estaban Por una poesía del crepúsculo Por una poesía de la noche Nosotros propugnamos La poesía del amanecer. Este es nuestro mensaje Los resplandores de la poesía Deben llegar a todos por igual La poesía alcanza para todos.
Nada más, compañeros Nosotros condenamos — Y esto sí que lo digo con respeto — La poesía de pequeño dios La poesía de vaca sagrada La poesía de toro furioso.
Contra la poesía de las nubes Nosotros oponemos La poesía de la tierra firme — Cabeza fría, corazón caliente Somos tierrafirmistas decididos — Contra la poesía de café La poesía de la naturaleza Contra la poesía de salón La poesía de la plaza pública La poesía de protesta social.
Los poetas bajaron del Olimpo.
§
Cartas do poeta que dorme numa cadeira
I
Eu digo as coisas tal como são Ou sabemos tudo de antemão Ou nunca saberemos absolutamente nada.
A única coisa que nos permitem É aprender a falar corretamente.
II
Todas as noites sonho com mulheres Algumas riem ostensivamente de mim Outras me acertam um golpe na nuca. Não me deixam em paz. Estão em guerra permanente comigo.
Me levanto com cara de trovão.
Do que se deduz que estou louco Ou pelo menos que estou morto de medo.
III
Custa bastante trabalho crer Num deus que deixa suas criaturas Abandonadas à própria sorte À mercê das ondas da velhice E das doenças Pra não dizer nada da morte.
IV
Sou dos que saúdam as carroças.
V
Jovens Escrevam o que quiserem No estilo que acharem melhor Já correu sangue demais por baixo das pontes Pra continuar acreditando — acredito Que só se pode seguir um caminho: Em poesia tudo é permitido.
VI
Doença Decrepitude e Morte Dançam como donzelas inocentes Ao redor do lago dos cisnes Seminuas bêbadas Com seus lascivos lábios de coral.
VII
Fica declarado Que não existem habitantes na lua
Que as cadeiras são mesas Que as borboletas são flores em movimento perpétuo Que a verdade é um erro coletivo Que o espírito morre com o corpo
Fica declarado que as rugas não são cicatrizes.
VIII
Toda vez que por alguma razão Tive que descer Da minha pequena torre de tábuas Voltei tiritando de frio De solidão de medo de dor.
IX
Já desapareceram os bondes Cortaram as árvores O horizonte está cheio de cruzes.
Marx foi negado sete vezes E nós continuamos por aqui.
X
Alimentar abelhas com fel Inocular o sêmen pela boca Ajoelhar-se numa poça de sangue Espirrar na capela-ardente Ordenhar uma vaca E derramar-lhe o próprio leite na cabeça.
XI
Das nuvens do café da manhã Aos trovões da hora do almoço E daí aos relâmpagos do jantar.
XII
Eu não fico triste facilmente Para ser sincero Até as caveiras me fazem rir. Cumprimenta-os com lágrimas de sangue O poeta que dorme numa cruz.
XIII
O dever do poeta Consiste em superar a página em branco Duvido que isto seja possível.
XIV
Só com a beleza me conformo A feiura me causa dor.
XV
Última vez que repito a mesma coisa Os vermes são deuses As borboletas são flores em movimento perpétuo Dentes cariados dentes quebradiços Eu sou do tempo do cinema mudo.
Fornicar é um ato literário.
XVI
Aforismos chilenos: Todas as ruivas têm sardas O telefone sabe o que diz Nunca perdeu mais tempo a tartaruga do que quando tomou lições da águia.
O automóvel é uma cadeira de rodas.
O viajante que olha pra trás Corre o sério perigo De que sua sombra não queira segui-lo.
XVII
Analisar é renunciar a si mesmo Só é possível raciocinar em círculo Só se vê o que se quer ver Um nascimento não resolve nada Reconheço que me caem as lágrimas.
Um nascimento não resolve nada Só a morte diz a verdade A poesia mesmo não convence. Nos ensinam que o espaço não existe
Nos ensinam que o tempo não existe Mas seja como for A velhice é um fato consumado.
Seja o que a ciência determinar.
Me dá sono ler os meus poemas E no entanto foram escritos com sangue.
Cartas del poeta que duerme en una silla
I
Digo las cosas tales como son O lo sabemos todo de antemano O no sabremos nunca absolutamente nada.
Lo único que nos está permitido Es aprender a hablar correctamente.
II
Toda la noche sueño con mujeres Unas se ríen ostensiblemente de mí Otras me dan el golpe del conejo. No me dejan en paz. Están en guerra permanente conmigo.
Me levanto con cara de trueno.
De lo que se deduce que estoy loco O por lo menos que estoy muerto de susto.
III
Cuesta bastante trabajo creer En un dios que deja a sus creaturas Abandonadas a su propia suerte A merced de las olas de la vejez Y de las enfermedades Para no decir nada de la muerte.
IV
Soy de los que saludan las carrozas.
V
Jóvenes Escriban lo que quieran En el estilo que les parezca mejor Ha pasado demasiada sangre bajo los puentes Para seguir creyendo — creo yo Que solo se puede seguir un camino: En poesía se permite todo.
VI
Enfermedad Decrepitud y Muerte Danzan como doncellas inocentes Alrededor del lago de los cisnes Semidesnudas ebrias Con sus lascivos labios de coral.
VII
Queda de manifiesto Que no hay habitantes en la luna
Que las sillas son mesas Que las mariposas son flores en movimiento perpetuo Que la verdad es un error colectivo Que el espíritu muere con el cuerpo
Queda de manifiesto Que las arrugas no son cicatrices.
VIII
Cada vez que por una u otra razón He debido bajar De mi pequeña torre de tablas He regresado tiritando de frío De soledad de miedo de dolor.
IX
Ya desaparecieron los tranvías Han cortado los árboles El horizonte se ve lleno de cruces.
Marx ha sido negado siete veces Y nosotros todavía seguimos aquí.
X
Alimentar abejas con hiel Inocular el semen por la boca Arrodillarse en un charco de sangre Estornudar en la capilla ardiente Ordeñar una vaca Y lanzarle su propia leche por la cabeza.
XI
De los nubarrones del desayuno A los truenos de la hora de almuerzo Y de ahí a los relámpagos de la comida.
XII
Yo no me pongo triste fácilmente Para serles sincero Hasta las calaveras me dan risa. Los saluda con lágrimas de sangre El poeta que duerme en una cruz.
XIII
El deber del poeta Consiste en superar la página en blanco Dudo que eso sea posible.
XIV
Solo con la belleza me conformo La fealdad me produce dolor.
XV
Última vez que repito lo mismo Los gusanos son dioses Las mariposas son flores en movimiento perpetuo Dientes cariados dientes quebradizos Yo soy de la época del cine mudo.
Fornicar es un acto literario.
XVI
Aforismos chilenos: Todas las colorinas tienen pecas El teléfono sabe lo que dice Nunca perdió más tiempo la tortuga Que cuando tomó lecciones del águila.
El automóvil es una silla de ruedas.
Y el viajero que mira para atrás Corre el serio peligro De que su sombra no quiera seguirlo.
XVII
Analizar es renunciar a sí mismo Solo se puede razonar en círculo Solo se ve lo que se quiere ver Un nacimiento no resuelve nada Reconozco que se me caen las lágrimas.
Un nacimiento no resuelve nada Solo la muerte dice la verdad La poesía misma no convence. Se nos enseña que el espacio no existe
Se nos enseña que el tiempo no existe Pero de todos modos La vejez es un hecho consumado.
Sea lo que la ciencia determine.
Me da sueño leer mis poesías Y sin embargo fueron escritas con sangre.
SEGUES A TUA ESTRELA, embaixo, além-nuvens, o fulgurante mergulho no subcéu interior.
Teu ovário está lindo,
são quatro novos folículos em posição, feno e berço da hipótese deposta à tua porta,
bem-vindas
as quatro estrelas subterrâneas abrilhantando a noite possante de teu ventre
em cripta.
§
VACILA O DIA. A chama, refugiada em ti, vela sobre a maçã descorada do coração.
Enoitece. Confiscada, a fé, em débito por quem cambia nada por nada em radiante apostasia, cintila, cintila ainda sob a asa imantada do cristo- prepúcio — a oração florescendo da carne, estrela e anúncio te procuram, em vão.
Dobra o coração.
Pede.
§§§
O próximo livro de Age de Carvalho, ainda sem plano de publicação, leva o instigante título De-estar, entrestrelas. Carregando a semântica da expressão em língua inglesa “from the stars” para esse “de-estar”, convoca o idioma do outro, na tradução-apropriação, ao interior do seu, no corpo-a-corpo com a língua, nela inventando várias outras, em sua contração e expansão, como o desenho das nuvens no céu — pois são o céu e as estrelas o motivo central desses poemas inéditos.
Ou, em linguagem mais clássica, o Firmamento e as Plêiades. Clássica porque, também aqui, Age recorre a certas leituras presentes em seus livros anteriores: Safo, Catulo, Dante. No momento o livro ainda é work in progress, mas já conta com cerca de 50 poemas, dois deles apresentados aqui em primeira mão na escamandro.
O primeiro poema inicia uma ascese invertida em mergulho ao céu/útero da mulher. Subvertendo os sinais, o mergulho é interno e para baixo, engendrando um outro céu, à semelhança-diferença do que guarda nossas cabeças, expondo um firmamento de folículos/estrelas, pulsante fulgor a postos para a fecundação. Uma voz narrativa intromete-se no texto, elogio a esse céu interior, dando tom informal à densidade lírica do poema. O céu é também berço — manjedoura remetente ao nascimento do infante-mor, sempre ressurgido a cada nova criança, o milagre do Cristo vindouro a cada renovada Noite de Reis. Redourada a questão sobre nascer, renascer. Mas este céu é também berço-cripta — a potente imagem central do poema —, berço do ser ainda não nascido, pura conjectura, expectativa silente da hipótese-mundo que bate à porta e sela o destino.
As estrelas subterrâneas — imagem poderosa que acende este ovário-poema todo luz — iluminam, guiam, a galope, ao possante receptáculo-cripta: igreja que acolhe o ato dos amantes, berço subterrâneo de uma possibilidade ainda não nascida.
O segundo poema trata das coisas inexplicáveis do fervor. “Vacila o dia” introduz a atmosfera e o espírito do que é dito. Quando é que o dia vacila? Não é ele e sim o sujeito quem vacila, na dúvida, na descrença, no dilaceramento interno, no cansaço da vida, que quase se apaga, junto à vela (que no poema é verbo e substantivo simultaneamente).
A chama da vela estremece. Como o coração. A violência branda da escrita desvia a violência do fim último e torna a passagem do tempo mais suportável.
No poema, a fé, confiscada, quase morta, tenta ainda resistir, cintilando, vinda da carne, ameaçada a todo instante. E que, por isso, vacila. Em relação ao deus? À existência? A uma mulher? O coração é descrente, a fé confiscada: no deus, no amor, na vida? A parte enlutada do poema diz: “cambiar nada por nada”, que a ironia da “radiante apostasia” vem aumentar.
Lembranças de Clarice: “Chego à altura de poder cair, escolho, estremeço e desisto, e, finalmente, me voltando à minha queda, despessoal, sem voz própria, finalmente sem mim – eis que tudo o que não tenho é que é meu. Desisto e quanto menos sou mais viva, quanto mais perco o meu nome mais me chamam”.
E mesmo o “cristo-prepúcio”, no momento de tensão em que o discurso parece querer se dessacralizar, traz ainda a marca da fé, na imagem mais expressamente cristã de todo o poema.
O verbo “Enoitece” levanta a pergunta: por que ‘e’ e não ‘a’? O dicionário diz: “Enoitecer: tornar escuro, cercar de trevas, escurecer”. E diz mais: “Enlutar, entristecer”. Vacila o dia: de amor e de luto. De quem sofre, de quem se despede.
A oração que floresce da carne é sempre profana; a carne ora, mas constata o anúncio de uma busca vã. Vencido, o sujeito dobra o coração e pede. O que, pode-se crer, seja enfim chance e redenção.
Mayara Ribeiro Guimarães
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Abaixo vão imagens do livro Age de Carvalho: todavida, todavia, publicado recentemente, que reúne a produção de AC nos campos da poesia, do design gráfico e do jornalismo cultural, contando com vasto material iconográfico. O livro foi organizado por Mayara Ribeiro Guimarães e editado pela Secult/PA. Até o momento, só pode ser comprado em Belém, mas, em breve, à venda também na Livraria da Travessa, no Rio.
Gary Snyder é o mais conhecido expoente norte-americano da poesia da vida selvagem, do ambientalismo e do Zen Budismo. É considerado herdeiro da escrita natural de Walt Whitman e Henry David Thoreau e seu estilo simples e imagístico revela as influências de William Carlos Williams e Ezra Pound. O poeta, que nasceu em São Francisco, EUA, em 1930, descende dos pioneiros que marcharam para o Oeste, desbravando novas fronteiras em busca de prosperidade e aventura. Seus ancestrais “exterminaram o puma e o urso-cinzento”, mas ele trilha um caminho diferente. Desde jovem, desenvolveu uma forte reverência pela natureza. A proximidade com mamíferos, insetos, árvores, rios e montanhas, observados sob uma ótica familiarizada com estudos sobre nativos norte-americanos e culturas orientais, constitui não só a matéria de sua poesia e ensaios, mas também seu estilo de vida. Snyder é outro tipo de pioneiro, um que se move em direção à conexão perdida entre o homem e a natureza.
