Stephanie Borges

Stephanie Borges é jornalista, tradutora e poeta. Trabalhou em editoras como Cosac Naify e Globo Livros. Publicou poemas nas revistas Garupa, Pessoa e A bacana. Traduziu ensaios da poeta Claudia Rankine (Revista Serrote 28, Apocalipse?) e Irmã Outsider, de Audre Lorde (Autêntica, no prelo). Seu livro de estreia Talvez precisemos de um nome pra isso venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura e será publicado em 2019. Escreve sobre suas leituras na newsletter a cartinha de banalidades (tinyletter.com/stephieborges).

*

nas cartas

I

você acaba
descobrindo coisas
sobre as pessoas, nem elas
querem saber
você também não quer, mas
precisa de dinheiro, afinal
tá difícil,
os brigadeiros gourmet
não deram certo, nem ser
babá de gatos,
por que não o tarô?
ainda mais, agora, olha,
esse às de ouros é um começo
novas oportunidades
então é escolher um nome

Mística
Feiticeira
Sacerdotisa
pensa no que eles sempre querem
Fortuna
Amor
Prosperidade

junta tudo, uns vestidos coloridos,
anéis pulseiras, inventa essa persona
manda fazer cartazes
pintar muros
tuas propagandas
de certezas espalhadas
por toda cidade

II

sei do seu amor, escrevo cartas, leio mãos,
removo calos, estanco choro, curo cólicas, faço o jogo,
adivinhação streap poker truco buraco, três cartas
não precisa me contar a situação, aceito débito, crédito,
banho de ervas, incensos, cristais para sua mesa de trabalho
e de cabeceira, pipoca, oferendas de flores no mar, na cachoeira,
desfaço trabalhos, espanto encosto, guardo segredos
marque agora sua consulta

III

essa carta é sobre o que você quer
e o que você tem medo, ao mesmo tempo
isso mesmo
é ser feliz no amor
acontece, a gente quer mas
pode não estar pronta
existe o risco, as coisas mudam
acabam, e aí?
é como ganhar
um dinheiro inesperado
seria bom, mas se vem, de repente
a pessoa periga não saber o que fazer
volta e meia alguém diz quero mudar,
mas não quer que doa
fosse assim, era fácil
não diriam estamos aqui pra evoluir
desculpa, não
eu não entendo de vidas passadas
meu negócio é o presente, o futuro
e olha aqui, tá vindo, o seu amor
e vai ser grande, vai mexer com toda sua vida
não, não dizem mais nada além disso
você vai ter que descobrir
o que fazer com isso

IV

calma, a pessoas se espantam
com essa carta – porque chamam de
a morte – mas
nos baralhos antigos
nem tem nome nessa carta, talvez
porque a caveira com a foice
diga tudo, ou porque ninguém
pense que precisa chamar a morte,
só que que dificilmente é Ela,
a morte mesmo de alguém, é um fim
um ciclo que esgota,
uma mudança de emprego,
uma relação que termina
às vezes, quem consulta sabe,
desconfia que acabou e a carta
vem, é isso

mas e a Torre? que é um desmonte?
o raio, a tempestade, a demolição
é de fora para dentro, a intempérie
te pega de surpresa

a caveira, todo mundo tem a sua, né
a gente não vê, nunca pensa nisso
a caveira dentro da gente

vai que na carta não tem nome
porque são sempre os ossos
de quem faz a pergunta

§


outro lugar
para Angélica Freitas

para embarcar na poesia
contemporânea é preciso passar
pelo poema de aeroporto

cite um país
fora do circuito turistão
ou uma cidade não óbvia
se for num destino muito desejado

na ausência de um drink
com nome curioso, escolha:
café,
chá,
uma coca cola com você
água, só se for com gás

emule a linguagem afetiva
e recortada dos cartões postais
ou apenas dê um jeito
de colocá-los em cena

