
Rubens Akira Kuana nasceu em Videira, Santa Catarina, em 1992. Traduziu poetas contemporâneos de língua inglesa comoDorotheaLasky, Lonely Christopher, Ariana Reines e Alice Notley, entre outros. Estreou com o livro Digestão (2014), publicado através da LUMA Foundation e 89plus – associados a UbuWeb (ubu.com) – na exibição “Poetry will be made by all!”, aberta no Centro de Arte Contemporânea Löwenbräukunst, em Zurique, Suíça.
o ano em que eu virei branco
eu nasci em uma cidade do interior de Santa Catarina
onde até meados dos anos 2000 eu e meu pai éramos os únicos
japoneses na cidade (minha mãe descende de alemães e italianos)
desde criança eu lembro que ninguém nunca soube escrever
o nome do meu pai corretamente: Siogi, Xiogui, Chiodi
quando eu lia um recibo um bilhete uma anotação
ninguém acertava seu nome: Sioji às vezes eu ouvia
meu pai soletrar no telefone s de serpente
i de ilha o de olho j de jiboia i de ilha de novo
anos mais tarde quando eu assisti um filme de Akira Kurosawa
(Tengoku to jigoku / High and Low / Céu e Inferno)
eu aprendi que ninguém nunca acertou sequer a pronúncia de seu nome
em japonês o jota se pronuncia quase como um dê: Si-ô-di
anos mais tarde eu descubro que no Japão Sioji seria escrito como Shoji, Shouji ou Shohji
mas como filhos de imigrantes pobres meus avós fazendeiros não tinham acesso a um cartório
que compreendesse esses detalhes ou quem sabe
nem mesmo meus pobres avós soubessem como escrever o nome do meu pai
durante os anos em que cresci na cidade do interior eu também perdi o meu nome
ninguém me chamava de Rubens (meus pais me chamavam de ‘mano’)
me chamavam de: japonês, japa, japa-japa-girl, japinha, china-in-box, china (com a pronúncia em inglês mesmo)
e toda vez que ouvia esses nomes eu me sentia extremamente consciente
do meu corpo dos meus olhos do meu nariz dos meus pelos das minhas genitais
mas eu me acostumei a esse nome e esse nome passou a me definir
da mesma maneira com que um prego define um martelo
batendo batendo e batendo
foi só quando eu me mudei para Curitiba uma cidade onde há mais do que uma
família japonesa (quem diria) é que da noite para o dia as pessoas que ia conhecendo lá
passaram a me chamar de Rubens e quando eu tentava explicar para elas
podem me chamar de japa (pois esse era o meu nome até aquele momento)
elas me olhavam confusas e diziam: mas você nem é japonês
(aparentemente meus olhos não são puxados o suficiente)
foi então que eu soube que podia ser branco isto é meu corpo continuou o mesmo
mas foi então que passei a ser tratado como um branco e ter direito a um nome próprio
o ano foi 2010
§
coisas que já respondi pra gente branca
não eu não sou da china
eu não sei falar japonês
sim minha avó sabe falar
meu pai não sabe
meu avô não era um samurai
nem um ninja
eu não sou bom em matemática
eu não sou bom em matemática porque sou japonês
não sei cara eu acho que só estudei pra prova
mais do que você
sim eu sei contar até dez em japonês
iti ni san shi go roku shiti hati kyu jyu
não eu não sei lutar karatê
sim eu gosto de pokémon
eu acho que o tamanho do meu pau é normal
eu estou com os olhos abertos
sim meus olhos são assim mesmo
eu não vejo as coisas em widescreen
eu não sei fazer sushi
não na minha casa nós não comemos sushi
nós comemos feijão e arroz
eu não me acho tão parecido assim com meu pai
nós não somos todos iguais
você não deveria chamar as pessoas desse jeito
minha pele não é amarela
sim eu nasci no brasil
mestiço
meu pai é japonês minha mãe não
meus avós vieram do japão
não eu nunca fui pro japão
não eu nunca morei no japão
sim o japão é muito desenvolvido mesmo
sim de primeiro mundo né
sim videogames
ultraman sayonara godzilla
playstation playstation playstation
sim eu tenho parentes lá
não sei eu não falo muito com eles
não eu não conheço essa pessoa asiática
sim os “orientais” tem fama de serem muito pacientes
é eu não sou muito de falar
sim eu acho que você poderia dizer que sou “zen”
eu não sei fazer feng shui
minha casa não é minimalista
eu acho que a palavra “oriental” não significa isso
esse não é meu nome
essa piada não tem graça
§
já fui poeta
a Majida Rahall
uma vez, eu já fui
poeta. escrevi poemas
bons e poemas ruins.
nunca soube diferenciá-los.
frequentei o desconhecido
círculo em que os poetas circulam.
admirei os ídolos e as ídolas
como asteroides que poderiam
aniquilar novos dinossauros.
já beijei poetas e já tive
noites melhores.
posso dizer (com certo orgulho): eu
já fui poeta. li poemas
em busca de inspiração, consolo
ou simplesmente sexo. linguagem.
linguagem linguagem linguagem.
aprendi que a linguagem não está aqui
para nos ajudar. tive amigos
poetas. todos eles fluentes
em línguas mortas. o passado
os excita. mas nada comparado
aos seus próprios reflexos no espelho.
disse somente a verdade. afinal
eu já fui poeta. não vaiei
recitais nem conspirei contra
meus contemporâneos. mas só deus
sabe o quanto eu ri sozinho.
sozinho.
hoje eu tenho uma namorada.
passeamos no parque e contemplamos
capivaras. eu a amo e ela me ama. a poesia
ficou em segundo plano. um ponto
pequenino no horizonte. vez ou outra, paro
diante da estante e considero vender
todos meus livros. até mesmo
aqueles autografados. não necessito
do dinheiro. apenas sinto uma ligeira
coceira nas mãos. logo passa.
não possuo mais a audácia dos poetas.
hoje eu não sou mais poeta.
hoje eu não escrevo mais poemas.
hoje eu olho para os dois lados
antes de atravessar as ruas.
hoje eu coloco os pés no chão
e aguardo pelo terremoto. hoje
eu sou feliz.
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