O poeta cresceu em uma família que conheceu a severidade da vida no campo, mas que também teve a oportunidade de aprender a trabalhar em um ambiente bastante autossuficiente e de produção variada. Em casa, cercado de literatura socialista, era encorajado pela mãe a ler. Sua infância foi ainda marcada pela proximidade com os índios Salish e seus rituais e crenças. Todas essas lembranças ressoam em uma instância peculiar dos escritos de Snyder: a necessidade de transformar a sociedade por sua relação com a natureza. Seus versos ilustram esse desejo de igualdade entre as pessoas e entre pessoas e animais.
Snyder graduou-se em antropologia e literatura enquanto ocupava-se de uma série de atividades junto à natureza, como lenhador, marinheiro e guarda florestal. Estudou japonês e chinês e tornou-se tradutor desses idiomas. Em 1955, participou da leitura na Six Gallery em São Francisco que inaugurou o movimento Beat. Em 1956, deixou os EUA para uma residência de 12 anos na Ásia, a maior parte no Japão, onde imergiu na prática zen budista. Em 1959, publicou seu primeiro livro de poemas, Riprap. Snyder voltou os EUA em 1969 e construiu uma casa no sopé setentrional de Sierra Nevada, onde ainda vive. Desde 1985, leciona na Universidade da Califórnia, Davis.
A poesia de Snyder não é puramente intelectual, mas sobretudo empírica, pois deriva de sua experiência imediata junto à natureza selvagem. Seus poemas apresentam traços confessionais derivados de seu estado de contemplação haicaística diante da natureza, de sua ligação emocional com lugares e animais e de sua preocupação com o meio ambiente e o amadurecimento da sociedade no sentido de se aproximar do mundo natural. Os poemas seguintes e outros foram reunidos com um conjunto de ensaios na edição Turtle Island, que venceu o Prêmio Pulitzer em 1975. Turtle Island (Ilha da Tartaruga) é um nome antigo do continente norte-americano resgatado por Snyder ao nomear sua coletânea escrita entre 1969 e 1974.
André Mendo é graduado em Estudos Literários de Língua Inglesa pela UFPR, onde apresentou a monografia Um conselho de aldeia de todos os seres: a animalidade em Turtle Island, do poeta Gary Snyder, donde foram tiradas as traduções abaixo.
* * *
Anasazi
Anasazi, Anasazi,
Enfiados nas fendas das falésias cultivando estreitos campos de milho e feijão afundando cada vez mais na terra até o quadril nos Deuses sua cabeça coberta por penas de águia & relâmpagos pelos joelhos e cotovelos seus olhos cheios de pólen
o cheiro de morcegos o sabor de arenito sorriem na língua
mulheres dando à luz ao pé das escadas no escuro
córregos gotejando em cânions ocultos sob o deserto móvel e gélido
cesta de milho olhos arregalados bebê vermelho na casa na borda da pedra,
Seis da manhã, Sentado no cascalho de escavação junto ao zimbro e as trilhas desertas de S.P. interestadual 80 não muito longe entre caminhões Coiotes–talvez três uivando e latindo de uma elevação
A pega em um ramo Inclinou a cabeça e disse
“Aqui na mente, irmão Azul turquesa. Eu não te enganaria. Sinta o cheiro da brisa Veio por todas as árvores Não precisa temer O que está por vir Neve nas montanhas a oeste Estará lá todos os anos Fica tranquilo Uma pena no chão– O som do vento–
Aqui na Mente, Irmão Azul turquesa”
§
Linhas de frente
A borda do câncer Dilata contra a colina–nós sentimos uma brisa fétida E ela afunda de volta. O inverno do cervo aqui Uma serra elétrica rosna no desfiladeiro
Dez dias úmidos e os caminhões de toras param, As árvores respiram. Domingo, o jipe tração 4 rodas da Companhia Imobiliária traz Os especuladores de terras, olheiros, eles dizem À terra Abra as pernas.
O estrondo dos jatos sobre nossas cabeças está OK aqui; Cada pulsar podre no coração Nas veias gordurosas e doentes da Amerika Empurra a borda mais perto–
Uma escavadeira que brita e remenda Desliza e cospe fumaça em cima Dos corpos esfolados de arbustos ainda vivos No pagamento de um cara Da cidade.
Atrás é uma floresta que vai até o Ártico E um deserto que ainda pertence aos Piute E aqui devemos desenhar Nossa linha.
§
Mãe Terra: suas baleias
Uma coruja cintila nas sombras Um lagarto ergue-se na ponta dos pés, respirando pesado O jovem pardal masculino estica o pescoço grande cabeça, observando–
A grama está trabalhando ao sol. Torna-o verde. Torna-o doce. Para que possamos comer. Cultivam nossa carne.
O Brasil diz “uso soberano dos Recursos Naturais” Trinta mil tipos de plantas desconhecidas. As pessoas reais vivas da selva vendidas e torturadas– E um robô de terno que vende uma ilusão chamada “Brasil” pode falar por eles?
As baleias giram e reluzem, mergulham e assoviam e sobem de novo, Suspensas sobre profundezas sutilmente escurecedoras Fluindo como planetas que respiram Em espirais espumantes de luz viva–
E o Japão sofisma com palavras em que tipos de baleias eles podem matar? Uma antiga grande nação budista pinga metilmercúrio como gonorreia no mar.
O cervo de Père David, o Elaphure, Vivia nos charcos de junco do rio Amarelo Há dois mil anos–e perdeu seu lar para o arroz– As florestas de Lo-yang foram desmatadas e todo o lodo & A areia escorreram, e se foram, até 1200 AD–
Gansos Selvagens chocados na Sibéria seguiam para o sul sobre as bacias do Yang, o Huang, o que chamamos de “China” Em voos eles usaram um milhão de anos. Ah China, onde estão os tigres, os javalis, os macacos, como as neves do passado Desaparecidos em uma névoa, um clarão, e o chão seco e duro É o estacionamento para cinquenta mil caminhões. SERÁ homem o mais precioso de todas essas coisas? –então, vamos amá-lo, e seus irmãos, todos aqueles Desaparecendo, seres vivos–
América do Norte, Ilha da Tartaruga, tomadas por invasores que fazem guerra contra o mundo. Podem formigas, moluscos, lontras, lobos e alces Levantem-se! E afastem suas dádivas das nações robóticas.
Solidariedade. As pessoas. De pé. Pessoas árvores! Pessoa pássaro voando! Pessoas do mar nadando! De quatro pés, de duas pernas, pessoas!
Como pode o cientista político cabeça-pesada com fome de poder Governo dois mundos Capitalista-Imperialista Terceiro-mundo Comunista macho baralha-papel não-fazendeiros milionários burocratas Falam pelo verde da folha? Falam pelo solo?
(Ah Margaret Mead . . . às vezes você sonha com Samoa?)
Os robôs argumentam como distribuir nossa Mãe Terra Para durar um pouco mais como abutres batendo as asas Arrotando, gorgolejando, ao lado de um Alce moribundo.
“No outro lado, está deitado um cavaleiro morto– Vamos voar até ele e comer seus olhos com um down derry derry derry down down. “
Uma coruja cintila na sombra Um lagarto levanta na ponta dos pés respirando pesado As baleias giram e reluzem mergulham e Assovia, e sobem de novo Fluindo como planetas que respiram
Nas espirais espumantes
De luz viva.
Estocolmo: solstício de verão 40072
§
Ninguém deve falar a um caçador habilidoso sobre o que é proibido pelo Buda
–Hsiang-yen
Uma raposa cinza, fêmea, quatro quilos um metro de comprimento com a cauda A pele do dorso esfolada (Kai nos lembrou de cantar o Shingyo antes) pele gelada, enrugada; e o cheiro almiscarado misturado com o corpo morto começando a cheirar.
Conteúdo estomacal: um esquilo-terrestre inteiro bem mastigado mais um pé de lagarto e em algum lugar do interior do esquilo-terrestre um pedaço de papel alumínio.
O segredo. e o segredo escondido lá no fundo disso.
Fogo é uma velha história Eu gostaria, com um útil senso de ordem, com respeito pelas leis da natureza, de ajudar minha terra com uma queimada, uma quente e limpa queimada. (as sementes de manzanita só abrirão depois que um incêndio ocorrer ou uma vez espalhada por um urso)
E então seria mais como, quando pertencia aos índios
Antes.
§
O Caminho do Oeste, subterrâneo
O cedro-dividido salmão defumado dias nublados do Oregon, florestas espessas de abeto.
Cabeças de UrsoNegro colina acima No condado de Plumas, fundo redondo escorrendo pelos salgueiros–
A Mulher do Urso move-se costa acima
onde arbustos de amoras vagueiam nos regatos.
E ao redor da curva das ilhas Vulcões brumosos em direção ao norte do Japão. Os ursos & lanças de peixes dos Ainu. Gyliak. Curandeiro com visão de cogumelos Tambor plano sozinho de muito antes da China.
Mulheres com tambores que voam sobre o Tibete.
Seguindo as florestas a oeste, e rolando, seguindo a savana rastreando ursos e cogumelos, comendo bagas todo o caminho. Na Finlândia por fim tomou um banho: como a Tenda de Suor de sequóia no Klamath– todos os finlandeses em mocassins e chapéus pontudos com manchas brancas, urtigas, armadilhas, banhos, cantando de mãos dadas, enquanto
gangorrando em um banco, uma visão de amor–
Karhu-Bjorn-Braun-Bear
[clarão arco-íris grande nuvem árvore diálogos de aves]
Europa. ‘O Oeste.’ os ursos se foram exceto Brunhilde?
ou as deusas mais antigas mais selvagens renascidas–vão correr as ruas da França e da Espanha com armas automáticas– na Espanha, Ursos e Bisão, Mãos Vermelhas com dedos faltando, Labirintos de cogumelos vermelhos; labirintos relâmpagos, Pintados em cavernas,
Subterrâneos.
§
Os mortos ao lado da estrada
Como um grande Falcão-de-cauda-vermelha veio deitar–todo rígido e seco– na margem da Interestadual 5?
Suas asas para leques
Zac esfolou um gambá com a cabeça esmagada lavou a pele em gasolina; ela pende, curtida, na tenda dele
Cozido de alce no Halloween atingido por um caminhão na rodovia quarenta e nove oferecer farinha de milho pela boca; esfolá-lo.
Caminhões de toras circulam com combustível fóssil
Nunca vi um Guaxinim até que encontrei um na estrada: tirei a pele dele e deixei as unhas dos pés as solas das patas, o nariz e os bigodes; está de molho em água e sal salmoura de ácido sulfúrico;
ela será uma bolsa para ferramentas mágicas.
O Veado foi aparentemente baleado de comprido e pelo lado ombro e o flanco de fora a barriga cheia de sangue
O outro ombro pode ser salvo se ela não ficasse muito tempo deitada– Rezar por seus espíritos. Pedir que nos abençoem: as trilhas das nossas antigas irmãs as estradas foram colocadas e os mataram: olhos-brilhantes-da-noite
Os mortos ao lado da estrada.
§
Primavera no Vale do Coiote
Filhotes rolam nas folhas úmidas Cervo, urso, esquilo. ventos frescos varrem as estrelas da primavera. pedras se despedaçam a lama profunda endurece sob colinas pesadas.
Coisas moventes pássaros, ervas, deslizam pelo ar através de olhos e ouvidos,
Vale do Coiote. Olema na primavera. Flor de toloache alva e solene
e muito longe no tamal um povo perdido flutua
em barquinhos de junco.
§
R R R M L
A própria morte, (Reator de Reprodução Rápida com Metal Líquido) está sorrindo, acenando. Plutônio dente-fosforescente. Sobrancelhas zumbindo. Foice de garimpo.
Kālī dança no pau morto duro.
Latas de cerveja de alumínio, colheres de plástico, folheados de madeira compensada, tubo de PVC, coberturas de vinil, não queimam exatamente, não apodrecem totalmente, inundam-nos,
roupões e trajes do Kālī-yüga
fim dos dias.
[1] A pega ou pega-rabuda (pronuncia-se o “e” fechado) é uma ave da família dos corvos, preta e branca, comum em várias regiões do Hemisfério Norte, o que inclui a costa oriental dos EUA, onde Snyder vive e trabalha. A ave costuma frequentar áreas semiurbanas e pode ser avistada nos arredores das cidades e em parques urbanos.
Lucas van Hombeeck é poeta e mestrando em Sociologia da cultura, simbolismo e linguagem pelo PPGSA/UFRJ. Membro da Oficina Experimental de Poesia (OEP), publicou em 2017 o Almanaque Rebolado (Azougue/Garupa/Cozinha Experimental). É autor de Nuvens [na seção de congelados] (7letras, megamíni) e Pará ocidental (no prelo), de onde foi tirado o poema abaixo.