use um vocativo,
para atrair o leitor, logo em seguida
jogue uma piada interna com os amigos
deixando claro
que não, o poeta não estava
pensando em quem lê

mas em A., M. ou em D.
insira a inicial
de uma pessoa querida
ou uma letra avulsa que soe bem

evoque uma sensação
estranhamento, impermanência
fragilidade

ao observar uma cena que se passa num(a)
( ) café
( ) bar
( ) livraria
( ) saguão de aeroporto
( ) estação de trem

traga uma escritora, um autor
pouco conhecido
talvez ainda sem tradução,
ouse, faça uma versão livre

vá da reminiscência
para uma canção daquela banda indie
e insira uma estação do ano

ou eleve o tom e cite
música clássica, mas
jamais um compositor
sequestrado
por centrais telefônicas
nem pelo caminhão de gás

se o poeta mora
onde há tubulações, como saberia
o que fizeram com Beethoven

artistas pop com trabalhos conceituais
também valem, especialmente se
fazem parte de minorias

descreva uma obra de arte
que fará o leitor
recorrer ao google se ele estiver
num lugar com wi-fi ou ainda
houver uns megas em seu pacote
de dados

cole um trecho de conversa
engraçada mantida em sua mídia social favorita,
é de bom tom
avisar ao interlocutor,
vai que

na edição do poema de aeroporto
há cortes
que evocam
movimento,
a incapacidade
de captar o instante,
o ouvido sensível à língua
estrangeira
o analfabetismo
geográfico

caem fora
os boletos que poderiam ser pagos
com o valor da taxa do passaporte
[considerando que a pf ainda emita]
a passagem parcelada na promoção,
o câmbio meses antes, horas pesquisando
hospedagens, o tédio do voo atrasado,
a bagagem perdida [qualquer perrengue
diferente ser confundido com terrorista
não entra no poema]

e cabe menos ainda
o dia em que o plano
era passear a pé mas a chuva
fez o poeta se refugiar num
museu / bar / café
com seu caderninho e
(volte para a segunda estrofe)

§


Uhura

Olorum encarregou Oxalá
de fazer o mundo

um espetáculo tão estranho
que qualquer um
que olhasse, pensaria

sequenciadores
samplers
sintetizadores

componentes de um código
uma tecnologia secreta
para modelar o ser humano

incorporar
o não narrado
os buracos

orixá tentou fazer o homem
de ar
como ele

um fragmento narrativo,
o homem logo de desvaneceu

a empreitada de criar
uma distorção significativa do presente

a maior empresa de tecnologia
do mundo
que controla boa parte
de nosso tráfego na web
absorve empresas de robótica
e inteligência artificial
especula-se
por que

o orixá tentou
vários caminhos
fez de fogo
o homem se consumiu

tentou azeite
água
até vinho de palma

uma nova geração
de sistemas autônomos
o marketing indireto
de produzir realidades
informações circulam
como uma commodity

foi então
que Nanã Burucu veio
apontou com seu ibiri centro e arma –
Para o fundo lago onde morava
e de lá retirou
todos os restos, os pedaços
que não foram apagados
uma memória coletiva
e individual
que nunca irá compor
um discurso

Oxalá modelou o homem do barro,
e com o sopro de Olorum,
ele caminhou

descendente direto
de alienígenas sequestrados
levado de uma cultura para outra
nessa nova sociedade híbrida

enquanto isso, no Japão
as pessoas já fazem
rituais funerários budistas
para seu cães-robôs
que podem fazer qualquer coisa
de trabalhar em depósitos
a cuidar de idosas
o mundo caminha à passos largos

mas chega o dia
que seu corpo precisa voltar

Nanã Burucu
espera os descendentes
despossuídos
abduzidos para o novo mundo

ela deu a matéria no começo
mas quer de volta
no fim
tudo o que é seu
a lama, frágeis arquivos
a chave
para o futuro na diáspora

*

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