* * *
1.1 Conceição
>recife um telegrama conta das articulações justas onde passa a faca um pouco cega
estala as cartilagens ossos ainda um pouco quentes do sangue guardado para o dia seguinte
das irmãs, a que não tem nojo de quebrar o pescoço da ave os dedos machucados pelas bocas da lâmina
sulca meia lua a pele grossa do pato repuxando depenada a carnadura
coração brechó descendo a cidade
pede a deus
imprecação
que a chuva poupe as telhas pobres e mais nada
refeita das panelas de alumínio mastigado assunta o pó do aparelho numa travessa da Gentil ouvindo os carros
você não tem o direito de anarquizar com a minha vida
das irmãs, a que não foi ao funeral das irmãs, a que não foi
ensaio silencioso da ladainha aprendida no pé do morro que leva seu nome enquanto a festa da virgem arrebenta em procissão
II comando aéreo regional 1T Cauby assiste entediado ao vídeo do youtube é Roberto Carlos nos arcos da lapa
como o cantor que não lhe dava presentes porque seu nome não era Lavínia ou Lísia e por isso
Não chamaria assim tampouco a cria
descascar os peixes amassar o alho receber as piores notícias dos mais limpos lábios assobiar fumar tabaco a seu jeito ensinaria
seu gênio
às cebolas sono das crianças que se esforçam sobem o balcão tentam tocar a madalena enquanto olham com fascínio o açúcar
cristal cobrindo as bordas do doce de maracujá no tabuleiro
Eneida viveria a sonhar com coisas que o mundo não tem;
Olga, uma canção de Elvis Presley para flauta e violão.
Dor de conceição
multiplicada gênese do desterro o pato é um bicho
que migra por isso a dureza da carne escura porcelana dura sobre o duro da caixa despegando o esmalte do aparelho presente de casamento
essa dureza não é força
rumina tentando a subida descendo tentando ser outra vez desejando pelo marido que fique um pouco menos louco que um soldado no front trabalhando com dureza os atos administrativos uma serpente com a boca cheia de colgate e anfetamina num adesivo no para-brisa diz senta a púa brasil enquanto espera a convocação do concurso a data do bilhete da Panair
A história da poesia brasileira das últimas três décadas (como, aliás, de qualquer período) pode ser contada de muitas maneiras. Território aberto e ainda não de todo cartografado, o vasto campo que se tem chamado, na luta pelo reconhecimento dos seus limites e pela construção do seu sentido, de contemporâneo, admite abordagens muito diferentes entre si, cada uma delas atenta a particularidades que procuram, numa tentativa de síntese necessariamente precária e parcial, fornecer os instrumentos para a fabricação de uma narrativa coerente e integrada, um mapa voltado sobre os seus próprios princípios, instaurador de novas possibilidades de leitura para um conjunto bastante amplo e heterogêneo de autores e tendências.
Nestas notas não será diferente: o olhar lançado ao conjunto da produção se orienta pela escolha de uma tese – a do retorno e adensamento do político na poesia brasileira dos anos 2000 – e pela sua fundamentação, que se dará a partir da análise de um detalhe significativo desse panorama poético, um elemento que, mesmo passando quase despercebido até aqui, pode esclarecer algumas das circunstâncias e dos significados da politização da lírica brasileira que, bem ou mal, vem sendo assinalada, a partir de outros critérios, por parte da crítica especializada, dentre a qual se destacam os esforços de Vera Lins (“O poema em tempos de barbárie” & “Poesia e tempos sombrios: alguma poesia hoje”), Eduardo Sterzi (“Terra devastada: persistência de uma imagem”) e Pádua Fernandes (“A perda da terra e a poesia brasileira contemporânea”). O detalhe a que nos referimos pode ser configurado como um diálogo, mas também como o movimento disruptivo de apropriação de uma imagem. Poetas de extração muito diversa como Haroldo de Campos, Sérgio Alcides, Marcelo Ariel trataram de se lançar, em três poemas específicos, sobre a obra de Walter Benjamin, endereçando-se a ela, pensando a partir de seus pressupostos, falando com e desde a sua força. No processo dessa conversa entre textos, os poetas trataram de recuperar, enfim e fundamentalmente, um dos emblemas, talvez a figura mais conhecida (e também mais poética, no sentido imediato da palavra) do legado benjaminiano: o anjo da História, a alegoria construída por Walter Benjamin a partir da descrição personalíssima que fez de uma gravura de Paul Klee, Angelus Novus, transformada em pequena narrativa teórica e que ocupa posição central, dado o seu caráter severo e trágico, nas muito conhecidas “Teses sobre o conceito da História”, de 1940.
Signo da catástrofe, atento ao mesmo
tempo ao passado despedaçado e ao futuro incerto e sob ameaça, o anjo
benjaminiano ressurge em poemas brasileiros do presente como que para afirmar,
pela sua própria presença estranha e desconfortável, a relação crispada que a
poesia no país, ou pelo menos parte muito significativa dela, passa a manter
com a sua época. Independente dos deslocamentos que os escritores, no gesto
subversivo da citação e da reconfiguração, propõem em cada poema ou projeto
particular, o sentido geral da aproximação à imagem benjaminiana é comum: ela
confirma a negatividade da leitura histórica que esses textos vão fazer, além
de indicar a persistência, através dos anos (sejam eles contados em anos,
décadas ou séculos, como se verá), da violência e da desagregação social no
Brasil. A tensão incontornável da imagem, que traz ao centro um personagem
agônico, cercado de dor e destruição, dilacerado entre o mundo dos homens e a
possibilidade do paraíso, se projeta no corpo dos poemas de modo novo, único –
como que a tornar ainda mais visível, pela memória cultural que mobiliza e pelo
dado filosófico que contém, o ajuste impossível entre o tempo e o texto.
Fazendo um pequeno desvio, é
interessante lembrar: não será a primeira vez que a imagem decisiva de um anjo
se faz notar no universo da poesia brasileira, servindo de motivo a diversos
tipos de proposições líricas e reflexivas. Sem contar as referências da
literatura romântica aos seres divinos ou malditos (índices da pureza ou do mal
absoluto, a depender do caso, mas em geral símiles preferenciais para descrever
as mulheres e sua condição ora inacessível, ora corruptível) anjos de condição,
e em alguns casos mesmo aparência, profana já apontavam, na moderna poesia
brasileira, para a subversão e o gesto político. Todos vêm de Drummond, desde
aquele que se aproxima do Carlos de Alguma
poesia e o convida a ser gauche
na vida, no “Poema de sete faces” (cf. ANDRADE, 1979); passa pelo “anjo
barroco/ muito louco, torto/ com asas de avião” (cf. NETO, 1982), que lê o
destino nas mãos do poeta Torquato Neto em “Let’s play that”, desafiando-o a
“desafinar/ o coro dos contentes”; até aquele que, alguns anos mais tarde, veio
lembrar em “Com licença poética”, de Adélia Prado, a condição permanentemente
em luta das mulheres, obrigadas a “carregar bandeira” (cf. PRADO, 2014) por
toda a vida – os anjos são parte do repertório crítico da poesia modernista no
país, apresentados como paródia do arcanjo Gabriel, anunciando não mais o
milagre e a sacralidade possível do mundo, mas a natureza desviante e
questionadora daqueles nascidos sob a sua proteção. Esses anjos garantiriam, de
um modo ou de outro, a possibilidade da transformação da vida, o desajuste como
dispositivo ético de resistência. São metáforas críticas que dão conta de um
certo sentido positivo, por assim dizer, da relação entre poesia e política no
seu momento histórico.
Muito diferente é o caso, no entanto,
da evocação do Angelus, de quase que qualquer
anjo, na cena poética contemporânea. Não há mais espaço para o humor nem para a
construção de identidades subversivas tradicionais: o marginal, o malandro, a
militante que marcha em defesa de suas ideias. A época é de hecatombes; o
cenário, de escombros e destituição. Os anjos que povoam os textos de Haroldo
de Campos, Sérgio Alcides e Marcelo Ariel são testemunhas impotentes de um
mundo em desagregação acelerada, contra o qual lutam em desespero; são jovens
vítimas do desaparecimento forçado, cujos cadáveres nunca puderam ser
pranteados; são figuras tristes, entre o trágico e o patético, que recolhem em
si todo o sofrimento humano, de ontem e de hoje. São índices da negatividade,
enfim, que a imagem benjaminiana porta, e que os poemas em tela vão atualizar, projetando-a
contra a sua própria época, investindo-a do mesmo tom desencantado e profético
– às vezes até mesmo esperançoso, como se verá.
Conforme lembra Michel Löwy em Aviso de incêndio, a nona das “Teses sobre o conceito da História”, como quase todas as outras, foi estruturada a partir do princípio das correspondências, no sentido baudelairiano do termo, daí advindo uma das suas forças especificamente poéticas. Não só há uma série de ligações e reverberações entre teologia e política, entre a possibilidade do retorno salvífico do Messias e a interrupção violenta do curso monológico da História:a impossibilidade de separação, no texto benjaminiano, entre esferas contraditórias do pensamento produz uma espécie de síntese impossível (que entretanto se realiza no corpo da letra) que só a enunciação poética é capaz de realizar, na medida em que opera a partir dos deslocamentos da escrita figurativa e das suspensões e saltos que o paradoxo produz. Se a poesia é aquilo que resiste à lógica e à comunicação, subsistindo como acontecimento irrepetível da linguagem, não se deixando formular de outro modo que não o exato encontro entre som e sentido que se produz no instante instaurador do texto, o aspecto fascinante e tantas vezes enigmático, o pequeno milagre indecifrável da escrita benjaminiana se configura aí, na sua elaboração como texto poético, isto é, como pensamento que se dá por imagens e que não pode ser refeito, sob pena de perdas e desarticulações profundas que no limite vão desfazer a trama forte sobre a qual se desenrola a dança das ideias. Vem daí certamente a relação de mão dupla que tantos textos de Walter Benjamin estabelecem com a literatura (e que os poemas brasileiros do presente dão a ver tão bem): partindo da leitura e da observação crítica de textos literários, os ensaios, fragmentos e demais escritos benjaminianos retornam à literatura através das apropriações e montagens que outros escritores, em outras épocas que não a sua, do autor de Rua de mão única, vão propor, fazendo com que os textos perfaçam, por assim dizer, um círculo, no qual tudo começa e tudo se encaminha para a palavra poética.
Posto no centro das “Teses sobre o conceito da História”, a tese IX, que aqui interessa de perto, retoma, em outra chave, o interesse de Benjamin pelas ruínas, já antes exposto de modo bastante original na Origem do drama trágico alemão. Ligadas, naquele trabalho, à teoria da alegoria, à estética dos fragmentos e à reflexão, muito cara ao século XVII, sobre a transitoriedade e a sobrevivência, as ruínas reaparecem no texto escrito às portas da guerra de destruição total e do genocídio como o produto definitivo, a síntese negativa da história dos homens, amontoado de restos que torna visível, pela ausência que acaba por presentificar, as forças violentas que ordenam e dão sentido ao tempo humano. Distante da imponência das ruínas que evocam a grandeza do passado e servem como permanente memento mori, a paisagem devastada que se acumula e cresce diante dos olhos impotentes do anjo, em Walter Benjamin, é antes composta de escombros[1],pedaços mil vezes partidos e desfeitos, fragmentos de tal maneira destruídos que parecem apontar apenas para o apagamento, o sangue derramado, a vida e o tempo não-redimíveis. Ainda que o desejo e a possibilidade do conserto e da salvação se apresentem como dado fundamental do quadro (de toda a cena evocada, seu pathos melancólico), numa reproposição dramática do Tikun olam, o conceito da tradição judaica que clama, e espera, pela ‘reparação do mundo’, o anjo da História permanece paralisado diante do horror, capturado pela trama do progresso, isto é, de uma temporalidade que se move independente da ação humana, deslocando-se, em pura repetição, em direção a um télos pré-definido (que pode ser tanto o desenvolvimento econômico ilimitado, a racionalização absoluta das relações sociais e dos modos de vida, a autonomização do espirito científico que submete a natureza, quanto a revolução política que caminha inexorável para sua autorrealização).
*
Se o último escrito de
Walter Benjamin pode ser lido como um documento histórico, um tipo muito
particular de testemunho da sua época, que oscila entre a urgência desencantada
do alerta emitido à beira do precipício e a crítica filosófica que elabora o
motivo da esperança em meio à proposição de outros fundamentos epistemológicos
para a compreensão do presente e a ação política antifascista e revolucionária,
a leitura desse texto hoje, a partir do contexto brasileiro, em especial,
revela-se uma tarefa delicada e complexa que, mais do que nunca, a literatura
parece ser capaz de levar a frente. O interesse pelo legado teórico do autor,
em geral, e o salto sobre a
imagem-chave do Angelus Novus (e suas
variações possíveis) em particular, que a poesia brasileira dá no mais recente
período histórico, são índices da potência do diálogo, bem como da inquietação
que ainda despertam, em circuito tão diverso daquele que enformou a reflexão
originalmente, as perguntas levantadas pelo autor e deixadas, até aqui, sem
respostas definitivas. Será preciso endereçar-se aos textos dos autores antes
mencionados para ver como cada um deles vai desdobrar e refazer a imagem
decisiva, e com que sentidos. O primeiro, Haroldo de Campos.
Publicado pela primeira vez na Folha de São Paulo, no dia primeiro de janeiro do novo milênio que recém começava, o poema “2000”, do autor de Galáxias, pode ser lido como o encerramento simbólico de um ciclo histórico na poesia brasileira, além de configurar-se também, é claro, como peça na qual se conjugam o impulso experimental do poeta inquieto e o seu compromisso ideológico, à esquerda do espectro, de revolta e solidariedade para com todos os vencidos. O aspecto historiográfico do poema se deixa perceber se fazemos uma leitura contrastiva entre o texto e o grosso da produção poética brasileirada década de 1990. A geração que se afirmou nesse período ficaria marcada por certos traços formais muito constantes (a concisão extrema, a correção vocabular, a distância da coloquialidade e o diálogo com as artes plásticas, seu pendor geométrico e sua capacidade de abstração da realidade) e pelo retorno que fará a um imaginário alheio às intensas disputas políticas pelo sentido e a função da arte que dominaram a cultura brasileira nas décadas anteriores, fruto quem sabe do imperativo que era o combate à ditadura e seus desdobramentos (censura, moralismo, normalização da força e da violência, apego às tradições e ao nacionalismo acéfalo etc.). Cuidadosamente voltada sobre si, a poesia brasileira dos anos 1990 recusava a expressão da História do presente e dos conflitos estruturantes da sociedade brasileira, conforme as tentativas de balanço feitas por críticos como Iumna Maria Simon e, novamente, Vera Lins. Lido contra esse pano de fundo, o poema de Haroldo é um diagnóstico e uma resposta à década que quase terminava: seu caráter narrativo, o corpo alongado do texto, bem como a estrutura dramática que subjaz nele propõem diferentes soluções formais, livres da disciplina regulatório da poesia menos aprendida em João Cabral de Melo Neto e no próprio período vanguardista da Poesia Concreta. Por outro lado, o diálogo que estabelece entre a imagem benjaminiana do anjo da História e os mitos hebreus do Velho Testamento vai inscrever, de modo definitivo, o poema numa dicção política de combate.
O agon que atravessa o texto e se desdobra em várias direções e sentidos (construído a partir da justaposição e do choque entre tempo e eternidade, transformação e imobilismo, a leveza do voo e o peso paralisante da pedra, Walter Benjamin e o Qohélet) deixa-se ver na armação dramática do poema, que se estrutura como um palco imaginário no qual duas figuras, dois personagens mortalmente contrários vão se encontrar e enfrentar: de um lado, “o princípio-esperança/pilastra esquerda do portal” (CAMPOS, 2009, p. 59) do tempo – passagem para o novo milênio contido na cifra-título –, um “anjo-esperança” que contempla do céu, em silêncio, a sucessão e a desgraça das gerações; de outro, “a moira-desespero/ pilastra à direita” (CAMPOS, 2009, p. 59) que ri como uma gárgula e se alimenta do discurso conformista, eterno, da sucessão do sempre igual dos dias, da sabedoria da constância e da prudência que no poema se expressa com as palavras do Eclesiastes, o Qohélet, aquele-que-sabe, voz unívoca do progresso, do “tempo homogêneo e vazio”, do fio dos dias que se estende sem sobressaltos, em pura repetição:
E eu me voltei eu e vi toda a opressão que é feita sob o sol e eis o choro dos oprimidos e não há para eles conforto
[…]
aquilo que já foi é aquilo que será e aquilo que foi feito aquilo se fará e não há nada novo sob o sol (CAMPOS, 2009, p. 59-63)
A armação do poema acrescenta à figurado anjo da História um dado que, na sua formulação inicial, permanecia apenas encoberto. O que prevalece no texto de Walter Benjamin é a despossessão, o horror estampado no rosto daquele que “volta os seus olhos para o passado” e vê, na cadeia de fatos que se desenrola, “uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas”. O desejo redentor do anjo de “acordar os mortos e reconstituir, a partir de seus fragmentos, aquilo que lhes foi destruído” (BENJAMIN, 2010, p. 13) se apresenta como sinal melancólico da impotência, paralisia e tragédia diante da força cega da tempestade do progresso, que irresistivelmente arrasta para a frente e produz, no seu movimento, cada vez mais cadáveres e escombros. O que há de esperança e revolta, desejo mesmo de ação, fica subsumido, como se percebe, no fragmento benjaminiano, mas não irá permanecer assim no poema de Haroldo de Campos:recorrendo à outra cepa de anjos presentes na obra de Benjamin (são várias e bastante diferentes entre si, conforme assinala Jeanne Marie Gagnebin em precioso ensaio sobre a legião angélica constante na obra do pensador alemão [cf. GAGNEBIN, 1997]), desta feita o anjo vingador da tradição judaica, o poeta imagina que a fixidez terrível não imobiliza por completo a figura do“arcanjo-esperança”, que será capaz agora (no presente sempre renovado desse combate sem fim entre a continuidade e a cesura) de, com “sua espada/multicentelhante/ rasga[r] um claro/ no ob-/nubilado/ horizonte onde/ se engendra/ o futuro” (CAMPOS, 2009, p. 62), isto é, interromper o progresso do tempo, obstaculizar a sucessão dos acontecimentos que, naturalizados, constituem o cerne do desastre que nos cerca. Rompendo a pele opaca do céu e deixando passar, como imaginava Benjamin poderia fazer tanto o Messias retornado quanto a Revolução Proletária, uma fresta de luz que se projetasse sobre outras formas de vida, o anjo de Haroldo de Campos vai anunciar a chance da restituição soteriológica de tudo o que já existiu, de tudo (todos) os que já viveram e que permanecem, na marcha triunfal dos tempos, esquecidos para sempre. Sua consigna– do anjo e dessa energia política particular – está gravada na espada que carrega, onde se lê: “a esperança existe/ por causa dos desesperados”, trecho do ensaio “As afinidades eletivas”, do próprio Benjamin, que o poeta traduz, adapta e enxerta em seu poema, fazendo dele o espaço de uma montagem de vozes e discursos distintos, uma rede de citações como são tantos dos textos do pensador alemão.
Sérgio Alcides, por sua vez, é quem irá
repropor de modo mais direto a imagem do anjo da História, quase que num
processo preciso de simetria invertida. O primeiro passo: o poeta trabalhará a
imagem a partir do deslocamento espaço-temporal: atualizando-a ao sobrepô-la à
história recente do país, seu coeficiente de violências e cadáveres, Alcides
faz a figura etérea, de fundo universalista, situar-se no Brasil dos anos 1970,
ao rés-do-chão. A partir da proximidade etimológica entre os nomes da gravura
de Klee e o sobrenome de um desaparecido político brasileiro, o guerrilheiro
Stuart Edgart Angel Jones, o poeta
vai reescrever a tese benjaminiana; mas, desta vez, “aura escangalhada, sem
chance de alegoria” (ALCIDES, 2012, p. 75). O seu anjo não mais contempla a
sucessão dos tempos ou deseja acordar os mortos: ele mesmo não vive mais,
violado que foi pela tortura, enterrado em vala comum, inidentificável – cancelado
à força do mundo:
Olhar esbugalhado. Sujo de terra, sujo de ter visto demais.
Uma tempestade sopra aí. Não vem do paraíso.
Talvez siga para lá.
Mas nem mesmo é uma tempestade.
Berro. Canivete. Cassetete. Coturno. Porão. Pua.
O trópico é o pau de arara onde foi pendurado o anjo da história do Brasil, para ser torturado. (ALCIDES, 2017, p. 75)
Ao invés da figuração abstrata e
errática, a imagem de todo não-esgotável de Benjamin, cujos sentidos se
multiplicam e arruínam, conforme a perspectiva alegórica proposta pelo autor,
Sérgio Alcides escreve a partir do realismo imediato, da materialidade bruta do
cadáver, da linguagem que nomeia e aponta sem voltas a obscenidade do corpo
mutilado. A cada uma das cenas que compõem o quadro apresentado por Benjamin,
Alcides vai oferecer, parodicamente, uma resposta e um desdobramento doloroso
que se dá, no tempo sempre presentificado do poema, no corpo desaparecido de
Stuart Angel, desde o título do texto nomeado “Nosso Angelus”, num gesto que indica o ponto de vista e a enunciação
coletiva que orienta a composição: “O trópico é o pau de arara onde foi
pendurado/o anjo da história/do Brasil” (ALCIDES, 2012, p. 75). Os olhos muito
abertos, as asas abertas, o rosto petrificado de horror: cada elemento do texto
original é reproposto como uma etapa do processo de tortura e assassinato
cometido pelos militares e civis que participaram da repressão à esquerda
durante a ditadura de 1964-1985. A continuação indefinida da condição de
desaparecido político, a ausência mesma de corpo a ser sepultado, ocupará no
texto o lugar da indicação ao futuro feita por Benjamin, que descreve as ruínas
que sobem até o céu, indefinidamente.
De modo paradoxal, o poema afirma:
“Nenhum outro anjo deixou cadáver” (ALCIDES, 2012, p. 76), expondo a situação
ambígua e insuportável da situação: feito carne inerte, desfeita sua condição
etérea, este anjo demasiado humano,
posto que mortal, deixou e não deixou cadáver, por assim dizer: tornado mortal,
ele possui existência material, logo degradável, de carne vive e pode morrer;
destruído e ocultado, no entanto, seu corpo nunca pôde ser recuperado, ainda
que se conheça o seu destino pelos testemunhos oferecidos pelos companheiros de
prisão e por, pelo menos, um dos militares que serviam naquele momento. A
história brasileira, portanto, encravada nesse impasse, torna-se tempo suspenso
e circular, iterabilidade, continuum
que arrasta o sempre igual para frente, em nome do progresso, sem nunca se
desatar de seu automatismo. A luta pelo reconhecimento dos mortos, sua
localização e a punição dos culpados torna-se aqui, conforme propõe o poema,
modo de cesura, de interrupção disruptiva da história nacional e a instituição,
ainda que breve e precária, de uma outra história, na qual os mortos possam
ser, nesse caso literalmente, resgatados e redimidos.
Já Marcelo Ariel, em pelo menos um poema longo, “Caranguejos aplaudem Nagasaki” (ARIEL, 2008, p. 23-25), procurará reescrever a imagem benjaminiana como uma sombra sutil, horizonte incontornável mas de memória propositadamente longínqua, num texto complexo que faz parte de Tratado dos anjos afogados, livro em que, desde o título, vão se combinar o olhar dos anjos sobre o mundo dos homens e a mais estrita negatividade, excluído qualquer escape, qualquer forma de transcendência reparadora. Num cenário pós-apocalíptico (que é e não é, tão só, o Brasil dos últimos estertores da ditadura civil-militar), no qual se misturam miséria extrema, violência e poluição ambiental, um par de seres alados sobrevoa o rescaldo de um incêndio, pairando por sobre destroços fumegantes, “gritos mudos” (ARIEL,2008, p. 23), mães que queimam junto a seus filhos, fragmentos humanos irreconhecíveis. Depois de observar o cenário insuportável de morte e mutilação, apresentado pelo poeta a partir de imagens líricas que remontam a Dante (Beatriz, uma mãe solteira, é transformada em “outra coisa” [ARIEL, 2008,p. 25] pelo calor das labaredas), Alain Renais (cuja mistura entre sublime egrotesco de Hiroshima, mon amour orienta a cadeia de metáforas do poema, ao mesmo tempo piedosa e hiper-realista) e o Livro das Revelações, os anjos inquietam-se ante a imagem dos corpos carbonizados que assumem a gravidade de gestos da estatuária clássica. Todo o cenário se conecta, sugere o poema, a partir de afinidades terríveis, com as explosões nucleares do Japão – numa rede de acontecimentos que pareciam previstos desde os primórdios do tempo, de onde os caranguejos, monstros-animais em miniatura, sobreviventes pré-históricos que chegaram a nossa era, aplaudem o novo ciclo de destruição. Tomados de espanto e compaixão, os serafins sussurram uma declaração amorosa nos ouvidos de Deus, como que a afirmar, pelo enorme desamparo da situação, o maior desvelo divino: “– Vila Socó: meu amor” (ARIEL, 2008, p. 24).
Erguida
sobre oleodutos da Petrobrás e em meio a uma densa zona industrial, a
comunidade de Vila Socó, em Cubatão, foi tragicamente consumida pelo fogo em
1984, perdendo cerca de 2.000 moradias e, oficialmente, mais de 90 pessoas
(ainda que os depoimentos dos que escaparam indiquem centenas de mortos),
depois que o vazamento de milhares de litros de combustível forneceu material
para os fogos imensos, de proporções míticas, infernais. O olhar projetado pelo
poeta para o episódio procura revelar, pelas múltiplas conexões e referências
que estabelece, a extensa cadeia de acontecimentos do mesmo tipo, desastres
naturais e humanos que expõe a sucessão de catástrofes de que é feita a
História, e que na periferia de uma cidade operária brasileira repete-se e se
refrata, atualizada, ganhando novas dimensões. A mirada angélica que Ariel
propõe, afinal, desde o alto, confere dimensão mais ampla, de pretensões
universais, ao acontecimento local – que deixa de ser apenas a enésima
confirmação do abandono social a que os mais pobres estão submetidos no Brasil
para se conectar, como mais um elo na cadeia, ao amontado de ruínas que, vindo
de todos os tempos e lugares, cresce até os céus:
Vila Socó estacionou na História ao lado de Pompéia, Joelma e Andrea Doria Pensando nisso ergo neste poema um memorial para nós mesmos vítimas vivas do tempo onde se movimenta a morte se espalhando na paisagem como o gás que também incendeia o sol (bomba de extensão infinita) (ARIEL, 2008, p. 24-25)
Gustavo Silveira Ribeiro
Referências bibliográficas
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[1] A
distinção entre ruína e escombro pode ser produtiva aqui – seguindo a pista
deixada por Roberto Vecchi (2004) num texto sobre as formas residuais do
trágico na modernidade: enquanto a primeira indica um todo ausente,
fantasmático, mas cujo sentido é fundamentalmente reconstituível, abrindo uma
fresta no presente para a emergência do passado, o segundo se apresenta como um
‘resto quebrado’, fragmento de um tempo irrecuperável, de um corpo destruído em
definitivo, cuja forma primeira (logo, o sentido possível) não mais se mostra
recuperável, restando apenas como resíduo material incompreensível, estéril e
fechado sobre si.
Mario Pera, poeta e ensaísta peruano. Formado em Direito pela Universidad de Lima e em Desenho Gráfico pelo IPAD (Peru). Foi coeditor da Editora Magreb. Diretor da Revista Literária Digital Vallejo & Co.,e da editora de mesmo nome. Em 2013 obteve o Premio Ilustre Municipalidad de Cuenca no Festival de la Lira (Equador). Publicou os livros de poemas Preparaciones anatómicas (2009), Ruido Blanco (2011, 2015, 2016), Mirando sobre el heno, Muestra de poesía peruana reciente (2014), The Most Natural Thing. New American Poetry (2015, junto a David Keplinger) e Y habrá fuego cayendo a nuestro alrededor (2018); os ensaios Fare l’America or learn to live in it? Italian immigration in Peru (2012) e Comunicaciones marcianas. Revista Amauta, a 90 años de la vanguardia peruana 1926-2016 – Una muestra (na prensa, em conjunto com Roger Santiváñez).
Conheci Mario Pera em 2016, quando traduzia alguns poemas de Guilherme Gontijo Flores para a antologia “Inventar la felicidad” (e-book da Vallejo & Co., do Peru), e então me tornei leitora da revista. A convite do Suplemento Literário de Minas Gerais, traduzi uma leva de seus poemas para a edição setembro/ outubro, 2018; gostei tanto que trouxe outros três, os poemas abaixo, aqui pra escamandro.
nina rizzi
*
Oração do clochard moribundo
Três manchas de merda
revelam meu rosto melhor que qualquer fotografia ao menos esse sou eu, digo
um adorador egocêntrico
a lepra no cu da minha família
o rosário da minha mãe
que arde debaixo do meu travesseiro
e todas as cruzes
escorregam do meu cangote desorientadas
enquanto ouço cair suas orações num saco vazio
e no meu sonho mais calmo
vejo que Lima arde, minha família arde
este poema entre tuas mãos
arde
meus ossos se empolam
e meu sangue se afina até se transformar
em cordas muito finas que me enforcam.
Sempre fui um péssimo filho
sou agnóstico e me masturbo, mas
meu sangue jamais nutriu
o ideal de outro corpo.
Um abutre velho me observa
e canta um estribilho alegre
onde se ergue a árvore de Judas eu também sou um traidor, respondo
vendi meu nome e minha voz
e sufoquei eternamente
o pranto da minha mãe.
Pela primeira vez
transpira em frente à Cruz
um homem que já morreu.
Oración del clochard moribundo
Tres manchas de mierda develan mi rostro mejor que cualquier fotografía
al menos ese soy yo, digo un adorador egocéntrico la lepra en el culo de mi familia el rosario de mi madre que arde bajo mi almohada
y todas las cruces resbalan de mi cogote desorientadas mientras oigo caer sus oraciones en saco roto y en mi sueño más calmo veo que Lima arde, mi familia arde este poema entre tus manos arde mis huesos se ampollan y mi sangre adelgaza hasta convertirse en cuerdas muy delgadas que me ahorcan.
Siempre fui un mal hijo soy agnóstico y me masturbo, pero mi sangre jamás nutrió el ideal de otro cuerpo.
Un buitre viejo me observa y canta un estribillo alegre donde se yergue el árbol de Judas
yo también soy un traidor, respondo vendí mi nombre y mi voz la enclaustré eternamente en el llanto de mi madre.
Por primera vez suda frente a la Cruz un hombre que ya ha muerto.
§
Brecht entre clavelinas
I Sentado e com as mãos sujas
pensou que era um velho estúpido
mais uma daquelas placas de mármore da praça
que puderam ser talhadas com melhor arte para conseguir um Davi
uma Vênus
ou outra deusa de seios sutis
e nádegas avultadas
porém em algum momento seu destino sofreu um desvio
sua divindade tropeçou no bico do formão
e com cada estalo sua pele foi esmigalhada
como um totem incapaz de profanar seu próprio culto.
Aquele revés se fez indelével
e com o passar do tempo teve que se conformar em ser
mais um bloco da pracinha ou
o ignorado detalhe
onde cagam os pombos.
II Sentado
observou o asfixiar do dia no ocaso
e desejou guardar suas dúvidas
na felicidade de outros
no monte de palavras que ano a ano
nomeou como algo importante, quase urgente
o eterno espiral de perguntas
que talhou na memória de sua boca
a matutina barbárie de uma frase: Você que me deu a palavra agora só estorva minha língua toda vez que a invoca.
Brecht entre clavellinas
I Sentado y con las manos sucias pensó que era un viejo estúpido una más de aquellas losas de mármol de la plaza que pudieron ser talladas con mejor arte para lograr un David una Venus u otra diosa de senos sutiles y nalgas abultadas pero en algún momento su destino sufrió un desvío su divinidad tropezó en el pico del cincel y con cada crujido su piel fue burilada como un tótem incapaz de profanar su propio culto. Aquel revés se hizo indeleble y con el paso del tiempo tuvo que conformarse con ser un bloque más de la plazuela o el ignorado detalle donde cagan las palomas.
II Sentado observó el asfixiar del día en el ocaso y deseó guardar sus dudas en la felicidad de otros en la ruma de palabras que año a año nombró como algo importante, casi urgente el eterno espiral de preguntas que talló en la memoria de su boca la matutina barbarie de una frase:
Tú que me diste la palabra
ahora solo estorbas mi lengua
cada vez que la invocas.
§
Mirmillón: requiescat in pace
Sou apenas
uma das grades da tua prisão,
que observa como
com o passar do tempo,
teu rosto se desgasta e
se descasca
teu olhar.
Fui testemunha, de como a folhagem vasta que eram tuas expressões se enrugaram e envelheceram como um ancião enquanto florescia o outono.
Tantos anos cativo
te deformaram o rosto.
Tua triste colheita
amadureceu e
nasceu,
entre aplausos e aclamações,
seca e sem nome.
Mirmillón: requiescat in pace
Solo soy uno de los barrotes de tu prisión, que observa cómo con el correr del tiempo, se desgasta tu rostro y se descascara tu mirada.
He sido testigo,
de cómo el follaje vasto que eran tus expresiones
se ha arrugado
y ha envejecido
como un anciano
mientras floreció el otoño.
Largos años cautivo te han deformado el rostro. Tu triste cosecha ha madurado y ha nacido, entre aplausos y vítores, seca y sin nombre.
Lápide de Jorge Luis Borges, Genebra. Foto de Charles Wrapner.
Apresentação
Dois amados e uma amada, boa noite!
Vamos compor uma dramaturgia teórico-quixotesca sobre tradução, teatro, narração, política, poesia!!??
Neste link segue uma proposta de início, mas é tudo cambiável, modificável, possibilitante. Botei no drive pq gera a possibilidade de escrevermos ao mesmo tempo e vermos essa troca ao vivo entre vivos.
Acho que a ideia de compormos juntos pode gerar um lindo fruto. Além de ser uma forma lancinante de lermo-nos, escutarmo-nos, con-versarmos!!
Para Lígia, a quem envio o texto mais de supetão, espero q seja um grande incentivo a seu doutorado sobre o narrador-tradutor! Ou melhor, A Narradora-Tradutora.
Beijos a tod@s!!
Daniel
Dialogantes tradutórios:
Lígia Borges: Dançou afroxé com Mestre Moa do Katendê, assassinado pela brutalidade que tem sido estimulada. Doutoranda no programa de Artes Cênicas pela ECA-USP, com o projeto “Veredas de Tradução e Profanação do Narrador”. No mesmo programa concluiu mestrado com a dissertação “Tecendo o Sopro do Narrador”. É professora de teatro na EMIA (Escola Municipal de Iniciação Artística), referência no ensino de artes integradas para crianças. Coordenou o ateliê “Era uma Vez” no Instituto Eurofarma. Realiza também o ofício de contadora de histórias em SESCs, escolas, bibliotecas, livrarias e ONGs, trabalhando inclusive com formação de educadores nessa linguagem. Participou do desenvolvimento do Projeto História Viva das editoras Ática e Scipione. Foi encenadora e atriz do Núcleo Panóptico de Teatro, além de já ter trabalhado com o Teatro Dodecafônico, Ausgang e Cia. O Grito. Como arte-educadora já ministrou oficinas em diversos projetos, com um enfoque metodológico no jogo teatral. Como atriz participou de diversos espetáculos e oficinas em regiões diversas do Brasil, na América do Sul e Itália. Seu foco de pesquisa está voltado principalmente para as narrativas e a improvisação cênica. Mãe de Cassiano, 39 anos.
Charles Wrapner: Ator, dramaturgo, fazedor de teatro, iniciou a carreira aos oito anos de idade como membro de um grupo teatral infantil que viajava por toda Cuba. O grupo coletava histórias de diferentes comunidades, tomando-as como ponto de partida para criar e realizar peças dedicadas ao povo. Durante seus anos de formação, ele escreveu e encenou diversas peças, sempre participando como ator, seja em “Cegos”, de Maurice Maeterlink, “As três irmãs”, de Anton Tchékhov ou ainda “Traços de meus olhos” e “O dia amargo de Dona Josefa”, escritas por ele mesmo. Seguindo a sua pesquisa na pequena vila de cana de açúcar El Yabú, Charles escreveu os textos cênicos “La Guarandinga” e “You, I, Sex”, que foram apresentadas para milhares de espectadores. Curiosamente, o serviço público de transporte, há muito tempo interrompido, começou a funcionar mais uma vez em reação ao impacto público da peça. Na Universidade de Artes de Havana, onde ele atualmente conclui seus estudos de dramaturgia, Charles fundou a companhia de teatro La Quinta Rueda, que excursionou por toda Cuba com suas peças “Emily”, “A noite do assassino” e “Dança da morte”.
Daniel Glaydson Ribeiro: Professor de Novas Tecnologias da Informação e Comunicação e de Pluralismo Cultural no Instituto de Estudos e Pesquisas do Vale do Acaraú. Ingressou no teatro em 2003 com a Cia. de Teatro Palavrão e o “Contemporaneirismos”. Em 2006, na Engenharia Cênica, compôs a música do espetáculo “Irremediável”, que recebeu o Prêmio Myrian Muniz de Teatro, da Funarte. Em São Paulo, participou do grupo Ausgang com os espetáculos “Rapsódia Muda”, “Samba de Brecht”, entre outros, e co-editou o livro “Almanach Muda”, onde publica o ensaio-poema “Poesia Muda: Butes Ostranênio”. Mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo e Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP), com tese que apresenta material inédito da Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. Traduziu Vicente Huidobro, Jüri Talvet e, em parceria com Fábio Roberto Lucas, inventa alexandrinos para Paul Valéry. Pai de Anita e Tarsila, 33 anos.
Fábio Roberto Lucas: Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (2018). Possui graduação em Filosofia pela mesma instituição (2010) e em Letras pela Universidade São Judas Tadeu (2003). Fez doutorado sanduíche em 2017 pela Université Paris Ouest Nanterre e desenvolve pesquisas nas áreas de teoria literária e poesia moderna e contemporânea. Publicou traduções de Mladen Dolar (Revista Literatura e Sociedade números 18 e 19) e, no momento, trabalha a tradução de alguns poemas do jovem e do velho Valéry junto com Daniel Glaydson Ribeiro, bem como alguns poemas em prosa, a seção Poïétique dos Cahiers e os Principes de An-archie pure e apliquée, junto com Roberto Zular. Também integra o coletivo CAPSartes, do bairro do Grajaú em São Paulo, como mediador de ateliês de escrita e de debates sobre filosofia e música.
Aqui é possível baixar o pdf:
* * *
TRA-DU: Trato entre sóis
Per-sonagens Autrui Lígia Borges Charles Wrapner Fábio Roberto Lucas Daniel Glaydson Ribeiro
JACOB
Uma mistura subtil de crença, de sabedoria e de imaginação constrói diante dos nossos olhos a imagem constantemente modificada do possível.
CORO DE VOZES
constantemente modificada do possível constantemente modificada do possível constantemente modificada do possível constantemente modificada do possível
DANIEL
A tradução seja, antes de tudo, a forma abissal da leitura, e logo, da escuta. Forma abissal, mas nunca suprema ou soberana. Curvar-se sobre um ponto, voltar a nuca para o som, como a própria figura da interrogação ―?―, ou pendurar-se neste ponto, voltar a nuca sob o som ―¿―. Empoçar-se e empossar-se. Tomar posse apenas ao mergulhar no poço, posse no sentido de que pertenço ao poço.
LÍGIA
Posso dar uma pausa para escutar o eco no poço?
(jogos possíveis com eco, entre-línguas, anunciando palavras chaves)
DANIEL
No Início era a Tradução. Im Anfang war die Übersetzung, poderia ter escrito João ―em grego, ΕΝ ΑΡΧΗ ἦν ἡ μετάφρασις, απόδοση, metafrase, apódose― ou Fausto. Na Infância era a Transcriação?
Colocar-se sobre o texto [Über-setzung] ―ou sob a voz―, mas apenas na condição de logo levantar-se; montar o Λόγος, cavalgar em terras estranhas até chegar, apear-se, sentir como pisa neste solo, ou como nada neste poço, o outro. Dis-sedeo, dessentar-se, dessedentar-se, dissidir, decidir. Não por acaso, o teXto carrega em seu interior, em seu meio, um quiasma.
CHARLES
Es interesante el sentido de preámbulo, de umbral que puede ser la traducción. Sin embargo creo que cuando ese jinete desmonta en el umbral tiene un objetivo. El objetivo mismo de la traducción misma… es el sentido de traición. En alguna raíz de la palabra en alguna vieja lengua traducción significa traición. Un destino terrible que contrasta con los deseos del traductor. El traductor quiere ser fiel, está enamorado de la fidelidad, pero la palabra, la fuerza que impulsa el hecho lo obliga a ser un traidor. Traidor es un vocablo de carácter moral muy fuerte, pero tendría entonces que mirarse el sentido y el espíritu de esa traición y podría comprenderse de outro modo. El valor de ser un traidor al estilo de un traductor hace entender por qué es válida esa noble traición. Un hecho que el traductor hace con pena muchas veces, sí, con pena de no poder llevar al otro lenguaje lo que siente que significa la cosa, por faltarle elementos para traducir las esencias siempre intraducibles. Después de todo no existe manera de traicionar la esencia, sí la obra, sí el lenguaje, sí el movimiento, pero no la escencia.
AUTRUI
Im Anfang war die Tat…
FÁBIO
Foi o que ele disse? Depois de alguma hesitação, é verdade, as possibilidades eram tantas, das Wort, der Sinn, die Kraft! Esqueceram a rima? Ele não, nem nossa tradutora. Verbo e exacerbo – esclarecido e Sentido – direção e Ação… Mas poderia ser gesto, força, palavra, que rimas ressoam por aí? Não sei se as maiúsculas são necessárias, lá eles capitulam por lei todos os substantivos, ali não precisa. Esse quiasma… Seria ele uma quebra, uma queda, talvez como a do inacabado Fausto valeriano, depois de namorar mas recusar a soberania e a solidão do cume mais alto do velho mundo. Ele é empurrado e cai…
AUTRUI
…Âme ivre de néant sur les rives du rien…
FÁBIO
É o que lhe diz a fada que o toca, Fausto ainda inconsciente, atordoado pelo tombo. Quer-o in-finito, impossível tradução da fímbria assonante de néant e rien, o nada substantivo que desliza e rima em direção ao vazio pronominal, ao palco – onde o verso se divisa, ressoa como aposto, habita o que foi enunciado pelo ser mítico, qualifica a vida passada de Fausto, mas também reverbera como vocativo e lhe endereça a própria enunciação em ato. Um chamado que dobra o passado sobre o presente, e tenta inscrever o herói decaído nas amarras míticas de um beijo. Contudo, de algum modo, ele saberá, ao longo de um intermezzo, reverter o jogo, desdobrar os tempos, uma nova quebra, este outro ponto surdo.
AUTRUI
“Tua primeira palavra foi não. E ela será a última”. No começo era o ato? A tradução desata. Rima com o quiasma?
DANIEL
Alma embriagada de Neantho sobre os rios do pranto!
Em teus lábios, sono áureo onde sombria boca Baila (e melhor se cala ao todo azul da larva), Sentes, tal astro vil e indiferente, a mosca Transparente a rodar a mais pura palavra
Cantara o jovem Paul Valéry (conforme nossa tradução) ao final do século XIX, muito antes de devotar-se ao silêncio poético em que se engendrou por décadas A Jovem Parca.
AUTRUI
Nos versos or-iginais do soneto alexandrino Ballet, se escuta:
Sur tes lèvres, sommeil d’or où l’ombreuse bouche Bâille (pour mieux se taire à tout le bête azur), Sens-tu, tel un vil astre indifférent, la mouche Transparente tourner autour du mot très pur
DANIEL
Na língua portuguesa, azul não rima com puro. O azul deste animal ou fera (bête azur) remeteu-me à infância do inseto, sua forma larval, que por sua vez rima quiasmaticamente com palavra, larva, algo curiosamente próximo à homonímia francesa do verme e do verso, vers, vers. Vermsos. Esta caça do transporte ou do cavalgamento sonoro interlingual, em acentos, cesuras, rimas, aliterações e assonâncias, descortina algo para além do arbítrio. É com o ocaso dos Casos, aqueles que determinam o repetitivo final das palavras em latim, demarcando sua sintaxe, que a rima desponta na poesia (como memória e luto dessa casuística?).
A rima só será uma máquina de criar impropérios, como quer Daniel Jankolovitch, quando toda a linguagem for tal máquina. É fato que forças (anti)políticas e midiáticas, mais nojentas que qualquer mosca, tem sugado da linguagem todo o seu pertencimento, tornando-a um impropério exemplar. O impropério dos impropérios. Falamos ainda? O que o Kapital representativo deseja é que sejamos falados.
LÍGIA
Falamos, vomitamos, falambulante temerosos do silêncio. Falofalafalha súbito engasgo Teu nariz traduz minha gagueira? Clamo tua nuanuca, seus pelos ouriçados são oceanos para dança do meu sopro Quiçá traduzirão o desbaratar dos gestos
FÁBIO
No começo era a tradução. Foi assim que começamos. Mas esse começar é presente ou passado?
AUTRUI
Valéry, percebendo o problema, varia tempo e começo… Au commencement était la fable, au commencement est le mépris, au commencement sera le sommeil…
FÁBIO
Seja fábula, desprezo ou sono, sempre um desequilíbrio, uma inevitável traição, quase quasi presença, limiar poesia-ferocidade, vermsos. Começo e eterno retorno. Inessencial queda anacidental da essência. A palavra sempre outrora, alhures, reenvia e vem e vai junto à e para além da bocorelha que abrem, da mãolho que deslizam. Se no começo (s)é(ra) a tradução, então o começo mesmo é fábula, sempre-já natureza-invenção, hesitação som e sentido, voz e pensamento, ser e ficção. E falar um verbo inconjugável na primeira pessoa do agora indicativo, exceto quando o coletivo se empoça e se interroga: falamos? (e o tempo se divisa novamente em presente-passado) falo fábula do Kapital. Já o falar se fala sendo fal(h)ado. A questão estaria no K que deixamos fal(h)ar e com quem fal(h)amos.
LÍGIA
Driblo teu Kapital, teu Valéry e outras nobres falas falos desconhecidos para avistar genealogias copulares anteriores à tradução e à fábula. Te convido a deslizares além para a escuta de um útero traduzido como kabaça, com qual das línguas traduzirás meu gemido?
CHARLES
La traducción es un ejercicio inevitable, casi un reflejo. Una persona puede desconocer por completo un idioma, tener el suyo propio, su lengua natal, el idioma que aprendió de sus padres, familia y amigos. Incluso esa persona puede conocer ese idioma sólo parcialmente, sólo conocer lo que aprendió en la vida, porque nunca ha estudiado ese idioma en una clase o en una escuela. Entonces, cuando una persona con esos conocimientos sencillos de la lengua se posiciona frente a un idioma desconocido, su reflejo es un intento de traducir la palabra al idioma que conoce. Siempre el primer impulso es buscar la semejanza de esa palabra desconocida con alguna palabra del idioma que ha hablado y escrito siempre, su idioma. Comienza así un proceso mágico de traiciones donde se sueñan e imaginan equivalentes para esas palabras y sonidos. Este proceso puede ser totalmente improductivo o no. Puede ser angustioso o no. Sin embargo ese tanteo, tan parecido al del ciego con su báculo por un espacio extraño, puede resultar en un conocer el idioma a profundidad, en crear una forma de comunicarse con ese idioma, en establecer un puente entre las dos lenguas. Ese puente puede ser más o menos hábil, efectivo, provechoso, comprensible para unos e incomprensible para otros, pero siempre es un ejercicio donde se tantea, se explora en la escencia de dos idiomas. Ese reflejo primero de encontrar un equivalente es el mismo que hace el traductor sabio, entendido en más de un idioma para encontrar la escencia de la frase y llevarla a otras palabras. Pero el traductor necesita habilidad, necesita ingenio, necesita sensibilidad. Las palabras llevan el espíritu de un discurso y es eso lo que debe trasmitir el traductor a un tercero que lee. Pudiera pensarse como tomar agua de una fuente usando las manos e intentar que llegue a la boca de un enfermo la mayor cantidad posible de esa agua. Luchar porque el agua conserve sus propiedades. Es inevitable que eso ocurra, nunca llegará la misma cantidad de agua, siempre algo se nos escapa de entre las manos. Aún así algo de esa agua puede llegar y aliviar al convaleciente. Aliviar una necesidad es el objetivo. Así mismo el mensaje puede llegar y ser comprendido por el lector. Objetivo principal, primero, básico.
Sin embargo hay detalles que son importantes. Detalles que otorgan espíritu a la traducción y a sus efectos. Como mismo el amor con que se lleve a cabo la acción de darle agua al enfermo influirá en el estado del paciente. Y la habilidad y el espíritu del individuo al transportar el agua desde su fuente original hasta los labios del convaleciente influyen en saciar el mal. De ese mismo modo incide la sensibilidad del traductor para llevar el mensaje de un lado a otro. Es algo que tiene que ver con la delicadeza del traidor al completar su terrible crimen de la manera más noble. El traductor como el cirujano, no tiene otra opción que cortar el cuerpo, rasgar la palabra. En el rasgado mirará con dedicación, encontrará el punto exacto, buscará entre sus herramientas y empleará la adecuada, luego suturará intentando dejar pocas huellas. Así mismo redactará el traductor sus textos intentando que no haya marcas. Ninguna huella sucia que delate su traición.
Es curiosa para mí esta metáfora porque refleja la noble acción del traductor. La fuente es esa obra que ha sido creada en su idioma, que nace con esa estructura. El traductor es el vehículo, la noble persona que comete su noble acción. Y el lector es de algún modo convaleciente por no poder llegar al agua, por no poder comprender las palabras del texto. Pero siempre en la vida hay fuentes de agua más pura, hay personas más nobles que otras para cuidar enfermos y hay cuerpos que asimilan mejor algunas aguas que otras. Sin embargo, ninguna de estas situaciones puede evaluar la nobleza del traductor. A veces la traducción hace brillar la pieza, porque el traductor se enamora de la idea de la obra y la devuelve en lenguaje hermoso. Su traición puede ser castigada o exaltada. Siempre es cuestión del equilibrio.
Recordemos el cuento de Jorge Luis Borges cuando cuenta en su Autobiografía, dictada en inglés en Nueva York y de la cual he leído una traducción al español revisada por el propio poeta, donde cuenta que leyó en su adolescencia por primera vez El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, la novela de Miguel de Cervantes, en una traducción al inglés que conservaban sus mayores en la casa. Años después cuando leyó la novela en español, le parecía una traducción espantosa, horrible y criticó con fuerza al traductor de aquella obra maestra escrita en inglés. Hay una metáfora interesante en este error. Una metáfora que habla, tal vez en escencia, de la habilidad y la sensibilidad del traductor para volvernos a contar el cuento.
Y me adentro entonces en un punto interesante. A vuelo de pájaro demos un salto a la antigüedad y sus textos. Acaso no son traducciones esos textos que hemos leído de los grandes poetas. Cuántas veces y cuántos hombres contaron la Odisea o la Ilíada, no sabemos. Sin embargo de todas aquellas historias orales hemos recibido traducciones de un lenguaje a otro. El hecho de poner la leyenda contada de boca en boca sobre una superficie (piedra o papiro) en símbolos con equivalencias sonoras, es una traducción. Ahí perdimos mucho de la oralidad y los gestos, las artes escénicas de los narradores. Fue tomada el agua con las manos y una parte se perdió en el tránsito hasta nuestras bocas. Así fue aliviada un poco de nuestra sed, pero no saciada completamente. El traductor hace eso, vuelve a contar el cuento que ha escuchado de boca del autor. Su manera de contarlo, la vida que le infunda al renacer del cuento conseguirá más o menos la atención del destinatario. En todos los casos tiene que volver a contar el cuento, volver a decir el poema, pero esta vez su cuento y su poema. Sus manos han seleccionado y modificado esa agua. Sus palabras ahora pueden llevar el alivio o la confusión a todos. Y entonces pudiera hablarse de la responsabilidad del traductor. Ese es un buen tema para hacer otra charla distendida que pudiera compartirles pronto.
Perdonen que no hable desde la técnica, no soy un especialista. En todo caso soy un poeta y nada más.
DANIEL
Nada mais, como um animal falante no olho do furacão, hablando para el ojo del huracán, dentro del agua sucia, abrindo as portas da rua para o furacão jorrar a água vulcânica do mundo. Amizade a tradução do outro ao tempo conceder-é. La amistad es conceder al viento la música del otro. O texto é só a partitura do pensamento tatuada em Nuanuca.
LÍGIA
Sobre a tatuagem dançam a água que escapou por entre os dedos e o su-orvalho da noite enferma. Eles trazem mais alívio à sede que a água transportada pelas mãos entregue no vetor boca vísceras ressecadas. A tatuagem traduz com mais precisão as entranhas e as camadas vertiginosamente líquidas sugerem o desvendar do labirinto. Mas há uma flecha que deseja habitar esse labirinto, que se encantou pelos seus entremeios e não deseja cumprir seu vetor. Gira tesa no arco almejando as mil direções e mira alvo em cada curva.
AUTRUI
…eles põem os olhos e as mãos na substância palpitante de nossos seres. Elucidar a miséria dos corpos, encontrar a pobre carne ferida sob as mais brilhantes aparências sociais, reconhecer o ver/verme/verso/vermso que rói a beleza, esse é o trabalho deles…
FÁBIO
Nesse discurso aos cirurgiões, por certo, a tradução mais fiel de ver seria verme, ponto. Mas a evocação do texto pela metáfora que liga tradução e cirurgia, evocada por sua vez após a palpitação homonímica que vai do azul da larva à mais pura palavra, reabre-me a questão: qual seria, nesse caso, a traição mais nobre, mais aguçada, a mão mais delicada e ardilosa, aquela que trabalha em sintonia quase que perfeita com a tessitura contínua da matéria e do tempo, deixando apenas as pegadas mais sutis, inevitáveis? Poderão dizer que a evocação é circunstancial, mas quando um texto, um pedaço de linguagem seja ele qual for, não se evoca a partir de uma circunstância outra, de uma voz d’alhures, música del otro que o difere desde sempre? E quando essa deriva circunstancial não perfaz ela mesma uma dança cheia de ressonâncias, ferindo até mesmo o suposto original em sua própria tessitura\corrosão mais íntima? Esse mesmo discurso aos cirurgiões, em seu todo, não deixaria de ser, entre outras coisas, a afirmação de que a medicina e a cirurgia são uma arte…
AUTRUI
“… aquela cuja matéria é a carne viva…”
FÁBIO
… deslizando-se entre a vida que toca e a vida com que toca, numa manobra complexa no limiar entre o ato deliberado e o fluxo múltiplo e silencioso dos seres e dos segundos, uma intervenção que aspira à leveza e precisão tão absolutas que ela – animal falante no olho do furacão – precisa acertar para errar, tecer para roer, e de vez em quando vice-versa, mas sempre no intuito ético dessa exatidão extrema, quer dizer, excessiva e ab-errante como o existir…
AUTRUI
…toda a ciência do mundo não faz um cirurgião. É o fazer (a poïésis) que o consagra…
LÍGIA
Qual bisturi manejará os sopros vomitados? Do olho d´água à catarata, qual rio permanece rindo? Foz do riso, saliva, tromba dágua A chuva chegou à palavra nascente só veio transbordar na nuca-furacão de estimação Desalojou as margens das feridas dantes tecidos seccionados milimetricamente suturados A palavra epiderme aceita a tradução sangue jorrado?
FÁBIO
A pele, margem se transformando em rumor…quando canaliza e quando impulsiona o jorro? Tradução, nem dentro, nem fora, eriçada, estranha ao que é e ao que ela é, move o que a move, feridas tecidas, bisturi que rasura, fere/tece/cura, apura, modula o encontro equívoco – radicalmente igualitário – de heterogêneos.
LÍGIA
Fronteiras se redesenham e o sopro tradutor segue as pegadas de uma palavra-alvo no arco eriçado de Òsotokànsosò, o caçador de uma flecha só. Ela é única, o arco é teso mas seu trajeto exige a malemolência de percorrer limiares mutantes como onda do mar na areia.
De um lado o ícone nu, com sua aparência quase imperceptível. São inúmeros véus que o encobrem ou seria o sobressalto de uma névoa? Sua respiração meditativa, a dança das artérias.
Do outro lado a rima, ou seriam as rimas? Confusão das inúmeras máscaras que se interpõem na dança frenética de rascunhar aparências. Disfarce que redesenha interstícios além da epiderme. Transborda assim sua ginga descompassada de cotejar o ícone.
A flecha aguarda um encontro para disparar. Oferendas são enviadas às feiticeiras dos limiares e máscaras tombam
Rimas dilaceradas intuem o pulso do ícone.
Silêncio Ensaio de aproximação A flecha é disparada Vetor que tange alitera oscila treme expira Uma nova onda se prepara A flecha segue sinuosa seu trajeto fronteiriço
AUTRUI
Como ao ler um soneto de Les Amours de Ronsard: “Quando vos vejo, e quando em vós eu penso, / Não sei o que dentro de mim cintila, / E me apunhala, e depois mutila / A alma despida por arroubo intenso / Tremem os nervos e eu me faço tenso; / Como uma vela ao fogo algo destila / Sob suspiro, minha força oscila, / Esfria e me deixa sem ar, em suspenso”.
FÁBIO
Até aqui, nenhuma novidade. Ou quase. Esse último verso – Me laisse froid sans haleine & sans pous – poderia ser traduzido por “sem ar & sem pulso”. A rima da sílaba final áfona não desagrada; rimas soam de jeito diferente, toantes ou em mais de um limiar da articulação entre consoantes e vogais, a insistência artificial na perfeita assonância – apesar de certamente servir para afiar o uso da língua – pode deixar surdo à miríade de melodias e ritmos desses outros modos de rimar. Sim, trata-se de questão de historicidade. Mas onde estaria a fértil (in)fidelidade? Nos anacronismos desse soneto traduzidos em seus próprios rigorosos termos agora ou, pelo contrário, no risco absurdo de modulá-lo a partir de um sistema de expectativas vizinho? Vertê-lo em prosa, verso livre, com rimas perfeitas ou não, cada uma dessas estratégias desloca o poema por um campo de tensões diferente. Não se trata de autonomia, pois a escolha ou decisão é tomada diante do derridianamente indecidível, submetida àquilo que o sujeito não pode mais elaborar ou construir a partir de si mesmo. Pelo mesmo motivo, não se trata de mero arbítrio, pois o lugar da decisão já se transformou e não é mais o mesmo conforme a estratégia adotada ou o campo de tensões adentrado. Não estamos em um quadro com divisões petreamente desenhadas, de um lado isso, de outro aquilo, pois se diria a temporalidade mesma da decisão ou de seu contrário se dobrar à medida desse deslocamento entre caminhos que vão se abrindo, reabrindo outras questões metonímica ou metaforicamente conexas. Por isso, entre as diversas estratégias, haveria soluções de contínuo, nós cuja gravidade atrai para si possibilidades que antes pareciam se repelir mutuamente. Não é o caso, entretanto, de uma abstração ou um universal que as reduz à condição de casos, mas, longe disso, de uma força que intensifica diferenças recíprocas, atraindo-as para o entorno de um mesmo polo gravitacional [a (in)decisão busca esses pontos]. Por isso, o que se chama aqui de solução de contínuo também não é, de modo nenhum, um meio-termo, um valor médio negociado dentro de uma escala de valores já estabelecida, mas uma variação potencialmente infinita na espessura, nas dobras e nas estrias do limiar que os separa/partilha. Mais do que romper limites, apagá-los ou denunciá-los como falsos em favor de um todo indiferenciado, a questão seria dobrá-los, fletir a luz, passear intensivo pelo limiar, livrando-se de sua injunção determinante e extensiva. Em outras palavras, não é adiar indefinidamente a decisão, mas prolongar aquela que não cai na extorsão da dicotomia “(meu) limite ou apeíron”, pois transforma a própria escala de valores na órbita do que decidirmos.
AUTRUI
Ora, o que ocorreria se, ao traduzirmos aquele verso, utilizássemos “meio penso” em vez de “em suspenso”? Agora a rima não apenas se mantém perfeita, mas também se enriquece na homonímia entre adjetivo e verbo conjugado, criando uma relação insuspeita entre o ato de pensar e o desequilíbrio do pensador.
FÁBIO
Entretanto, essa via explicita outro problema, presente desde o início, mas agora dramatizado pelo contraste, qual seja, o tipo de linguagem: afinal, a expressão reverbera um tanto coloquial demais para um verso que, ao menos até Les Amours, ainda era o heroico da poesia francesa. Uma vez mais, onde a (in)fidelidade fértil? Na transposição de uma ligação normativa entre enunciado e enunciação não mais em vigência ou na tentativa de encontrar, para essa mesma articulação, uma norma cujo vigor se modula no intervalo de tempo e espaço entre a escrita e a leitura? Mas a formulação dessa pergunta não está boa, como também a anterior, pois cria a impressão de que essa busca por uma aclimatação em outro regime de espaço-tempo envolve um risco que a transposição sugerida inicialmente não teria; longe disso, a aporia é a própria mobilidade dos limites – a princípio evidentes – entre o seguro e o arriscado, o que torna impossível assumir abertamente certo risco sem correr muitos outros, não tendo deles exata medida; por isso, essa pergunta recoloca em questão toda a estrutura adotada até aqui de modo mais ou menos impensado, dentre outros fatores, a sutil assimetria no ritmo do decassílabo (4/6) e suas dobras nas sedimentações de sentido agenciadas na relação entre as estrofes, mudanças de rima, frases…
AUTRUI
Considere-se o soneto por inteiro, eis que a leitura do verso seguinte intensifica ainda mais todos esses problemas: “sou como um morto, caído na fossa”… enorme colisão entre etimologia e pragmática! Tudo bem que fosse e fossa derivem do latim fossa/ae, nada mais esperado, a surpresa está nesse encontro repentino entre Ronsard e Nelson Gonçalves!
FÁBIO
Devagar, o espaço do equívoco possível nessa passagem é considerável; no original, a ligação entre morte e fossa é bem marcada e um filólogo mais estudado talvez precisasse que a imagem da queda na vala comum teria implicações naquele início do século XVI francês em nada próximas do imaginário da fossa amorosa da música popular atual; talvez, sim, que seja.
AUTRUI
Porém, o estupendo no acaso desse equívoco não se diluiria com essas possíveis explicações, bem pelo contrário, se reforçaria, pondo em questão não apenas a presumida distância entre o lirismo mais soberbo e o sentimentalismo mais coloquial, mas também e principalmente as diferenças históricas da partilha sócio-discursiva entre coloquialismo e soberba; ler, interpretar e traduzir seriam como dobras no contínuo espaço-tempo, distâncias que se friccionam pela força gravitacional dos equívocos do infinito em ato poético.
LÍGIA
Em algum momento as feridas tradutoras almejaram a queda do pensador já desequilibrado. Só abismo e travessia diante de si. As rimas mais infundadas já entoaram seu canto sedutor para regressar para o seu lar manco fosso, fossa, fosse ninho, assoviava. Ainda existe alguma lembrança do lar?
FÁBIO
Acho que o drible já é hesitação entre, acontecimento ziguezagueante em malemolência; e gemer já é traduzir, não como conteúdo ou sintoma de algo, mas como ato mesmo de cópulas e úteros onde se chocam, se equivocam e se modulam reciprocamente matérias-energias heterogêneas, balbucio da carne entre as pulsões omnidirecionais do contínuo e as estrias vibratórias do discreto. Se o lar é fosso, margem depósito de todos os fluxos que transbordaram e se perderam durante a tradução, sua lembrança mesma não seria já sempre um fosse, nova abertura subjuntiva e hipotética para outros fluxos e rumores trans/borda/mentos? Se assim for, essa lembrança suplementar – esse sopro de sobra –não escaparia à entropia pela força de seu chamado mesmo? À escuta dessa voz, desse gemido, o lar – mais do que retorno atávico a um k “anterior a” cheio de culpas e extorsões sacrificiais – seria uma dobra entre o antes e o depois, uma distorção no contraste entre criação e dispêndio, uma transfiguração nas combinações entre o prazer e a morte, virgindade e viuvez. Um tra(duz)ir hesitante, dançando junto aos fluxos que mobiliza e o mobilizam. Ou, como falha ainda nosso nobre poeta:
“Para além, para aquém dos nomes Estão os pronomes, que são mais – verdadeiros já, e mais próximos da Fonte, E as palavras que vêm aos amantes e às mães, e que são desse instante, inteiramente rente à sensação de vida – quando a carne muito perto da carne balbucia.
(…) Com o nome, começa o Homem. Ante o nome só há o Sopro, O rumor Que docemente ceifa o dormente, Gemido do prazer, da morte, Em todos esses tempos sem conhecimento.
Escuta o som da Voz, Virgem ou Viúva de palavras”. (Cahiers XXI, p. 870-871, 1939).
DANIEL
Neantho é quem pratica o ato poético radical, soberbo e capital de roubar a lira de Orfeu, ousadia de separar tal lira da cabeça decapitada e sagrada, violar a caverna-templo onde tais restos restavam expostos e oráculos, fazer ressoar novamente o casco da tartaruga primitiva. Mas quando Neantho ergue a lira e a toca, os animais que outrora se acalmavam clássicos, eriçam-se em fúria contra o saltimbanco, e o rasgam, devoram e o subsumem em seu sangue ancestral. Neantho é o próprio tradutor, ao conceder a Orfeu a possibilidade de (não) terminar de morrer?
A lira, tocada por mãos pagãs, pode ser recomposta ao templo?
Ou terá sido igualmente feita extraços por os animais?
nu Ynícyu éh o Kantu.
CHARLES
¿Acaso el canto no es eterno? Tal vez se ha transformado y la idea de transformación lleva implícita la idea de haber sido traducido a un nuevo lenguaje, a una nueva melodía. Vengo del mundo del teatro y dentro de ese mundo tengo varias ocupaciones. Muchas veces no encuentro en español una frase sencilla que defina qué hago exactamente. ¿Hacedor de teatro? No suena tan bien en español. Sin embargo en inglés theatre maker o en alemán Theatermacher son frases que se usan para una persona que hace muchas cosas en el teatro. Digamos que define a un obrero del teatro. Estos sintagmas en español son largos y rara vez alguien los usa para definirse a sí mismo. Sin embargo la definición en inglés o en alemán es más frecuente, más usada y las personas la comprenden de manera muy abierta. Incluye para muchas personas el hecho artístico y técnico del teatro. Señala la condición de oficio que caracteriza al teatro. Esa idea está dada por los verbos to make y machen respectivamente. Es difícil encontrar una traducción al español sencilla para estas frases, puede hacerse pero sigue existiendo un vacío y la opción preferida en muchos casos es explicarlo de otra manera, usando otras palabras.
En algunas de las intervenciones mencioné la responsabilidad del traductor. Esta idea está ligada a aquella noble misión de traducir más el sentido que la frase. Podría nombrarse como: traducir el espíritu a través del texto más que el simple lenguaje solamente. Que pueda leerse con claridad la idea de la obra en el otro idioma, que pueda sentirse su espíritu sin que quede atrapado en las trampas de la gramática o de la literalidad. Esa es la responsabilidad importante del traductor. Puede burlar el lenguaje y modificar las reglas del idioma siempre y cuando sea para conservar las cualidades de la obra. Me sorprenden muchas veces las maneras de agradecer en varios idiomas y de donde vienen las frases de agradecimiento. En particular me agrada la hermosa manera de agradecer usada por los alemanes: Dankeschön. Varias veces he pensado sobre cómo traducir esta frase al español para que conserve su idea escencial, danke significa gracias, schön significa bonito, hermoso. He visto muchas veces la frase traducida como muchas gracias, pero me parece que en esa traducción pierde mucho de su sentido, se aleja de la idea. Su traducción literal sería gracias bonitas, o gracias hermosas. Sin embargo en español cobra otro sentido la frase a pesar de que esté en el contexto de la persona que agradece, tal vez si apareciera de este modo podría entenderse mejor: hermosas gracias. En la situación donde alguien acaba de hacer un favor a otro y contesta con esta frase tiene más sentido. Incluso puede valorarse más el detalle si sabemos que la conversación se desarrolla en el contexto alemán. La delicadeza del modo de agradecer queda contenida también en la frase al ser traducida de este modo. Por otra parte la respuesta a Dankeschön en alemán es Bitteschön. La traducción literal favor hermoso, que en según lo antes explicado corresponde perfectamente con la situación anterior si se traduce invirtiendo el adjetivo y el sustantivo de la siguiente forma: hermoso favor.
– Hermosas gracias.
– Hermoso favor.
Estas frases conservan la delicadeza del idioma original, imposibles de conservar si se traducen usando las habituales en español. La otra opción sería usar muchas gracias seguido de una acotación donde se explica que el personaje agradeció amablemente. Sin embargo siento que esta última opción renuncia a un juego que crea nuevos efectos poéticos inspirados en la traducción que son muy aprovechables. Por eso vale si el siguiente ejemplo se traduce en su modo más sencillo.
– Danke.
– Bitte.
– Gracias.
– De nada.
No es extraordinariamente amable. Vale que se use este modo que es el habitual y no tiene nada de especial en español comparado con el ejemplo anterior.
(Fábio e Daniel se beijam, e seguem para o público)
El teatro está pensado para la escena. Su fin no es ser editado en un libro. Su final es el contacto con el público que asiste al convivio de la representación. De ahí que uno de sus aspectos más importantes sea la oralidad. Muchas veces hemos trabajado en mi grupo con traducciones y frases en diversos idiomas. En estos casos importa mucho la calidad sonora de la frase en correspondencia con la partitura sonora de la escena. Los acordes melódicos de la palabra deben contribuir también al efecto sensorial de la obra. En consecuencia con esa idea buscamos las frases cuyos sonidos posibiliten esa sensación. Usaré un ejemplo de la obra emily, de la agrupación teatral cubana La Quinta Rueda cuya traducción del español al portugués fue hecha por uno de nuestros dialogantes, mi querido Daniel. La frase en español: El alma Vinne – decía Emily – escoge su propia compañía y después cierra la puerta. La traducción de Daniel: A alma, Vinne – dizia Emily – escolhe sua própria companhia e depois fecha a porta. La frase en ambos idiomas es hermosa. Sin embargo cambia considerablemente cuando es dicha sobre la escena en uno u otro idioma. En español el final resulta débil, es casi un susurro. Los sonidos en cierra la puerta dejan que se escape una sensación de lentitud incluso aunque la frase se diga alto y rápido. No hay posibilidad de modificarlo para alcanzar la sensación de que la puerta se cierra de golpe. Eso lleva a un modo específico de decirlo, casi en susurro. Luego la sensación que nos inspira el texto es traducida al lenguaje corporal en un ladeo brusco de la cabeza donde queda claro, la puerta sin dudas se ha cerrado de golpe. El espectáculo fue concebido originalmente en español pero su traducción al portugués hizo modificar algunos detalles. El final: fecha a porta tiene sonidos que dan una mejor idea de la frase. Y conociendo estos detalles es posible hacer una traducción efectiva al lenguaje sonoro del espectáculo. Por tanto cuando la actriz dice fecha a porta se ve obligada a modificar el movimiento que sucedía a la frase en español puesto que en portugués la frase contiene la intensidad del movimiento. El acorde que da el movimiento cuando el texto es dicho en español está contenido en la sonoridad del portugués por tanto es innecesario. Digamos que podría resultar reiterativo si se dice el texto en portugués y se hace además el movimiento. Un detalle que cambia algunas cosas y dice muchos de los matices de la traducción. Traducción en todos los lenguajes posibles, texto, cuerpo, voz, sonido, palabra, luz, acción, sensación, etc.
Quisiera hacer una pequeña observación sobre algo que llama mi atención. El español es un idioma muy específico, muy detallado. Para explicar a qué me refiero voy a poner dos ejemplos. Uno apenas lo mencionaré, voy a reparar más en el segundo. Muchas veces bromeo con amigos de habla inglesa o germánica aludiendo a que ellos tienen problemas de identidad que están originados en su educación lingüística. Y aunque siempre lo hago como una broma muchos de ellos no han demorado en profundizar en el asunto. Me refiero a que los verbos ser y estar, tan definidos en algunos idiomas de origen latino, están contenidos en inglés y en alemán en un solo verbo. En inglés: to be, en alemán sein. Siempre aclaro que ser no es lo mismo que estar y hay un margen muy claro para esta idea en idiomas como el portugués o el español. Sin embargo aunque germánicos o ingleses saben diferenciar estas ideas, usan la misma palabra para ambas cosas y esto resulta en otro nivel de comprensión.
El segundo ejemplo es el siguiente, usamos la frase traducir al… cuando hablamos de determinado idioma, y lo leí en… cuando hablamos de determinada traducción. Lo traduje al español, es una traduccióndel inglés al alemán. Esa traducción está en español, yo lo leí en español. Es muy curiosa y específica esta diferencia. Cuando leemos algo es en el determinado idioma, mientras que si lo traducimos es a determinado idioma. El uso de diferentes preposiciones nos indica el sentido de cada acción. Leer en habla de que estamos en el reino de un idioma determinado, o sea que nos suscribimos a sus reglas. Mientras que traducir al nos dice que movemos de un lugar a otro, indica cambio, modificación, traslado. Este detalle aunque es simple resulta hermoso porque define el estatismo o la modificación como naturaleza de determinada acción.
Otro de mis intereses en el campo de la traducción son aquellos traductores que de modo simultáneo facilitan la comunicación entre dos personas. Hablo de personas con un entrenamiento fabuloso que logran traducir ideas de inmediato durante una conversación. Durante mis novatas observaciones me he dado cuenta que cuando el traductor está presente físicamente, o sea cerca de los conversadores, su traducción adquiere un matiz mucho más vivo, digamos más conectado con la situación que cuando lo hace en la distancia a través de la tecnología. En este tipo de traducción creo que tiene mucho que ver la proximidad, la información corporal que llega a centímetros de distancia no es la misma a varios metros. Y aunque inocentemente pudiera pensarse que el traductor solo pone atención a las frases, el importante el lenguaje del cuerpo para escoger la palabra precisa que defina la intención del hablante. O sea que la escencia del mensaje llegue de manera eficiente al otro interlocutor. Aunque me declaro un diletante en el asunto y tengo curiosidad por investigar este tipo de traducción más a fondo, creo que una vez más he llegado a un punto recurrente en este diálogo: la escencia del texto a traducir. Escencia como espíritu, intención del mensaje. Texto como tejido, cuerpo vivo que entrelaza y da consistencia a las ideas. Entonces claro está que hay algo vital que conecta todo esto, pudiera ser ese algo el norte del traductor. Un extraño soplo que se mueve en el terreno del misterio y la indefinición, y aunque puede ser develado y definido todo el tiempo, es inagotable.
(Lígia abraça a Charles, fecha a cortina)
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Apêndices
Ronsard, soneto 94 de Les amours
Quand je vous voi, ou quand je pense en vous,
Quando vos vejo, e quando em vós eu penso,
Quando te vejo, e quando em você eu penso,
Je ne sai quoi, dans le coeur me fretille,
Não sei o quê dentro de mim cintila,
Qui me pointelle, & tout d’un coup me pille
E me apunhala, e depois mutila
L’esprit emblé d’un ravissement dous.
A alma despida por arroubo intenso.
Je tremble tout de nerfs & de génous :
Tremem os nervos e eu me faço tenso;
Comme la cire au feu, je me distile
Como uma vela ao fogo algo destila
Sous mes soupirs : & ma force inutile
Sob suspiro, minha força oscila,
Me laisse froid sans haleine & sans pous.
Esfria e me deixa sem ar, em suspenso.
Esfria e me deixa sem ar, meio penso.
Je semble au mort, qu’on dévale en la fosse,
Como quem tombou na vala fúnebre
Sou como o morto, caído na fossa,
Ou à celui qui d’une fièvre grosse
Ou quem está tomado pela febre,
ou quem está com uma febre grossa,
Perd le cerveau, dont les esprits mués
Perco meus brios, e mais nada me restou
Révent cela qui plus leur est contraire,
Salvo esse sonho de algo tão inquieto.
Ainsi, mourant, je ne sauroi tant faire,
Assim, morrendo, nada faria exceto
Que je ne pense en vous, qui me tués
Pensar em vós, a pessoa que me matou.
Pensar em você, a pessoa que me matou
BALLET
Sur tes lèvres, sommeil d’or où l’ombreuse bouche Bâille (pour mieux se taire à tout le bête azur), Sens-tu, tel un vil astre indifférent, la mouche Transparente tourner autour du mot très pur
Que tu ne diras pas – fleur, diamant ou pierre Ou rose jeune encore dans un vierge jardin Une nudité fraîche sous une paupière Balancée, amusée hors du chaos mondain.
Cette minute ailée éparpille un sonore Vol d’étincelles au vent solaire pour briller Sur tes dents, sur tes hauts fruits de chair, sur l’aurore
Des cheveux où j’eus peur à la voir scintiller Petit feu naturel d’un sidéral insecte Né sous le souffle d’or qui tes songes humecte.
BALÉ
Em teus lábios, sono áureo onde sombria boca Baila (e melhor se cala ao todo azul da larva), Sentes, tal astro vil e indiferente, a mosca Transparente a rodar a mais pura palavra
Que tu não dirás – flor, diamante, ou pedra Ou rosa inda mais fresca em virginal jardim Uma tenra nudez que flui sob uma pálpebra Entretida, do caos mundano fora – assim.
Este minuto alado espalha uma sonora Revoada de centelhas ao vento solar Em teus dentes, na carne opulenta, na aurora
Dos cabelos, onde ela é vista cintilar O fogo natural de um sideral inseto Que vem do sopro quente a embeber teu afeto.